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Fotografia: Adriana Melo (Mínima/Porta-Jazz)
Publicado a: 26/07/2021

Água viva a correr.

Festival Porta-Jazz’21 – Dia 3: afastar as nuvens com a verdade nos pulmões na despedida do jardim dos cavalinhos e da concha

Fotografia: Adriana Melo (Mínima/Porta-Jazz)
Publicado a: 26/07/2021

O último dia na programação de 2021 do Festival Porta-Jazz teve um ligeiro percalço com a manhã a apresentar-se chuvosa e a obrigar a deslocar os concertos que deveriam ter tido lugar antes de almoço para o início da tarde. Com pianos acústicos em ambos os palcos – e demais equipamentos de som – este foi, compreensivelmente, um dia stressante para a equipa de produção da Porta-Jazz, mas os rasgados sorrisos no final do dia, após uma maratona quase sem interrupções de mais de sete horas e meia, indicavam ter valido a pena.

Assim, e apesar das previsões de chuva do início da semana, o programa desta 11ª edição do Festival Porta-Jazz acabou por se cumprir na íntegra, o que é, obviamente, de louvar. Os artistas, visivelmente entusiasmados por voltarem a cruzar-se nos mesmos espaços e por reencontrarem o seu público, apresentaram-se todos com total disponibilidade para a aventura da criação, entregando-se sem reserva à música e ao momento, facto que, certamente, contribuiu para o sucesso da empreitada.

Algumas constatações antes do retrato do último dia, no entanto. O Porta-Jazz, como de resto vários outros festivais de todos os géneros musicais, precisa de crescer no campo da diversidade e da inclusão. Houve 14 concertos e apenas um teve uma mulher como líder. Passaram cerca de 65 músicos diferentes por todas essas apresentações e apenas 11 deles eram do sexo feminino. É verdade que a percentagem tende a reflectir a realidade e que a Porta-Jazz tem feito tudo ao seu alcance, entre a formação e a programação, para transformar essa realidade. Mas esta tomada de consciência tem que ser colectiva para que o futuro seja diferente.

Coube ao pianista Hugo Raro assinar como líder o primeiro dos concertos do derradeiro dia do Festival Porta-Jazz, perante uma plateia mais reduzida do que o normal, já que a ameaça de chuva mantinha-se e o cinzento do céu e as temperaturas não eram das mais convidativas. Ainda assim, Raro, juntamente com o saxofonista João Mortágua, o contrabaixista José Carlos Barbosa e o baterista Marcos Cavaleiro, ajudou a construir um dos mais intensos momentos do festival.

Mortágua, já se percebeu não é deste planeta, entregando-se de forma intensa a tudo o que faz (num uníssono com o piano, percebe-se, olhando para o trabalho das mãos de Hugo Raro, a complexidade que o saxofonista consegue introduzir nos seus fraseados). Idem aspas para Marcos Cavaleiro, mestre do tempo (do outro, que no das nuvens, do vento e do sol é mais difícil mandar…) que garante a sólida propulsão, coadjuvado da melhor maneira por José Carlos Barbosa, para os outros músicos se espraiarem. O líder é um facilitador, na maneira como espalha matéria harmónica sobre a qual depois florescem incandescentes solos de Mortágua. E o conjunto funciona de forma particularmente sedutora em temas como “In Between”, “Old House”, “Catrapum” ou “Era Uma Vez”, todos integrantes do alinhamento de Connecting The Dots.

Seguiu-se Yudit Vidal. E se lá atrás se mencionava a imperiosa necessidade de abrir mais espaço para o talento feminino em todo o tipo de cartazes, há que admitir que a inclusão desta contrabaixista e vocalista no alinhamento é um sinal no sentido certo. Fazendo-se acompanhar por Joana Raquel e Teresinha Sarmento (nas vozes), Catarina Rodrigues (no piano) e Gonçalo Ribeiro (bateria), Vidal aproveitou a ocasião para nos entregar um concerto que é também um manifesto, Canto das Sereias, e uma reflexão sobre o lugar das mulheres na mitologia marítima e na vida real. Entre balanços afro cubanos ou afro-brasileiros e modos mais clássicos, com a líder a mostrar-se igualmente capaz no contrabaixo e ao microfone, este foi mais um interessante momento de brilho para novo talento em busca de um lugar no futuro.

A apresentação de Hundred Milliseconds pelo colectivo liderado por João Martins (bateria, sintetizadores) foi talvez uma das propostas mais “fora-da-caixa” de todo o festival e, certamente, uma dos melhores. Com Fábio Almeida (saxes alto e tenor), Gabriel Neves (saxes tenor e soprano) e Nuno Trocado (guitarra) ao seu lado, Martins conduziu o público por um labirinto em que o jazz fugiu do noise, o drum n’ bass chocou de frente com o rock e a electrónica temperou tudo com aromas de futuro. Tudo diferente: as estruturas harmónicas, os solos, o pulso geométrico, o uso de drones. A única coisa em que se pode dizer que este concerto se assemelhou a outros foi no nível técnico dos músicos, tão elevado como os dos restantes ensembles, o que é, em si mesmo, uma marca da exigência deste festival. A merecer mais palco em mais lugares com mais gente, sem dúvida.

Logo depois veio “um grupo de amigos” para apresentar Land, álbum dos Mazam que a Carimbo lançou em Março de 2020 (ainda se lembram como era?…): Carlos Azevedo no piano, Miguel Ângelo no contrabaixo e, ao contrário do que referia o programa (que apontava Mário Costa, baterista que tocou no álbum e que certamente teve uma razão forte para não marcar presença), um exuberante Diogo Alexandre na bateria. Além de João Mortágua, claro. O saxofonista deve ter um interruptor qualquer, porque entrou em transe logo que o concerto começou, só despertando dessa condição cerca de uma hora mais tarde. Pelo meio, percebeu-se que o entrosamento do quarteto é total, com as composições abertas o suficiente para admitirem espaços de livre invenção de todos os presentes em palco, o que rendeu uns quantos arrepios e, mais importante até, talvez mercê do poder dos pulmões do líder, uma abertura no céu carregado de nuvens, mesmo a tempo de deixar o sol espreitar um pouco antes do período da noite ter início.

Após o jantar – e no restaurante que serviu de bastidor ao festival os músicos, técnicos, produção, fotógrafos e mais alguns agentes infiltrados iam falando de tudo, do desaparecimento de Otelo e da situação em Cuba, de discos da Areito e da Egrem e de flautas, de Cachao e de Miles Davis e de banda desenhada…, em jeito de animado interlúdio com que se preparou a etapa final -, e já na Concha Acústica do Jardim do Palácio de Cristal, subiram ao palco João Pedro Brandão e a sua versão reduzida de Trama no Navio (a composição que resultou de uma encomenda da Orquestra de Jazz de Matosinhos rendeu um disco em que o arranjo mais “cinemascope” foi concentrado para um mais “portátil” quarteto). Para a executar, além do saxofonista e flautista que foi figura incansável durante os três dias do festival (em cima do palco e fora dele), encontravam-se o pianista e organista Ricardo Moreira, o contrabaixista Hugo Carvalhais e o baterista Marcos Cavaleiro. Uma tropa de elite que apresentou um discurso diferente, talvez com mais texto e menos pontuação.

Todos os músicos são, obviamente, executantes de topo e todos se apresentaram no máximo das suas capacidades, dispostos a arriscar: Brandão chegou a tocar o alto e o soprano ao mesmo tempo, trazendo à memória a figura tutelar Rahsaan Roland Kirk; Ricardo Moreira é um poço de incandescentes surpresas dotado de um par de mãos mágicas; Carvalhais um mestre a dobrar os contornos do tempo, sinuoso num momento, angular no seguinte, mas sempre pleno de mistério; e Marcos Cavaleiro é um daqueles músicos a que as palavras já não conseguem mesmo fazer justiça, com uma capacidade de adaptação a diferentes linguagens que é perfeitamente estonteante. Outro dos momentos altos de um festival que manteve a fasquia sempre muito alta.

A noite terminou com aquele que, talvez a par da apresentação de Hundred Milliseconds comentada mais acima, foi outro dos concertos mais diferenciados do cartaz: The Guit Kune Do de André Silva resulta de um raro ensemble que junta em palco cinco guitarras eléctricas, mais um baixo eléctrico e uma bateria que sendo acústica parece tocada por um músico ligado à corrente. Grooves cubistas, blues aditivados, riffs pesados com alma rock, mas enquadrados no todo com outro tipo de objectivo, passando por derivas mais reflexivas que quase soaram a minimalismo da escola “glassiana” e até ecos algo distantes de flamenco – ouviu-se muita coisa, muitas ideias, ali. Tudo cabe dentro desta salada portuguesa feita de estrilho electrificado e uma curiosa abordagem à improvisação que rende tapeçarias feitas de malha(s) eléctrica intrincada e sinceramente entusiasmante. E até seria coisa para resultar num festival não-jazz de cariz mais aventureiro. Primavera? Andas aí?

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