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Fotografia: Adriana Melo (Mínima/Porta-Jazz)
Publicado a: 09/02/2022

Agitar, agitar e agitar.

Festival Porta-Jazz’22 – Dia 3: Associação para o Avanço de Músicos Criativos

Fotografia: Adriana Melo (Mínima/Porta-Jazz)
Publicado a: 09/02/2022

É uma verdadeira Associação para o Avanço de Músicos Criativos, a portuense Porta-Jazz, que no seu festival mostra anualmente o resultado de um empenhado trabalho de estímulo colectivo da invenção e da procura oferecendo à sua comunidade a possibilidade de expressar, em disco e em palco, toda a criativa música que vai produzindo com notável consistência. No passado domingo (circunstâncias extraordinárias atrasaram este último texto), divididos por três blocos distintos, mais seis projectos alinharam-se em intensa maratona que começou pelas 16 horas no Teatro Municipal Rivoli e só terminou já perto da meia-noite. No final da noite anterior, no sábado, uma foto garantiu que a posteridade possa recordar esta Associação, que como outras, no passado e presente, noutras cidades (e, como é óbvio, foi à histórica Association for the Advancement of Creative Musicians de Chicago que pedimos emprestada a ideia para este título) e noutros contextos culturais, foram empurrando artistas para o futuro. À Porta-Jazz, sente-se na forma como se entregam a este evento e a todas as outras actividades, importa esse mesmo futuro, construído diariamente a partir de um agora que se quer tão agitado quanto possível.

No domingo, foi com “relatório de contas” do deve e haver resultante da parceria com a associação de músicos suíça AMR que o dia arrancou no espaço do Palco GA. Afonso Silva e Eloi Calame nos saxofones, Hugo Ferreira na guitarra, Pierre Bald no contrabaixo e João Pedro Almeida na bateria — este último é mais conhecido nos meandros da produção rap como Il-Brutto. Um óptimo início, com os sopros a dominarem a paisagem que se estendeu por um jazz de raízes clássicas, rigoroso na estruturas, mas com arrojo para deambulações mais livres em momentos pontuais. Ainda no primeiro Bloco, fomos convidados a sair de trás do palco do Grande Auditório para descermos ao sub-palco para assistirmos à prestação dos WIZ, trio multinacional em que militam o português José Pedro Coelho (saxofone), o francês Wilfried Wilde (guitarra) e o espanhol Iago Fernandez (bateria). As despesas de composição são divididas por todos, sinal de uma igualdade que o trio cultiva no seu som.

Sobre o álbum homónimo dos WIZ, lançado no final do ano passado, escrevi por aqui tentando sublinhar o “delicado, mas pacientemente urdido equilíbrio entre os três instrumentos, cada um com lugar perfeitamente definido no quadro sónico desenhado, sem baixo, mas com expressividade melódica bem acentuada, ora nos uníssonos de guitarra e saxofone, ora nas derivas individuais. O trio oscila entre a expressividade mais poética (escute-se “Modus Novus” ou “Bilogy”, por exemplo) e um registo mais angular (como na demasiado breve “Mola”, com Wilde e Coelho em animado jogo de espelhos)”, facto que, aliás, ficou bastante patente num concerto em que Coelho voltou a brilhar com intensa presença.

No arranque do segundo Bloco do dia, o 6º do programa, descobrimos uma das melhores surpresas deste festival com o concerto resultante da Encomenda a Daniel Sousa. Natural do Porto, este “saxofonista alternativo” (as palavras são do próprio, de acordo com o programa) que actualmente reside em Copenhaga recrutou uma série de cúmplices para a apresentação de uma música fresca, que viaja entre mundos, dotada de enorme expressividade e com marcada elegância exposta nos arranjos: ao saxofonista alto e também cantor juntaram-se a surpreendente Susana Nunes na voz, Wanja Slavin no saxofone alto e flauta, PJ Fossum no sintetizador Prophet 12, José Diogo Martins no piano, Filipe Louro no baixo eléctrico e Eduardo Dias na bateria – todos músicos muito competentes, naturalmente interessados em escapar aos dogmas idiomáticos dos respectivos instrumentos (o kit do baterista, por exemplo, estava dilatado com tambores tradicionais portugueses), facto que se espelhava numa música que não tem qualquer interesse em trilhar caminhos já muito conhecidos. A formação algo dilatada possibilitou a Daniel Sousa experimentar com diferentes combinações de músicos, forma de buscar naturalmente outro tipo de geometrias para uma música que se quer solta. A dado momento, por exemplo, fomos prendados com uma meditação para sax alto, sintetizador e piano, com a voz a coroar a peça num efeito sinceramente tocante. Curiosa também a forma como a voz de Susana Nunes se harmonizava com os saxofones, ao ponto de por vezes não ser imediatamente discernível se se escutavam três sopros ou três vocalistas. E entre tangentes à Música Popular Brasileira dos anos 70 ou ao minimalismo americano escola Philip Glass, Daniel Sousa lá foi desenhando o seu próprio mapa. Urgente traduzir isto num álbum que se possa guardar em casa.

No segundo concerto deste bloco escutámos a Dança dos Desastrados do contrabaixista Miguel Ângelo que se fez ladear por João Guimarães no saxofone, Joaquim Rodrigues no piano e Marcos Cavaleiro na bateria. Sobre o álbum, em que toca a mesma formação, escreveu-se aqui: “Esse entendimento dos quatro músicos, burilado em estúdio há já quase uma década e exibido ao vivo em várias ocasiões, permite que este seja um álbum vívido, de poéticas fantasias dançantes. No tema que dá título ao álbum todos os instrumentos dançam: a bateria e o contrabaixo em perfeito balanço, que se traduz numa base que é poeticamente aproveitada tanto pelo saxofone como pelo piano para jogos de animada e lúdica exploração”. A ideia que o disco, lançado em 2021, transmite, tem reflexo perfeito no palco: o concerto foi escorreito, agradável, assumindo sem problemas os cânones jazzísticos que a apresentação anterior procurou descartar. Sinal de uma saudável variedade de posturas que este festival também acolhe.

Os dois últimos concertos decorreram no Grande Auditório, já após a hora de jantar e perante uma plateia generosa visivelmente satisfeita por ter podido desfrutar de mais uma belíssima edição do Festival Porta-Jazz – o ânimo era mesmo mais do que evidente. 

Para começar o último dos Blocos, o baterista Alfred Vogel apresentou um espectáculo que traduz uma aliança com o festival austríaco Bezeau Beatz. Acompanhado pelo expressivo Theo Ceccaldi no violino, por Felix Hauptamn no piano, Chris Dahlgren no contrabaixo e Leif Berger em segunda bateria, Vogel guiou o colectivo pela viagem mais free do programa, sem pautas à vista, com a improvisação a servir de mapa para nos guiar por um território desconhecido. O concerto começou – e mais tarde, terminou – com os músicos a estabelecerem o “mood” com pequenos sinos tibetanos, numa tentativa de alinhar espiritualmente a plateia, como se em vez do Rivoli em 2022 este concerto estivesse a decorrer numa qualquer comuna da Europa central em meados dos anos 70. Deu para crescendos de intensidade, planaltos de meditativa acalmia – com o violino de Ceccaldi sempre em grande destaque – e regressos ao caos, antes da despedida novamente em romaria com sinos. Estranho e bonito em igual medida.

E para o final, uma super banda montada para o músico brasileiro António Loureiro (que já havíamos escutado no concerto de Manuel Linhares) com o pianista, teclista, vocalista e compositor a ser acompanhado por André Fernandes na guitarra, João Mortágua no saxofone, Gil Silva no trombone, José Carlos Barbosa no contrabaixo e Diogo Alexandre na bateria. Um colectivo que esteve mais acercado da tradição MPB do que dos grandes rios do jazz, seguindo as composições de Loureiro que expôs uma voz algo frágil sem medos e conseguiu – mérito seu, pois claro – que o ponto final nesta agitada viagem criativa de três dias fosse colocado em tom festivo. Mais do que adequado, claro. A vida da Porta-Jazz continua, sem pausas, por este promissor 2022 a fora. Sigam-na.

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