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Fotografia: Simon Trel / Mínima
Publicado a: 04/02/2023

Bravos e corajosos.

Festival Porta-Jazz’23 – Dia 2: cultura em movimento, gerações múltiplas e alegria no trabalho

Fotografia: Simon Trel / Mínima
Publicado a: 04/02/2023

Depois do preâmbulo na nova sede, aconteceu ontem o arranque “a sério” do 13º Festival Porta-Jazz com a primeira jornada no Rivoli, dividida por dois blocos de programação, um à tarde, com início pelas 18:15, e outro à noite, a partir das 21:30. Há algo de extremamente corajoso nesta proposta de 16 concertos em três concentrados dias (a que acrescem as jam sessions no espaço do Café Rivoli e ainda o concerto de boas vindas no novo espaço Porta-Jazz): numa era de atenção diminuta, em que os eventos ou propõem a deambulação entre espaços, muitas vezes com sobreposição de espectáculos que obriga a tomada de opções, ou se espraiam no tempo de forma a conseguirem captar espectadores, esta verdadeira injecção de nova música tem o sabor de bravo remar contra uma inevitável maré. É uma maratona que tem o condão de exigir atenção, mas recompensa a endurance de quem aceita o desafio de nada perder.

Ontem, sexta-feira, 3 de Fevereiro, o Rivoli começou por receber a apresentação de Hindrances, a mais recente edição da Carimbo Porta-Jazz, a cargo do trio comandado pelo pianista Pedro Neves, e ainda, durante o primeiro bloco pré-jantar, dos suíços Wabjie, num arranque prometedor que, de certa forma, serviu quase como projecção do próprio conceito do festival: duas propostas vincadamente diferenciadas, com músicos portugueses e estrangeiros, que resultam ou de incubação no seio de uma família — Hindrances, que além do habitual formato de CD (e uma palavra de apreço para a Porta-Jazz por ter lançado as caixas que permitem resolver o problema de arrumação das suas edições que, como bem sabe quem as colecciona, fogem aos formatos convencionais) mereceu igualmente lançamento em vinil, é já o quarto título do Pedro Neves Trio na etiqueta portuense — ou de intercâmbio com plataformas que noutros países actuam junto das suas comunidades com propósitos semelhantes aos da Porta-Jazz. Isto é verdadeira cultura em acção.

Com José Marrucho na bateria e o aparentemente ubíquo Miguel Ângelo no contrabaixo, Pedro Neves não conseguia sacudir o sorriso no rosto que traduzia não só a justificada felicidade por poder estar a apresentar aquela que é a entrada número 90 (!!!) no catálogo da Carimbo Porta-Jazz, mas também o puro deleite de estar a tocar a sua música. As composições de Pedro Neves encaixam-se nesse indefinível lugar que se encontra entre a tradição — e é funda, a dos trios de piano, bateria e contrabaixo — e a busca pelo que é novo. E se a elegância que deriva da intimidade com o cânone está sempre exposta, o risco também não se esconde, como quando sobre o walking bass de Ângelo, de forma algo misteriosa, Neves parece conseguir extrair das teclas mais agudas do seu instrumento os sons que traduzem o bulício de uma cidade — talvez mesmo a Invicta… —, ou quando o trio de repente parece tentar a criação de uma banda sonora para um vídeo que mostre objectos caindo por escadas abaixo, ou ainda quando o trio encaixa num groove minimal e cubista que soa quase hip hop. Um triunfo, com os três músicos a denotarem verdadeira coesão de grupo, sinal de uma ideia maturada com muito trabalho. “Era um vinil de Hindrances, sff”.

Depois de um curto intervalo subiu ao palco o curioso trio Wabjie em que se encontram a vocalista Soraya Berent, o pianista Michel Wintsch e o baterista Samuel Jakubec. Tanto o pianista como a vocalista acrescentam aos seus principais instrumentos alguma electrónica: Michel apimenta o seu pianismo com um trio de sintetizadores que usa em conjugação perfeita com a sua máquina acústica de fabricar harmonias; por outro lado, Soraya contorna a ausência de um baixo na formação extraindo graves de uma bass station gerando dessa forma frases que dão devida fundação no espectro mais baixo das frequências à abstracta música do trio. Annette Peacock nos seus mais livres arremedos foi um dos nomes que nos ocorreu. O trabalho de Michel Wintsch merece destaque: é de uma enorme originalidade e da sua imaginativa combinação de arpégios acústicos e dobras electrónicas surgiram algumas das mais entusiasmantes passagens da bem humorada apresentação do trio.

A pausa para jantar, em que é sempre possível qualquer pessoa cruzar-se no agradável espaço do Café Rivoli com artistas, outros espectadores, jornalistas, agentes e outros e outras participantes desta aventura, encetando interessantes conversas, precedeu o segundo bloco do dia em que se apresentaram os trabalhos Dharma Bums de Gianni Narduzzi e Serpente do Carlos Azevedo Quarteto. E nesta dupla proposta adivinha-se mais um contraste muito ponderado, certamente: a exuberante juventude do combo liderado pelo contrabaixista italiano que escolheu o Porto como base de trabalho e a incontestável veterania do pianista portuense, uma verdadeira referência da cultura da cidade. Sobre esses dois registos carimbados pela Porta-Jazz, escreveu-se aqui.

Para dar as boas vindas ao segundo bloco da peogramação, João Pedro Brandão veio a palco e usou — qual político — três vezes a palavra “movimento” para traduzir a vibração desta aventura. A mensagem passou claramente: o que o Festival Porta-Jazz traduz é uma vontade colectiva, uma vibração local que, tendo em conta a variedade de línguas escutadas, está a ser captada em diferentes latitudes. Ainda bem.

Gianni Narduzzi, do alto do seu contrabaixo, fez- se acompanhar por Hugo Caldeira no trombone, Afonso Silva no saxofone, Joaquim Festas na guitarra e Gonçalo Ribeiro na bateria. Uma palavra para a opção de Festas, que dispensa pedais e processamento original, e confia apenas na “personalidade” da sua hollow body para transmitir as suas ideias, algo que pode não ter funcionado em pleno, sobretudo quando comparado com a forte presença dos sopros na arquitectura imaginada por Gianni para dar corpo às suas composições. Mas os aplausos para a energia da juventude, para a alegria de Narduzzi e para a irmandade do colectivo impõem-se, sem dúvida.

Finalmente, escutámos Carlos Azevedo, mais uma boa alma em absoluto estado de graça perante o impulso do tal “movimento” de que falava Brandão. Com o “repetente” Miguel Ângelo no contrabaixo (que o líder descreveu com uma frase que se pode traduzir em algo como “ele é que faz isto mexer”), Mário Costa na bateria e Miguel Moreira na guitarra, este concerto foi uma espécie de manifesto, em que o decano desfilou a sua ideia de jazz — uma ética que lhe permite construir relações e dialogar com outras sonoridades, culturas, posturas. Bem divertida a atitude de Miguel Moreira que, com farta pedaleira à disposição, foi transformando a guitarra a seu belo prazer, em absoluto contraste com o guitarrista anterior. Curioso o paradoxo: um jovem purista, e um mais… veterano aventureiro. Faz sentido.

Hoje há mais seis concertos. Apertem os cintos…



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