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Fotografia: Simon Trel / Mínima
Publicado a: 05/02/2023

De Colectivo Osso a Alfons Silk.

Festival Porta-Jazz’23 — Dia 3: uma moldura de originalidade para uma maratona de música

Fotografia: Simon Trel / Mínima
Publicado a: 05/02/2023

A primeira das duas grandes maratonas que sempre acontecem no Festival Porta-Jazz teve ontem, 4 de Fevereiro, lugar no Rivoli, que volta a acolher um evento que vive agora a sua aventureira “adolescência”, à 13ª edição: foram seis intensas apresentações emolduradas, a abrir e fechar, por duas das mais originais propostas deste diverso cartaz – o Colectivo Osso que nos mostrou as suas Interferências e também a dupla polaca Alfons Slik que… bem, que partiu tudo, mas já lá iremos.

Interessante, a utilização plena dos diferentes espaços do Teatro Rivoli: no átrio encontra-se a muito bem recheada banca de merchandising, que oferece não apenas boa parte do vasto catálogo da Carimbo Porta-Jazz, mas também diferentes títulos que alguns dos seus artistas possuem noutros selos, bem como discos dos projectos internacionais que por aqui se apresentam a convite desta militante e Invicta associação; no Café Rivoli não se bebem apenas copos, entre refeições, mas recebem-se igualmente os alunos das diferentes instituições de ensino convidadas para as tardias jam sessions. Os concertos propriamente ditos dividem-se depois por quatro diferentes espaços: os dois auditórios – um Grande e outro, naturalmente, Pequeno – e ainda, no primeiro dos blocos das tardes de sábado e também de domingo, um palco com uma mais reduzida bancada que se “esconde” por trás da cortina do palco do Grande Auditório e ainda o sub-palco, nas entranhas do edifício.

O primeiro dos concertos do dia de ontem foi também a primeira grande surpresa do festival. O Colectivo Osso tem “sede” nas Caldas da Rainha e incluiu, nesta ocasião, Joana Castro (movimento), Nuno Morão (bateria) e Ricardo Jacinto (violoncelo). A eles juntaram-se, enquanto “enviados especiais” da Porta-Jazz, Susana Santos Silva (trompete) e João Grilo (piano). Só que há mais: todos os elementos recorreram igualmente a ferramentas electrónicas e todos usaram a sua voz. 

O concerto deste Colectivo Osso começou com o movimento (lá está…) lento e circular de Joana Castro (que é, na verdade, coreógrafa) que segurava o que depressa se confirmou ser um transistor, que ia aproximando e afastando de um microfone. O silêncio tornou-se tranquila “chuva” estática em que depois se envolveram os outros elementos, cada um com o seu transistor na mão, de antena erguida, a captar não apenas a estática que habita o éter, mas a ocasional emissão local de rádio, esculpindo com paciência uma densa teia sonora. O processo tornou-se mais complexo quando esses dispositivos foram igualmente utilizados para captarem as próprias vozes dos músicos em palco, numa série de interferências (título do espectáculo justificado) que criaram uma harmónica nuvem de vozes. A ideia de espectros radiofónicos que nos rodeiam foi acentuada quando de repente o piano vertical que se encontrava no palco, de tampa aberta, revelou ser electrónico e começou a tocar “sozinho” respondendo, obviamente, aos comandos MIDI enviados por João Grilo que se encontrava de olhar concentrado num computador.

A música mostrou-se muito ambiental, espectral pois claro, de tonalidades sombrias sublimadas pela parca iluminação. Quando, no final, Susana Santos Silva abraçou uma criança que marcou presença no espectáculo, foi certamente para a tranquilizar, já que o carácter algo arrepiante da apresentação poderia ter impressionado mentes mais sensíveis. Uma proposta profundamente original, sem a menor sombra de dúvida, que surpreendeu por estar integrada neste festival.

A outra surpresa, como indicámos, ocorreu no final da noite, quando a dupla formada por Gregorz Tarwid (piano, electrónica e voz) e Szymon Gasiorek (bateria, percussão, electrónica e voz), denominada Alfons Slik, subiu ao palco do Grande Auditório após uma bem divertida introdução de Susana Santos Silva.

Sim, na tampa do piano acústico encontrava-se também um pequeno teclado, mas nada nos preparou para a mistura de efusivo sentido de humor/desbragada criatividade/original abordagem musical que deu para tudo: para se cruzar música de inspiração erudita com hip hop, jazz e o que soou a inventiva aproximação ao que poderá ser alguma da menos “nobre” música pop do seu país (como será que se diz “pimba” em polaco?), para a profundamente original combinação das dimensões acústica e electrónica, para os momentos de quase-stand up em que o baterista Szymon traduziu a letra polaca que ambos cantaram – “don’t be shy and dance if you feel like it / because it’s better to regret what you did than to regret what you didn’t do”. Após esse esclarecimento, o público foi convidado a dizer o que lhe fosse na alma e alguém gritou um apropriado “fascismo nunca mais” (ok, foi o autor destas linhas…) que motivou alguns aplausos.

Há, definitivamente algo de muito punk nestes Alfons Slik, que têm sérios dotes técnicos (o uso de dois pedais no bombo por parte de Szymon é altamente original), que tocam de forma muito elaborada, mas que sabem igualmente de forma bem lúdica desmontar todas essas práticas em favor de uma delirante e bem vinda vénia à liberdade. Concerto do festival? Só o desenrolar do dia de hoje, o derradeiro do programa, poderá confirmar isso mesmo.

Entre o Colectivo Osso, que inaugurou a longa jornada, e os Alfons Slik, que lhe colocaram um quase ponto-final (houve ainda ligar à apresentação dos alunos da ESMAE e à jam session onde brilhou um sempre certeiro Mané Fernandes na guitarra), houve espaço para mais quatro concertos. 

Os portugueses Umbral desceram ao sub-palco, de alvas e irónicas vestes (não tão irónicas quanto o modelo death metal da guitarra escolhida pelo compositor de serviço) para mostrarem o álbum de que se falou por aqui: Catarina Lacerda como narradora, João Pedro Brandão na flauta e saxofone, Nuno Trocado na tal guitarra comprada a uma banda nórdica, Sérgio Tavares no contrabaixo, Acácio Salero na bateria, Pedro Pires Cabral no theremin e samples a darem enquadramento musical aos textos de Jorge Louraço Figueira, uma espécie de realismo mágico versão tuga que assombra tanto quanto encanta. Algum peso rock em determinados momentos que levou até uma menina a dançar e o ar de banda sonora de filme independente à espera de ser rodado em Trás-os-Montes caracterizaram esta belíssima apresentação que encerrou o primeiro bloco.

A segunda etapa da tal maratona preencheu o pequeno auditório: em primeiro lugar o trio lituano-norueguês do saxofonista Ludas Mockunas (em soprano, sopranino e clarinete), do pianista e acordeonista Arnas Mikalkenas e do nórdico baterista Hakon Berre. Nesta apresentação que tanto se acercou de uma certa tradição erudita de câmara europeia ficou também patente um eixo estético do festival que parece, acidental ou propositadamente, acolher projectos que têm essa dimensão. Para os ouvidos de quem aqui escreve, a coisa soou um pouco estéril ou formulaica, mas o público não regateou aplausos e isso é que realmente interessa.

Bem mais interessante foi o concerto do trio do guitarrista Eurico Costa que trouxe ao palco o seu trabalho Copal em que se integram ainda os talentosos Demian Cabaud no contrabaixo e Marcos Cavaleiro na bateria. Ver e escutar o guitarrismo de Eurico Costa em acção é um absoluto privilégio: não é frequente ver tamanha técnica temperada com alma funda, equilibrando numa corda bamba de requinte ecos de flamenco e bossa nova como quem não teme o abismo. A palavra certa para isto é “classe”.

Falta mencionar a “encomenda” do festival ao jovem pianista e compositor Miguel Meirinhos que recrutou Ricardo Formoso (trompete), o britânico John Schofield (saxofone alto), João Fragoso (contrabaixo) e João Cardita (bateria). E sobre este espectáculo uma conclusão: muito curioso como até aqui, os mais jovens músicos, que são também aqueles que ainda se encontram mais próximos dos cânones académicos, parecem ser bem menos aventureiros do que os seus mais experimentados companheiros de festival. Composições escorreitas, mas sem risco, elegantes e correctas, mas sem surpresa, executadas por jovens músicos que, francamente, parecem mais preocupados em não “errar” perante plateias em que sabem encontrar-se veteranos que admiram do que em tentar esquecer tudo o que aprenderam em favor de inventar novas formas de estar. Lá chegarão, certamente!


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