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Fotografia: Joana Barra Vaz, Vitor Monteiro & Lucas Neves
Publicado a: 03/10/2023

As lições que devemos retirar para o futuro do país na sua perspectiva cultural.

STOP, uma floresta virgem musical

Fotografia: Joana Barra Vaz, Vitor Monteiro & Lucas Neves
Publicado a: 03/10/2023

Terça-feira, 18 de Julho de 2023, 

Cidade do Porto, mais precisamente, Rua do Heroísmo, 333: uma escolta policial impede a entrada a cerca de 500 músicos, artistas e lojistas do Centro Cultural Stop, inquilinos que são obrigados a ficar na rua, apesar de terem as rendas em dia. A notícia chegou sem aviso prévio, em plena época alta de concertos, devido a uma acção da Câmara Municipal do Porto, que alegou insegurança do edifício e queixas da comunidade local.  Ali ficam os inquilinos, entre a surpresa e a indignação, e se vão reunindo, reclamando o acesso ao seu local de trabalho: salas de ensaios, estúdios de gravação, ateliers e lojas.

Passo a explicar: o STOP funcionou como centro comercial nos anos 80. Antes disso, o espaço era uma garagem modernista da marca Austin, construída entre finais dos anos 40 e início dos 50. Uma ampliação do edifício transformou-o em centro comercial. De há 25 anos para cá, depois do declínio como espaço comercial, o centro foi ocupado por músicos dos mais variados estilos, do punk ao folk, de forma orgânica, que  vislumbraram uma oportunidade naquele lugar de lojas vazias e abandonadas: não só poderiam ter a sua própria sala de ensaios, como estariam concentrados num só edifício, permitindo-lhes partilhar meios e soluções entre projectos. Alugaram as lojas, que passaram a ser salas de ensaio ou estúdios de gravação por investimento dos próprios, com a força motriz e iniciativa independente, em rede de apoio colaborativa entre pares. Assim nasceu uma das mais bonitas organizações comunitárias da cidade que é exemplo único de cultura viva no país e no mundo. 

A música que ali coexiste — som vulgarmente chamado de “barulho” — ecoa mesclada pelos corredores daquele canto do universo na Rua do Heroísmo, o que, convenhamos, é uma enorme vantagem para os habitantes da cidade que apreciam o sossego. Imaginem centenas de projectos espalhados pela cidade com o tão mal amado ruído musical.  

O edifício, a original casa da música do Porto, albergou, até aos dias de hoje, um sem fim de projectos de músicos que ali encontraram um porto seguro, e um espaço de partilha e criação — muito antes dos hubs criativos. Do Centro Comercial STOP brotou o Centro Cultural STOP,  qual floresta virgem musical, e é um lar musical, com todas as características emocionais e humanas que isso implica. 

Foi assim que me fascinei pelo STOP, na rodagem do documentário Meu Caro Amigo Chico,  em 2010. Entrámos já a filmar e não dava para acreditar: o STOP era a metáfora perfeita da semente que procurávamos na rodagem do documentário. O STOP representava o florescer da tal “semente esquecida nalgum canto do jardim” mencionada por Chico Buarque na letra da canção Tanto Mar”, que questionou, em 1978, o futuro da nossa revolução. 

Assisti, de Lisboa, por via das redes e da TV, à tal escolta que impedia os inquilinos de entrar no STOP. Depois de expressar a minha indignação nas redes, recebi telefonemas a dizer: Joana, olha que isso não é bem assim.” 

A situação é confusa: ao longo dos anos, foram várias as tentativas de reunir os inquilinos, proprietários e administradores e resolver a questão de segurança e licenciamento do edifício em conjunto com a CMP, nem sempre frutíferas, revelando também uma prática intrínseca da nossa cultura que não é exclusiva ao STOP — a do muito se fala e pouco se faz, explicitada no texto de Manel Cruz relatando a sua experiência numa das associações do STOP. Contudo, há que sublinhar que a própria natureza da nossa profissão dificulta os encontros em grande número: estamos divididos entre projectos, espalhados pelos palcos do país a partilhar música — se marcar um ensaio colectivo já é um desafio e tantas vezes somos ausentes das nossas celebrações familiares, não é fácil reunirmo-nos com o objectivo de discutir soluções.

[Humanidade, natureza e emoção]

Apesar dos vários pontos de vista, todos eles relevantes, o STOP existe há mais de 25 anos enquanto comunidade cultural vibrante. É único e deve ser protegido por todos. Quero falar-vos da importância de preservar as nossas florestas virgens musicais, florestas primárias culturais, as Amazónias da nossa cultura. São comunidades que se encontram ameaçadas pela inexistência de políticas culturais que as protejam; pressionadas pela transformação feroz que as cidades sofrem com a gentrificação; indesejadas e apagadas pelo mercado da ganância imobiliária, que não olha a meios para atingir os seus fins; afuniladas pelo desejo cego de estabilidade económica de um país, tantas vezes em crise, que parece não priorizar a humanidade nos actos de recuperação económica que tem vindo a impor aos seus cidadãos, conduzindo-os a uma angustiante instabilidade económica e emocional e a uma desconexão com a própria cultura. A nossa estabilidade não é só dinheiro. A nossa estabilidade é, sobretudo, conexão e emoção  — certo? E o que é a Cultura se não o espelho mais límpido da nossa humanidade? 

O que escutei nas palavras do Presidente da Câmara, indignada, foi um discurso de ostracização da minha classe. E vi, na escolta policial, uma atitude que reconheci imediatamente das acções de desmatamento de florestas virgens a que temos assistido: a sua desprotecção, condenação e destruição em prol dos tão amados “interesses económicos”, apesar de serem as florestas virgens o pulmão que nos permite a vida, equilibrando o clima do planeta Terra, dando-nos tão somente o ar que respiramos todos os dias.

No STOP, o desmatamento é o silenciamento de uma comunidade musical viva. E não só: é uma atitude de desmatamento da nossa própria cultura.

Fui procurar na Wikipédia e em revistas da natureza: as florestas virgens são ecossistemas que nunca sofreram perturbações significativas e possuem, em si, características ecológicas únicas, ricas em biodiversidade, num sistema auto-calibrado que demora séculos a alcançar um estado a que se apelida Comunidade Clímax. A Comunidade Clímax é o grau máximo destas florestas primárias: atingem um nível estável de biodiversidade e assim permanecem, sem muita variação de recursos ambientais. Neste estado de Clímax, os pequenos distúrbios na comunidade não a descaracterizam e a sua estabilidade funcional é retomada, pois, regeneram-se naturalmente. Em Clímax, a comunidade apresenta um aumento na variedade de espécies, alcançando uma complexidade funcional e alimentar na fauna e flora existentes. É um estado sustentável e duradouro, um sistema que se alimenta dos seus próprios recursos. Apenas eventos catastróficos têm o poder de o desestabilizar. Foi isso que aconteceu no passado Julho, na floresta virgem musical do STOP, que tem vindo a caminhar para atingir esse estado de comunidade clímax: um evento catastrófico, que ainda vai a tempo de ser impedido.

O que assisti, através da TV, a 18 de Julho, foi à criação de um fosso. Utilizando as forças de segurança pública para impedir os músicos profissionais de entrarem no seu local de trabalho, a CMP,  por via do seu Presidente, apontou um rol de justificações burocráticas e legalistas, sem menção à importância humana e emocional daquela comunidade musical e ao valor inestimável do seu desenvolvimento orgânico e independente, perfeitamente incluído na população local, e, por conseguinte,  ao  seu impacto positivo na geografia humana e cultural da cidade do Porto. 

Criou-se um flanco imaginário no discurso: comunidade de um lado, músicos do outro. Em matemática simples: músicos igual a ameaça. Foi esta a mensagem, disseminada nos canais da imprensa, que me chocou. Convém frisar que pelo STOP passaram e floresceram, entre tantos outros, os projectos musicais de Pedro Abrunhosa, Repórter Estrábico, Ornatos Violeta, Sopa de Pedra, Manel Cruz, Capicua, Retimbrar, Best Youth, apenas citando alguns exemplos que soem mais familiares. Estes músicos, presentes nas nossas rádios e palcos, juntamente com tantos outros, foram caracterizados como uma “ameaça”, ficcionando uma clivagem entre músicos e comunidade local. Ameaça à segurança e bem-estar da população local? Será verdade? A cultura nacional é uma ameaça para as suas comunidades? As comunidades Clímax culturais nacionais são uma ameaça para as nossas freguesias, concelhos, cidades, distritos e regiões? Não serão elas o verdadeiro reflexo de uma cultura saudável e estável, como  são as florestas virgens?

A CMP justificou-se com três motivos principais: queixas de ruído da população envolvente; ausência de licenciamento de algumas lojas; relatos de puxadas eléctricas  e consequente perigo iminente de incêndios e tragédia no STOP.  

Pouco a pouco, chegaram os esclarecimentos. 

A população local não quer os músicos fora da Rua do Heroísmo. Entrevistados em vox populi por um canal de TV, membros da população expressaram o oposto: fazem todos parte da mesma comunidade, os músicos tornam o local mais seguro e mais vivo. Cruzam-se na rua durante o dia: no cimbalino matinal; nas pausas entre ensaios; quando os músicos saem da toca para apanhar a luz do sol bloqueada nos estúdios, precisamente para controlar o tal do “barulho”; no fino que se bebe para relaxar.

Afinal, o processo das 500 queixas de ruído relativas ao STOP prendem-se exclusivamente às queixas de quatro indivíduos, ao longo de 12 anos. Absurdo que me impede de acrescentar seja lá o que for.

Quanto aos potenciais acidentes: são os músicos, artistas e lojistas do STOP quem mais protege aquele edifício de acidentes mais graves, detectando-os a tempo, por habitarem diariamente o espaço, mantendo-o seguro por via das constantes melhorias, por necessidade e dedicação — algo que não é contemplado nos meandros burocráticos: a vida de todos os dias não tem peso nos processos de decisão, mas tem protegido o STOP  dos acidentes graves característicos dos edifícios abandonados. 

 Os tais pedidos de licenciamento já se encontravam em espera na CMP, a situação é turva: algumas lojas têm licença, outras não. E, embora seja óbvio, sublinho: todos os inquilinos do  STOP estão interessados em tornar o edifício num lugar mais seguro para todos.

E há mais: a capacidade essencial, humana e emocional que a música tem em sarar a comunidade; o lugar seguro e estável que a comunidade criou para receber novos inquilinos, jovens músicos que ali tinham lugar para desenvolver os seus projectos, algo tão raro na nossa indústria. 

O actual Ministro da Cultura disse que a situação do STOP “merece reflexão”. Imagino um mundo em que o diálogo é aberto, sem flancos, e que, além de reflexão, inclui nos processos de decisão as especificidades da prática dos Músicos antes de tomar decisões finais sobre o STOP. Um mundo sem flancos, em que estamos todos do mesmo lado.



[A lição que o Porto deu ao país]

Há que dar a mão à palmatória antes de dar o corpo ao manifesto. Parece-me verdade, pela minha experiência enquanto observadora na realização e pela experiência enquanto música: muito se fala e pouco se faz. A comunidade musical nacional é desorganizada, não tem sindicato, há sempre poucos a puxar a carroça e a tomar as diligências necessárias para muitos, embora quase todos se queixem.  

Há que ter em conta que todas as cidades e comunidades são diferentes e têm as suas qualidades e senãos. Os concertos a solo que fui dando pelo país deram-me a conhecer muitas organizações independentes que se mobilizam para criar uma cultura viva. São agentes culturais movidos por paixão, que preenchem lacunas, recebem-nos de braços abertos, criam parcerias com o Estado — quando há abertura —, e que têm uma visão muito crítica acerca da centralização do poder e cultura no país. Quando é preciso fazem, sem hesitar. Passados uns anos, há uma consistência e orgânica natural nos seus projectos. Foi uma lição ter sido recebida por estas pessoas. Há ainda uma cultura viva nos bairros das periferias das cidades, separada por um muro invisível. Sugiro a escuta de Cidade Invisível, de António Brito Guterres. Em suma: há mais florestas virgens em vias de atingir o seu clímax. Talvez seja hora de mandar abaixo o muro invisível entre as nossas florestas culturais e o poder institucional. 

Por sempre me ter considerado com um pé fora da comunidade musical, nunca pensei duas vezes antes de me expressar publicamente, mais especificamente quanto ao desequilíbrio de género que sempre senti e à instabilidade da comunidade musical. Isto para vos contar que, além do pouco que se faz, há uma pressão ao silenciamento que me custa a admitir. É um livro de regras não escritas sobre o que se deve e não deve dizer e fazer: quem deseja mudança é muitas vezes visto como utópico, ingénuo, corajoso, ou até alguém com mau feitio, e é avisado: “olha que se perdem oportunidades quando se usa a voz”. Para que haja trabalho, há feridas onde não se deve colocar o dedo.

O paradoxo: como podem os criadores ser inteiros sem usar a própria voz para defender o direito à estabilidade na criação?

Se sinto uma mudança acentuada nos últimos anos é precisamente na geração que se seguiu à minha, para quem o medo de usar a voz (e muitos lutaram para que a tivéssemos) não é uma questão, mas apenas passado. A vida acontece, as famílias crescem, a energia dissipa-se: que venha a juventude agarrar no testemunho, é como tem de ser. E é uma boa juventude, mais livre dos fantasmas e hábitos da ditadura, como é natural que o seja, quantas mais décadas e gerações se volvam dos processos revolucionários de retoma da democracia. Contudo, a ressalva: uma geração sem memória corre o perigo de replicar discursos perigosos e extremistas, levando-nos de volta à estaca zero.

Acredito que a urgência de mudança que agora renasce nas gerações mais velhas surge do sítio negro pós-pandémico e da crise mundial que angustia muitos de nós. Há ainda uma crise de saúde mental no sector cultural. Uma crise calada, que se reflecte em desaparecimentos súbitos de colegas dos palcos, e pior, da própria vida. Porque o artista quer-se feliz para o seu público. Mostrar vulnerabilidades e fragilidades não faz parte do tal livro de regras antigo, essas são práticas muito recentes. Mas, sem assumir responsabilidades e partilhar vulnerabilidades, e sem a capacidade catártica da arte, nunca iremos sarar.

[STOP aberto em Agosto, até quando?]

Após uma nova união entre inquilinos e administradores do STOP, em longas reuniões pela madrugada fora — que deve ser celebrada —, aconteceu no Porto, a 24 de Julho, uma manifestação plena de música e de vozes em coro, reclamando o regresso ao STOP, e outra de solidariedade em Lisboa, na qual estive envolvida. 

Surgiram, nos entretantos, alguns recuos por parte da Câmara Municipal do Porto no início de Agosto. Assumidos os desencontros entre inquilinos, administração do edifício e proprietários, buscaram-se soluções em comunicações com a CMP. O autarca independente deu o assunto como “para já, resolvido”, mas frisou que se tratava de uma solução “temporária” que permitiria que o centro funcionasse durante 12 horas por dia e com carro dos Bombeiros Sapadores à porta.

Porém, após o regresso dos músicos ao seu lar musical, quando tudo parecia mais encaminhado, veio a surpresa: um edital de um despacho com data de 1 de Setembro: “… o Exmo. Senhor Presidente da Câmara do Porto determinou a cessação de utilização do edifício (…) concedendo-se um prazo de 10 (dez) dias úteis para o efeito, a partir da data de afixação do presente edital.” 

Centenas de profissionais sem acesso ao local de trabalho, mais uma vez, por motivos de segurança que foram discutidos em reuniões com a CMP e para os quais já se vislumbravam soluções. Agora, os mais de 500 inquilinos têm dez dias para desmobilizar. Onde é que eu já ouvi falar sobre um impedimento ao ajuntamento? Ah, espera: antes de 1974. O que evolui sem diversidade, diálogo e comprometimento?  Nada.



[Da real cultura plural e extraordinária à tirania da monocultura]

Portugal aproxima-se a passos largos de uma monocultura tecnocrata que abafa qualquer expressão artística espontânea. Vai-se afunilando a liberdade de criação e de pensamento, que é o cerne da criação artística,  ao ignorar as qualidades humanas e emocionais essenciais a uma sociedade saudável.  

Em 2023, o país enche-se de turismo, a economia parece prosperar — e muita atenção ao parece, pois, vem a custo da estabilidade económica dos seus cidadãos. E que tamanho custo: basta ligar a TV e assistir às notícias. As consequências da nuvem negra da gentrificação cobrem as nossas cabeças e estrangulam-nos a vida. 

A olho nu, na Cultura que salvou os cidadãos confinados durante a pandemia, agora, até pode parecer que está tudo bem: os músicos voltaram aos palcos nacionais; as temporadas de lançamentos suspensas e sobrepostas, desde 2020, vão-se dissipando pelas novas temporadas, e surgiram até novas estratégias — divisão de discos em álbuns mais pequenos (vulgo EP), e, arrisco dizer, talvez até uma rede de apoio mais fortalecida dentro da comunidade, através das redes sociais, nascida da inesperada paralisia pandémica. 

Por sistema, investimos sempre muito tempo e dinheiro na nossa música antes de chegar ao público, ou seja, antes de haver qualquer retorno financeiro. A pandemia veio escancarar as fissuras do nosso ofício. Somos investidores da música nacional, mas somos precários: os contratos de concertos são escassos, o que significa que, numa crise, os apoios são praticamente inexistentes. 

À lupa, os apoios “extraordinários” aos trabalhadores da cultura durante a pandemia chegaram com atraso comparativamente a outros países europeus, foram curtos, a economia cultural fragilizou-se até quebrar, e, não fossem as iniciativas da União Audiovisual, muitas famílias de profissionais da cultura, de artistas a técnicos, não teriam o que comer durante esses meses. 

Há que lembrar, contudo, o forte apoio que o público deu aos agentes da cultura durante os tempos de COVID — o reconhecimento e amor do público têm um valor imaterial incalculável. Pediram que nos reinventássemos, que não desistíssemos, e aqui estamos, de volta, porque é esta a nossa missão.

É interessante como, face à pressão popular, a palavra extraordinário é usada para tentar colmatar as lacunas: os apoios extraordinários aos profissionais da cultura em tempos de COVID; a abertura extraordinária do CC STOP; o apoio extraordinário ao arrendamento. Que nós somos extraordinários, todos sabemos. Mas, o que verdadeiramente reside por detrás da palavra extraordinário? Reticência em criar estabilidade; desorganização e a ausência de diálogo e de políticas culturais que protejam as mais diversas manifestações culturais; hesitação em proteger as comunidades culturais independentes e resilientes. Sim, essa tal atitude que, acima mencionada, vimos atribuída à comunidade musical. Afinal, a prática é mais ampla e profunda. Aqui, o extraordinário não é celebratório, significa que não é obrigatório; que é suplementar. É usado no sentido de serem apenas acções pontuais para acalmar os cidadãos indignados, são planos de apoio não constantes. Aqui reside o grande perigo da cultura: é extraordinária! E quanto à estabilidade, “não contem com isso”. Salve-se quem puder. 

E agora? Agora, chegaram os turistas, os nómadas digitais, os investidores estrangeiros. Como se explica que exista uma legislação que incentiva a presença de nómadas digitais e não uma política que proteja com dignidade os agentes da cultura do país?

Às cidades, usadas como chamariz turístico, lavaram-se as caras, e tal refletiu-se numa uniformização do comércio, na renovação de edifícios e na expulsão de antigos inquilinos. Apartamentos vazios, outrora lares, foram transformados em Airbnb ou arrendados a  preço de ouro – ouro estrangeiro, claro.  Do comércio local tradicional sobram poucos locais, a restauração nota-se mais uniformizada. Comercializam-se os símbolos de cultura, arrancando-se deles a densidade que é a cultura viva; escasseia a humanidade dos costumes dos habitantes da cidade e das suas manifestações espontâneas. Entramos num café e cumprimentam-nos: “Hello, good morning!”, porque já ninguém espera que os portugueses vivam ali. A minha geração já não consegue viver na sua própria cidade. A minha não: quase todas as gerações.

[Memória para o futuro]

“A Memória é a consciência crítica, a ausência dessa memória deixa a gente refém de qualquer discurso manipulador,” diz Ailton Krenak,  líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro da etnia indígena Krenaque, autor dos livros Ideias para Adiar o Fim do Mundo, A Vida Não É Útil,  entre outros.

O que tem isto a ver com o STOP? Tudo. 

Há um projecto imobiliário aprovado nas imediações do STOP,  uma lavagem programada para a zona oriental da cidade. Traduzindo imediações para português coloquial: é mesmo ali ao lado. Certamente que os investidores não vão querer 500 músicos a ensaiar tão perto, ou ter os hóspedes de um novo hotel a adormecer embalados pelos baixos eléctricos e bombos de bandas metal ou punk-hardcore — o que não é garantido, pois os músicos investiram em isolamento acústico e estão disponíveis para melhorá-lo. 

Este tipo de cultura espontânea, comunitária, independente, contracultura e colaborativa não é desejada no novo plano das nossas cidades. Os artistas livres, independentes e as comunidades culturais que surgem espontaneamente fora de organizações institucionais, e que não se deixarem marcar por estes novos selos, qual gado, serão sempre os mais inovadores.  São aquelas que têm o blueprint de como agradar a gregos e troianos, pois pensam e criam soluções para os problemas reais do país em conjunto com as comunidades locais. Ainda assim, serão também as mais frágeis, mesmo nos grandes centros. E, se pode haver vantagens em estar nas maiores cidades do país, a desvantagem é que a pressão é muito maior. Uma coisa é ser, outra é parecer. E ao turismo, para vender quartos,  interessa só parecer — ser dá muito trabalho.  

Algumas comunidades resistem e tornam-se exemplos: veja-se o Bons Sons em Tomar e o Tremor nos Açores, para citar apenas dois belos exemplos de como fazer e ser. Depois de toda a dedicação e resiliência, quando o público as abraça como manifestações de cultura viva, tornam-se no exemplo mais saudável de turismo cultural. Mas, depois, é no advérbio que reside a grande dificuldade. O STOP também é um desses exemplos, só ainda não foi reconhecido, valorizado e devidamente protegido pela Câmara Municipal da Cidade do Porto. Se os apoios e reconhecimento viessem antes ou durante — isso sim, seria um investimento público estável na nossa cultura.

Qual é a lógica para que se abata assim, como se não fosse nada, uma comunidade artística saudável, plural e diversificada, de criação de património imaterial da nossa cultura,  que deve ser protegida a todo o custo? Um ecossistema sem selo, cujo equilíbrio existe na sua biodiversidade, que beneficia e valoriza a comunidade e a geografia onde se encontra, que preserva a nossa cultura viva, e nos dá ar para respirar a nossa nova música?

Acentua-se cada vez mais, na cultura nacional pós-pandémica, a ilusão de que os turistas culturais vêm em busca de uma cultura uniformizada e capitalizada — onde é que eu já vi isto? Ah, espera-número-2: antes de 1974. 

A democracia terá chegado profundamente às instituições e às práticas sociais ou estaremos reféns ainda dos hábitos antigos no subconsciente colectivo? Isto porque, no que diz respeito à cultura, estamos muito aquém.



[O turista que nos visita e a cultura que lhe dão a provar] 

Em 2020, pesquisei a percentagem de Turismo Cultural em Portugal. Creio que rondava os 30%, valor que deve ter subido desde então. É ingénuo acreditar que os turistas culturais que nos visitam são tão pouco exigentes e sensíveis que apenas consumirão uma  monocultura superficial, uniformizada e com selos institucionais. Estes turistas, tão sofregamente desejados para estabilizar a economia nacional, são só pessoas como nós. São seres sensíveis e de pensamento crítico que vêm até cá para se sentirem arrebatados emocionalmente pela beleza da natureza e das expressões culturais do país. Chegam-nos de países que, muitas vezes, têm o cuidado de preservar e proteger os seus agentes culturais. Portanto, indignam-se com o que lhes é oferecido e com a instabilidade do nosso sector. Portugal, o país de poetas, não os alimenta? I’m sorry to inform you, mas não. “Where can I get real culture?”, perguntou-me uma americana a viajar sozinha pelo nosso país, na semana passada. Pergunta por demais pertinente.

Não é surpresa então que, mergulhando a fundo nos sites internacionais de turismo e de nómadas digitais, se encontrem já muitas críticas negativas aos efeitos destas novas políticas de pseudo-renovação do nosso país. Chega a ser cómico, de tão trágico — a comédia é uma maneira de lidar com a situação limite, já que a outra opção é ficarmos prostrados em posição fetal, paralisados com o panorama actual. Uma notícia num site de notícias nacional mencionou a crescente insatisfação de quem nos visita, incluindo transcrições dos comentários do site da NomadList, onde Lisboa há muito tempo figura no topo da lista. 

Sobre Lisboa: “… é cara, suja, e pouco segura.”; “Se caminhar no centro, vai encontrar zero pessoas portuguesas. Quase todas as pessoas são estrangeiros, não se sente a pulsação à cidade, não tem alma. É tudo feito para os turistas. Tornou-se inabitável para os locais porque os portugueses vivem com salários mínimos de 700 euros.”; e um outro comentário, para finalizar, que me atingiu como uma flecha: “Os portugueses não cuidam da aparência e parecem tristes.” Parecem tristes. Repito: parecem tristes. Isto não vos comove? 

Não será, então, a boicotar as comunidades espontâneas de criadores nacionais de onde nascem as reais soluções para os problemas do sector, de onde brotam uma miríade de manifestações culturais que se organizam espontaneamente em ecossistemas saudáveis que nos dão esperança e vida real, como o STOP, e a negar o apoio público na altura em que os artistas mais precisam que retomaremos a estabilidade económica através do turismo ou dos tão desejados nómadas digitais.

Estamos a tornar a nossa cultura estéril. Os efeitos que isso terá na sociedade a médio e longo prazo são assustadores. Esta visão política sobre a cultura, ou falta dela, está a sufocar silenciosamente, e a uma velocidade estonteante, as mais diversas manifestações culturais. Sem um plano sustentável a médio prazo, independente de legislaturas, não haverá galinha dos ovos de ouro aqui — enganaram-se. As consequências, em poucos anos, já são desastrosas. Os profissionais da cultura deste país são resilientes, todos sabemos o quanto se têm reinventado a cada crise, já assistimos ao seu retorno muitas vezes. Mas, até quando? E para onde vamos regressar? É que, depois de perder o lugar onde se cria, há a real ameaça de perder a casa onde se dorme, já sem muita comida no frigorífico; e, relembro, continuamos precários, sem direitos que correspondam aos nossos deveres burocráticos. Qual é o sentido de fechar as portas a uma comunidade que criou o seu modelo de sustentabilidade? Sem local onde trabalhar, não é possível criar. Sem estúdios, não há discos. Sem salas de ensaios, não há concertos. E abandone-se desde já a ideia do artista iluminado que passa fome: criar não é isso. A fome e o silenciamento forçado não são poéticos.

Ficaremos reduzidos a isto: um país sem direito à sua própria cultura? 

Demorei semanas a conseguir expressar por palavras o que sentia. Estou em contra-relógio, já que as salas do STOP estão a ser desmanteladas enquanto escrevo. Apesar de haver um sinal positivo da comissão parlamentar para a cultura, unânime em querer ouvir os inquilinos e os administradores do STOP, e um muito recente aviso da CMP — a  21 de Setembro de 2023 foi anunciado que o STOP só poderá encerrar quando a administração do edifício receber o despacho, previsto para dia 6 de Outubro  — nada é concreto, nada é seguro. 

A 22 de Setembro, as ruas do Porto voltaram a encher-se de músicos numa manifestação, a plenos pulmões, exigindo de volta a sua casa da Música. Uma segunda lição. 

Em Lisboa, na manifestação em solidariedade com os músicos do STOP, desta feita convocada por Tomás Bonet, de 22 anos, angustiado com o que se passa a norte, contavam-se pelos dedos das mãos os presentes. Um cidadão aproximou-se e apresentou-se: Fernando Limão, avô da fotógrafa Meru Freire, que se indignou e  emocionou em frente à escolta policial, em Julho, e uma das autoras de lençóis da primeira manifestação, onde se podia ler, entre outros “Porto Devo Luto” e “Ó Moreira, deixa-nos concertar!”. O avô falou-nos, orgulhoso, da neta e do seu papel na defesa do STOP. Contou-nos que, antes de 1974, também ele esteve nas ruas a usar a sua voz contra as injustiças da ditadura e da PIDE. Agradecemos-lhe, muito emocionados, não só pela coincidência de ser avô da Meru e estar ali connosco no Rossio, mas, por ter lutado pela nossa liberdade e pelo nosso direito à manifestação. Fernando agradeceu-nos por usarmos agora esse nosso direito, mas deixou-nos com um aviso: “olhem que isto está quase a acabar.” Isto, o direito a termos voz. 

Ironicamente, em Lisboa, foram os turistas os mais interessados em saber por que estávamos ali. Partilharam connosco que o apagamento de espaços culturais e a especulação imobiliária acontecem também nas suas cidades, nomeadamente, em Bremen e Budapeste. Bernardete e Birgitta, dos arredores de Bremen, fizeram questão de ser fotografadas com os cartazes, em apoio ao STOP.

Vai ser preciso muito.

Sinto o dever de continuar a apelar. É cada vez mais urgente. Ainda não é tarde demais. O que se está a passar no STOP não é um problema de alguns músicos do Porto, ou dos agentes da cultura de uma rua da cidade — é um problema nosso, de todos. Dê-se o empurrão: temos de ser firmes em proteger e cuidar com afinco da nossa cultura, em garantir o nosso direito a ser. A massa crítica somos todos nós, cidadãos: o público dos eventos, os destinatários que usufruem das manifestações culturais e que através delas se emocionam e transformam. Somos todos público e a cultura não faz sentido de outra forma. Proteger o STOP e garantir-lhe os meios para que atinja o seu clímax em liberdade é essencial: para que continue a ser uma floresta virgem musical na cidade do Porto e um precedente para outras iniciativas culturais do país. 

30 de Setembro. Milhares de pessoas encheram as ruas do país, a gritar pelo direito a uma casa, por uma vida digna, e por um planeta onde viver. As frentes de activistas, as colectividades, as associações, e as pessoas uniram-se. Sigamos os exemplos ferozes da comunidade do Centro Cultural  STOP e dos milhares de cidadãos que ocuparam as ruas a defender o seu direito à habitação: largue-se o medo no passado e use-se a voz a plenos pulmões, porque só juntos conseguiremos. Preservar as nossas cidades e exigir o direito à fruição da nossa expressão artística é por demais precioso: é preservar a nossa alma, é manter viva a nossa poesia.

Um agradecimento aos fotógrafos pela cedência das imagens, e à Catarina Valadas, Mafalda Brogueira, e Maria João B. Marques.

Links e redes de apoio ao STOP:

Assinar Petição Em Defesa dos Músicos do CC STOP

A.L.M.A. STOP

STOP MANIFESTA


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