Bia Maria edita hoje o seu primeiro álbum, Qualquer Um Pode Cantar. Fruto de um processo mais laborioso de produção, contando com mais instrumentos e colaborações comparativemente a outros trabalhos, a autora dos EPs Mal Me Queres, Bem Te Quero (2019), Tradição (2020) e do Roberto (2022) deu um passo em frente naquele que é, quiçá, o seu trabalho mais arrojado, apresentando-se de forma mais intimista, num longa-duração que reflete os seus “sonhos, ânsias e clamores”.
Foi sobre a visão que a cantautora teve para o seu álbum de estreia e na antecâmera de uma apresentação ao vivo no Musicbox (amanhã, dia 9 de Novembro) que falamos com a artista através de uma videochamada.
Como foi o concerto de apresentação do álbum no dia 1 de novembro em Ourém, a tua cidade natal?
Foi um misto de emoções. Foram muitas pessoas para gerir, e tive um momento final em que estavam para aí 30 em palco com os coros todos a cantar. Gerir isso tudo foi caótico, principalmente na última semana até ao concerto, mas a sensação foi extraordinária. O concerto passa num instante, e nem tive bem tempo e espaço para absorver tudo o que aconteceu, mas houve um momento em que eu tava ali com as emoções à flor da pele. Foi mágico e diverti-me imenso a tocar. Já não me divertia assim mesmo há muito tempo. Portanto acho que correu bem.
Este álbum marca uma diferença em relação a outros trabalhos teus por ter uma maior produção, mais instrumentos, e as vozes doutros coletivos, como o Essence Voice, Sopa da Pedra, Coral Troviscal e Órfeão de Vagos. Como foi o caminho até chegares a todas estas pessoas, e entender como te fazia sentido fazer um álbum com esta dimensão?
Quando cheguei ao conceito do álbum, Qualquer Um Pode Cantar, percebi que a estrutura que ligava tudo era a voz, e entendi logo que todas as colaborações tinham que ser coros. Primeiro porque eles sempre fizeram parte do meu percurso enquanto crescia. Sempre cantei muito em coro, e acho que isso tem um papel super transformador tanto individualmente, como coletivamente. Queria que fossem mesmo colaborações assumidas, tipo Bia Maria featuring Essence Voices, Sopa de Pedra, e os restantes coros. E percebi que queria trabalhar com eles de forma diferente. Os coros nunca são apresentados da mesma forma. Numa canção é quase como se o coro funcionasse como um instrumento. Noutra, com as Sopa de Pedra, são mesmo assumidamente elas a cantar assim em cânones de vozes a dizer várias coisas. Na canção do “Qualquer Um Pode Cantar” é o típico coro de pessoas a cantar no refrão com aquela massa gigante. Trabalhar isso foi super interessante, e bastante natural. Como sempre tive essa proximidade com coros, foi fácil perceber quais eram os tipos de coros que funcionavam com cada canção. Sempre quis trabalhar com as Sopa de Pedra, portanto percebi que isto ia ser a oportunidade ideal. Admiro mesmo muito o trabalho delas. Os Essence Voices são um coro daqui de Óurem com quem eu já canto desde 2015. Sabia bem o que eles podiam fazer, o que é que conseguiam. Já queria ter trabalhado com eles há imenso tempo para o meu projeto, então deu-se a oportunidade certa. Os outros dois coros, o Órfeão de Vagos e o Coral Troviscal, são dois coros da zona de Aveiro, e quem os ensaia é o meu professor, o António Bastos, que é um artista inacreditável. Ele tem umas ideias muito fora e trabalha com os coros numa perspetiva muito fora da caixa. Entusiasma-me ver o trabalho que ele vai fazendo com eles, e vai de encontro a esta ideia de que qualquer um pode cantar, e de que esta coisa de nos juntarmos para cantar, mesmo que não sejamos profissionais, faz parte, é importante, e tem este poder de transformação e mudança.
Na “Qualquer Um Pode Cantar”, que é a música que dá o título ao teu álbum, aparece um áudio do Tiago Pereira, da Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, a falar desta ideia de que ninguém canta mal e que toda a gente tem o direito de cantar. Como é que surgiu a escolha do título e de que forma é que o trabalho do Tiago tem influenciado o teu e a visão que tens sobre a música?
Desde que conheci o trabalho do Tiago, fiquei apaixonada pelo que ele faz e pelo que coleciona, todos os vídeos e descobertas de artistas. Ele fez isso comigo, gravou-me e foi uma rampa de lançamento para mim. Admiro muito a visão dele e esta ideia de que todos podem e têm o direito de cantar. Há quem discorde, quem ache que é preciso afinação e técnica, mas eu acredito que todos nós temos uma voz e temos direito a usá-la como forma de expressão. Acho que isso está a ser desconstruído, até porque agora existem outras formas de utilizar a voz em projetos muito diferentes. Isso vê-se no rap, no hip hop. De repente, dá para usar auto-tune em projetos mais pop. Até tradicionais, que de repente metem um auto-tune. E de repente conseguimos reinventar as coisas. E eu acho que isso é que é importante: dizer às pessoas que a voz delas importa, e que elas podem usá-la, e podem trabalhá-la, sem medos.
Depois eu tava no meio de uma crise artística. Pensei: “Não vou mais lançar nada”. Está difícil encontrar apoios. É difícil gravar e gerir tudo. Estava mesmo assim numa fase em que pensei que ia desistir. Há um dia em que tenho uma aluna minha que chega ao pé de mim no final da aula, ela tinha 8, 9 anos na altura, e diz: “Professora, eu escrevo.” Ela mostrou-me e depois disse no final: “Eu não tinha muita coragem para cantar, achava que não tinha boa voz ou que não podia ser eu a expressar isto que eu escrevi, mas como a professora está sempre a insistir que todos nós podemos cantar, eu agora acho mesmo que qualquer um pode cantar, e estou feliz por poder cantar as minhas canções.” Isto deu-me assim uma certa força, e pensei: “Caramba, é isto.” E também me fez chegar a um lugar meio de humildade e de pés assentes na terra, que é: eu não sou mais que esta menina de 8 anos, eu não sou mais que as pessoas de 50, 60 anos que cantam comigo num coro à quinta-feira. Eu não sou mais que nenhuma destas pessoas. Nós temos também que começar a perceber esta coisa de que não há pedestais, e que os artistas são pessoas também, no fundo, e acho que este conjunto de coisas fez mesmo chegar a esta ideia meio popular e de comunidade, de “eu estou aqui, sou igual a vocês, e nós todos podemos cantar e podemos fazer isto”, e o disco surgiu. E percebi que isto também era uma afirmação disso para mim própria.
Neste álbum há um certo intimismo mesmo nas letras, e num debruçar mais nos teus sentimentos e dilemas interiores, mas também a forma como te relacionas com o mundo nestes processos. Isso foi algo que foi natural? Foi desafiante essa procura a nível de composição para chegar aí?
A maneira como eu escrevo vai sempre acompanhando o meu crescimento como pessoas, como artista, mas é muito pessoal, então acho que haviam certas coisas que não me apoquentavam, não me inquietavam aos 18, 19 anos, e de repente, claro, que eu com 25, 26, de repente numa fase adulta a tentar existir no mundo, encontrar o meu lugar, começar a desconstruir montes de coisas, a perceber que existem injustiças no mundo que eu não sentia há cinco anos atrás, e de repente consigo senti-las na pele de forma muito consciente. Isso tudo vai criando aqui dentro uma revolta, e vai mexendo comigo, vai-me deixando desconcertada, e eu sempre fui uma pessoa muito tímida, nunca tive grande capacidade, às vezes, para me expressar com as outras pessoas, e a música e a escrita sempre foram o meu mecanismo de expressão, então eu acho que todas essas condicionantes do mundo transpareceram para as letras.
A tradição tem sido uma coisa bastante importante na tua inspiração, e também tens dito que foi a tua base, a forma como aprendeste a cantar com a tua avó. Como vês todo este movimento que tem acontecido na música ao nível de recuperação e renovação da tradição? O que isso significa para ti, na forma como exploras no teu trabalho?
Vivem-se tempos ótimos, em que de repente muitos artistas estão a passar a olhar para a música que estão a fazer de forma mais consciente, talvez, ou a perceber quais são as suas raízes, ou de que há mais qualquer coisa para além destas influências anglo-saxónicas que nós ouvimos a toda hora, e de repente há este ressurgimento da música popular portuguesa. Existe a valorização disto mesmo, e é ótimo, porque de repente traz identidade a mais projetos, e traz a possibilidade de outros projetos soarem a coisas novas e diferentes. Eu consigo perceber que há pessoas que ouvem e não se identificam, e porque soa diferente e soa estranho a algumas pessoas. A diferença é ótima, e a diferença vai-se construindo e vai sendo aceite. E é isso, acho que o mais importante é que ela traz novos projetos, novas sonoridades. E isso é enriqeuecedor para o panorama musical. No meu caso, acho que sempre foi inconscientemente uma referência que esteve sempre lá presente. Eu também nunca quis fazer música com a qual eu não estivesse satisfeita, ou que eu não gostasse. Eu costumo dizer que isto é meio egoísta, mas eu não ando a fazer música para as pessoas que me ouvem. Isto às vezes desaponta um bocadinho os fãs, mas é verdade. Eu não faço mesmo, e chegando a este álbum pode haver pessoas que vão ficar desiludidas e que não estão à espera disto, enquanto outras estão. Mas eu quando chego às canções, quando as visto, quando me sento para as pré-produzir, nunca estou a pensar: “Ah, tenho que agradar a estas pessoas, quero que soe a popular português, ou quero agradar mais a estas para ser mais indie-pop, ou quero soar mais digital para agradar mais estas pessoas.” Estou sempre a tentar encontrar novas ferramentas e a ver como elas me podem ajudar a dar o melhor às minhas canções. Depois isso é um processo natural, elas vão-se vestindo consoante aquilo que eu quero que elas soem.
Tens sido bastante vocal sobre a realidade do que é ser uma mulher artista, inclusive há um tema do teu álbum em que abordas isso, “A Marcha da Paridade”. O que falta para que as mulheres deixem de estar menos na sombra na sociedade, e no caso também no meio artístico?
É curioso estares-me a dizer isso hoje, porque há aí uma polémica no instagram, mas acho que falta liberdade às mulheres. As mulheres têm vindo a falar cada vez mais e a dizer que nos falta isto, que nos falta aquilo, que de repente não há mulheres a sair como cabeças de cartazes em festivais, que ainda há pouca igualdade entre mulheres e homens a tocar em festivais. E não só, porque depois isto estende-se a muitas mais questões, e na verdade eu acho que o que falta é isso. Nós não somos livres ainda. E o mundo diz-nos que nós somos malucas, que somos loucas, porque estamos a inventar e porque temos liberdade, e porque podemos vestirmo-nos como quisermos, e na verdade conquistámos já muitas coisas. Eu não conquistei nada, conquistaram muitas mulheres antes de mim. Mas a verdade é que só não temos propriamente liberdade total, e continuamos a ser sexualizadas na indústria musical. Continuamos a sofrer assédio no meio da indústria por parte de outros artistas homens, e isso continua a acontecer de forma igual. As mulheres não se sentem seguras, nunca sabemos o que vamos encontrar do outro lado da esquina. Eu falo por mim, porque já passei por essas situações. Eu às vezes até tenho receio de quando vou trabalhar com outros homens artistas, músicos, por ter passado por outras situações. Tenho receio de estar fechada com um homem que eu não conheço para ensaiar numa sala. Essa não liberdade acontece, e portanto eu não me sinto segura. Eu sinto-me assim, e sei que muitas mulheres no meio da música se sentem, por já terem passado por outras situações. Acho que há uma coisa muito positiva a acontecer, que é o ter vindo a aumentar a exposição e o número de cantautoras e artistas femininas, e isso é muito positivo. Só que eu acho que depois é preciso também que elas existam no meio da indústria, mas que as condições e o espaço onde elas estão a existir também seja seguro. E que sejam dadas as oportunidades que elas também merecem pelo trabalho delas, porque se elas estão aqui, elas chegaram aqui e elas são uma referência para outras mulheres, é porque elas trabalharam para isso, e elas merecem tanto quanto outros homens.
Qual foi a ideia por detrás do vídeo da “Marcha da Paridade”?
Foi tudo obra da Camila, que fez a produção do videoclipe. E foi muito giro, porque foi ela até que entrou em contacto comigo para realizar o vídeo. Conseguimos um apoio, e houve uma questão até muito interessante, e eu acho que pelo facto de ela ser mulher e ter essa consciência e essa sensibilidade, ela percebeu logo que a equipa tinha que ter igualdade na quantidade de pessoas que estavam a trabalhar. Tantos homens como mulheres, estava quase 50/50. Foi muito interessante porque, enquanto gravávamos, havia certas cenas em que se calhar eu estava um bocadinho mais exposta. Não nua, mas se calhar um bocadinho mais nua, e foi muito bom porque eu nunca me senti assediada com olhares esquisitos, toda a equipa me tratou de forma excecional. E é isso, havia um espaço seguro e ótimo para trabalhar. Quem fez a direção de arte foi a Margarida do Carmo, com quem eu também estive a trabalhar para a cenografia da apresentação do álbum, e é isso. A Camila, sendo mulher, entendeu perfeitamente e a Margarida também, na direção de arte. Elas entenderam perfeitamente aquilo que queria dizer a canção e elas conseguiram retratar tudo de forma excelente no vídeo.
O que podemos esperar do concerto do Musicbox?
Vou ter dois convidados surpresa. Vou ter o Jasmim. Vamos cantar a “Campo/Cidade”, e vou ter a Ana Maria a cantar a canção do álbum dela onde eu participo. Mas acho que vai ser um concerto assim super enérgico, eu acho que as pessoas me vão ver num formato onde nunca me viram até aqui. Continuo a ser eu, mas acho que me reinventei um bocadinho. Acho que as pessoas podem esperar cantar muito, poque vamos cantar muito, dançar se elas quiserem também, numa ou duas canções. E vamos continuar a ter uma Bia intimista também, mas acho que vai ser uma noite mágica.