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Fotografia: Nuno Conceição
Publicado a: 06/06/2025

O amor à descentralização cultural.

Festival Impulso’25: todos os caminhos vão dar ao Caldas Late Night

Fotografia: Nuno Conceição
Publicado a: 06/06/2025

Foi no raiar do mês de Fevereiro que o Festival Impulso anunciou um 2025 a transbordar de concertos. Com a curadoria da Pulsonar Associação, o ano desenrolou-se com um suculento alinhamento com nomes como Maria Reis, Fidju Kitxora, Lena d’Água ou Linda Martini; e uma nova e grandiosa colaboração com o lendário Caldas Late Night. A beleza intransponível de um evento em que os estudantes da Escola Superior de Arte e Design — e demais residentes das Caldas da Rainha — abrem as suas casas a qualquer pessoa para uma partilha comunitária de arte e cultura, viu-se agora exponenciada com esta comunhão, capaz de nela criar um cantinho maior para a cena musical (que sempre existiu nalgum apartamento, terraço ou jardim da cidade). Acima de tudo, primando pela diversidade de géneros, desmoronando qualquer última barreira que se quisesse erguer perante este movimento cooperativo onde quem reina é o amor. Sempre, sempre de portas abertas a todos.

Na sexta-feira, dia 30, a tarde começava cedo (demais) no Centro das Artes com moisés, jovem conterrâneo do festival, que encontra no hip hop e nos seus subgéneros a exposição daquilo que é a sua jornada, minada de beats, grooves e desabafos. Com a tarde já a querer fugir, aproveitando até à última os raios directos do sol de Maio, seguiu-lhe Joana Guerra. Com as suas espirais de vozes, o seu tom a saudade e as suas melodias distorcidas, a violoncelista lisboeta costurou loops sobre um tecido harmónico e distópico. E com a estranha melancolia que emana da sua música, algures entre o noise, o jazz e o experimental, transformou aquele palco improvisado à beira-relva numa pequena Ilha dos Amores com sombra e distorção.

A segunda parte do primeiro dia avançava já de noite no Centro Cultural das Caldas (CCC), com Subnóia. Seria difícil dissociar este conjunto dos Portishead. É clara, na sua aura mística e negra com uma voz doce mas empoderada, a influência que os monstros do trip hop deixaram na música que produzem. Com golpadas fortes de hip hop tuga contemporâneo e submersões mais pop, o trio foi um bom acepipe para uma noite em crescendo. E a sala que timidamente se foi enchendo, encheu mesmo para Bia Maria e o Coro Social do Bairro. Poderia ter sido o facto de ser a oportunidade perfeita para um concerto pós-jantar, mas foi algo mais que ali levou aquelas pessoas. Com um álbum lançado no final do ano passado, Qualquer Um Pode Cantar, bem acolhido pela crítica (e pelos comuns apreciadores de música), a cantautora oureense pousou naquele palco como um pássaro com um canto fadístico de notas de tristeza e poesia. E pegou na sua voz amena, numa sala a cheirar a campo, para nos dizer que é por todos nós (o coro, o público, os que não se calam) que ela não perde a sua voz e que assim — sim, assim! — a solidão nunca vence. E ali, com essa voz reforçada por todas as outras que ali se lhe juntavam, Bia Maria cantou e lutou pelos direitos das mulheres com a “Marcha da Paridade”, e pelos direito de todos com a apoteótica interpretação com o seu coro de “Eu Vi Este Povo a Lutar (Confederação)”, de José Mário Branco.

Enquanto a debandada se dividia entre o jazz dançável de YAKUZA a fechar a noite no CCC e o punk jardado de Ideal Victim a abrir as cerimónias nos Silos Contentor Criativo, decisões tiveram de ser tomadas. Abrindo espaço à epopeia sonora dos YAKUZA com o seu groove etéreo, as guerras de ritmos e o seu ousado abanar de ancas, a viagem até à “Penha” (de França) decretava a partida para outro destino, deixando para trás Zancudo Berraco e a sua electrónica analógica experimental, onde as linhas ácidas se fundem com a percussão sem nunca se encontrarem com o convencional. A quinze minutos de distância, os Ideal Victim chamavam, mas já era tarde demais. A ceia terminava então com os nortenhos Cobrafuma e o seu thrash metal/sludge, responsável por todo o respingar de suor do chão dos Silos. Pernas no ar, barbas negras, riffs de puxar a cabeça até ao chão e cerveja em todo o lado. Se este é o último prato, depois de tamanho repasto e tamanha variedade, podem então dormir descansados.



O segundo dia do festival antevia uma mão cheia de concertos de luxo a começar às 21h no CCC. Enquanto a cidade e as pessoas se dividiam entre exposições, DJ sets, lutas de almofadas na Praça da Fruta ou o magnífico slide (com água) onde qualquer um podia deslizar rua abaixo, o Impulso começava de uma forma diferente. Ao invés do Centro das Artes, para receber o grupo coral Leida, a Pulsonar escolheu aquele que pode facilmente ser o local mais propício para este primeiro espectáculo: a Igreja Nossa Senhora do Pópulo. Como não ver na acústica de uma igreja o real púlpito para um instrumento a oito vozes brilhar na sua expressão máxima?

bbb hairdryer pediam um palco como o do Centro Cultural das Caldas. Aliás, mais do que isso, merecem-no. Com o enorme A Single Mother / A Single Woman / An Only Child, lançado mesmo no final de 2024 (ganhando também ele várias menções honrosas nas às-vezes-não-tão-aborrecidas-listas-de-fim-de-ano), voltaram a palco para mais um estoico e destrutivo concerto. As letras e as músicas não saem só dos instrumentos nem da voz. Saem-lhes do pêlo. Elisabete corre, grita, empurra, agride-se, e purga tudo, tudo, tudo, para criar um safe space que nos permite a também poder fazê-lo. Com a inclusividade habitual de “queers to the front” e de pessoas mais baixas nas primeiras filas, o rock ganha espaço, perde as amarras e ganha dentes. Dentes para rasgar preconceitos e, mais do que tudo, para ferrar durante esta luta que se torna cada vez mais necessária, cada vez mais nossa.

Na perfeita continuação do alinhamento da noite, Vaiapraia fez do CCC uma casa cheia a transbordar de amor. É difícil descrever o que aconteceu como algo menor do que o melhor concerto do festival, mas se o termo é ambicioso, todo o seu amadurecimento enquanto artista e performer é suficiente para o justificar. Com o álbum Alegria Terminal ainda a queimar de tão acabadinho de sair do forno, e não sendo o concerto de apresentação oficial do seu novo disco — marcada para 24 de Julho, na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa —, Vaiapraia viajou feliz e bem acompanhado pela sua discografia. Com chica na guitarra (que como Elisabete disse, nem precisava de sair do palco depois do concerto de bbb), Beatriz Diniz (April Marmara) e Ana Farinha (também conhecida como Candy Diaz), o músico radicado em Londres cantou e deixou cantar, sorriu e deixou-se amar. E nesta pequena reunião a saber a abraço apertado, Vaiapraia puxou os frontliners e fez do palco a nossa festa. Porque nesta estranha coisa que é estar vivo, encontramo-nos nas palavras e nos espaços. E que bom que era se fosse sempre assim tão bonito.

Numa ingrata sala esvaziada pela ressaca pós-Vaiapraia, enquanto a cidade borbulhava de eventos e acontecimentos, o galego Fotocopia tomou as diligências de terminar a noite no CCC, enquanto a banda com o nome mais icónico do festival abria o palco dos Silos: Agrupamento Musical das Piscinas Municipais. Consagrando a absoluta diversidade do Impulso, Fotocopia mostrou de forma natural como uma performance simples pode ser igualmente dilacerante, tocando na plateia e rasgando barreiras de género. Não se iludam: nesta electrónica aguda e feroz, vivem fantasmas do futuro que moram tanto no noise, como no industrial ou no punk. Enquanto isso, o Agrupamento Musical das Piscinas Municipais, banda com uma aparente forte fanbase caldense, tocou o seu rock intenso e explosivo na sua própria cidade; desta vez para muitas outras pessoas dos mais variados lugares, que ali se juntaram para estar no encontro que é o Caldas Late Night e, claro, o Impulso. É por amor que se faz acontecer. 

A fechar o festival, Chat GRP: 75% engenheiros, 100% medronho-punk — como lhe chamam. Finalizaram a destruição das duas noites com uma actuação caótica. Com riffs divertidos, coros catchy e histórias parvas, levaram o rock’n’roll à letra — com o seu pináculo no épico crowdsurf do vocalista Francisco Cabrita até ao bar para ir buscar uma cerveja e voltar para o palco. “Valeu a pena a viagem? Valeu, pois”. E como todos os artistas que por ali passaram, deixaram um eterno agradecimento ao festival e a todos os que para ele trabalharam.

Parte do descentralizar da cultura, parte da força da cidade, o Impulso celebra a música com todo o carinho que ela merece, independentemente dos recursos que possa ter. Há espaço para todos. E aqui, amor com amor se paga. Veremos o que a próxima temporada nos reserva.

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