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Fotografia: Manuel Abelho
Vídeo: Manuel Abelho
Publicado a: 12/03/2020

Dar Vida é o novo álbum do MC do Bairro da Cruz Vermelha, no Lumiar.

Estraca: “Eu não sou só intervenção. Eu não sou só política. Eu sou música”

Fotografia: Manuel Abelho
Vídeo: Manuel Abelho
Publicado a: 12/03/2020

Estraca é o reflexo de um cenário que se torna cada vez mais comum no panorama nacional. É uma daquelas histórias de alguém que, embalado pelos versos e instrumentais, vem do nada e, aos poucos e poucos, vai conquistando o seu espaço no mundo da música até fazer manchetes e ocupar palcos nos maiores festivais de Verão como o Super Bock Super Rock, onde actuou em 2019. É um daqueles casos em que as rimas e as batidas são a força para furar num sistema que nem sempre é receptivo.

Acabado de editar o seu terceiro disco, que conta com participações e ajudas nos bastidores que o empurraram para fora daquela que temos como a sua zona de conforto, o boom bap, o rapper recebeu-nos no Bairro da Cruz Vermelha, no Lumiar, onde tudo começou e onde ainda vive, e falou connosco sentado no sofá da sua própria casa, que, como nos conta, será demolida juntamente com o resto do bairro no início do próximo ano. Foi aí que começou a escrever as primeiras rimas, influenciado pelo trabalho dos vizinhos que se aventuravam nas sonoridades mais urbanas, sobretudo de raízes africanas. E foi mesmo nesses moldes que gravou os primeiros trabalhos.

“Lancei o meu primeiro álbum com beats da net ainda. Há cinco anos, para aí. Talvez seis (…) Comecei sozinho, mas foi através de rappers locais que ganhei o gosto. Eu não ouvia Valete nem Sam [The Kid], a até acho que o Sam já tinha dois álbuns quando eu comecei a escrever. O Valete também já cá andava há muito… Já existia muito, muito conteúdo e história para trás, mas eu comecei a ouvir com o pessoal aqui da zona como o BroadG ou o Gadem — pessoal de uma cena mais underground. Foi através daí que recebi aquele input de me identificar com o que eles diziam. Depois entrei num grupo, os CLK (Carlitos, Litos e Kara). Mais tarde saí e continuei a minha cena sozinho”.
Ao bairro chegou o projecto da Câmara Municipal de Lisboa, a Sons da Lusofonia e a sua Oficina Portátil de Artes (OPA), em que Estraca se inscreveu com o grupo de que fazia parte, os CLK. Foi aqui que pôde desenvolver o seu verdadeiro potencial e onde recebeu o encorajamento e a mentoria de quem acreditava nele e na sua música.
“Tive um projecto com os Farra Fanfarra, outro com os Kumpania Algazarra, entretanto na OPA tive um outro projecto muito importante no meu percurso: tive uma banda de jazz com hip hop — a Jazzopa. Não sabia nada de música nem de jazz nem do que era aquilo. Música de elevador? Na altura era o que aquilo era para mim. Mas foi muito bom em termos de crescimento. Ou seja, sempre estive rodeado de várias sonoridades e adoro ouvir kizomba, kuduro, funáná, fado, funk… tudo, não só hip hop. Esses projectos de música foram todos aqui na zona. Na OPA conheci o Francisco Rebelo, músico dos Orelha Negra, que foi uma espécie de mentor desde o início. Diziam-me para estar lá as três, eu estava lá às duas. O Francisco talvez tenha reparado nisso em mim, acredito nisso, e então depositou bastantes esperanças no meu trabalho (…). Tive que saber aproveitar e agarrar as oportunidades que me foram dadas.”
Em 2018, já a solo, em nome próprio e sem ser por intermédio dos projectos sociais e culturais, Estraca editou o homónimo disco que o colocaria no mapa, captando a atenção de milhares de ouvintes atentos ao que se passa na cultura hip hop. O trabalho valeu-lhe reconhecimento e comparações a alguns dos nomes mais influentes do movimento nacional: destacava-se por ser um jovem rapper com uma escrita focada na política e nos aspectos sociais, mas também pela sonoridade clássica que foi contra a corrente criativa que se afirmava em 2018 – o trap. Foi ao mesmo tempo um porta-estandarte da geração mais jovem, mas também do boom bap – tudo enquanto passava para o outro lado dos projectos sociais que o ajudaram a descolar.
“Eu acho que ser comparado ao Valete é bom. Eu e ele já falámos disto, que temos a ver no facto de sermos ambos rappers de intervenção, e que hoje isso não é muito comum, [para] além de ele ser provavelmente o maior rapper do género em Portugal. (…) Imagina que jogas futebol na segunda divisão e te chamam o novo Cristiano Ronaldo, não ias gostar? É mais ou menos por aí”.


Foi o álbum homónimo que o levou a pisar o palco do Super Bock Super Rock. Ao fim de um ano (em 2019), mais maduro e com a capacidade de reflectir com alguma distância no que se passara desde que tinha lançado o último álbum, Estraca começou a trabalhar em Dar Vida, que teve “BoomBap” como primeiro tema.
“Entre o último disco e este cresci muito como pessoa. Eu sou sincero, quando recebi o boom todo era um puto que vinha do bairro, muito ingénuo em relação a todo este mundo da música e das agências. Muito ingénuo mesmo. Estes dois anos foram de evolução. Na altura era tudo muito novo para mim, mesmo na estrada andava sempre muito nervoso. Aprendi a lidar com várias situações e com vários sentimentos e a escolher o meu núcleo, as pessoas de quem me quero rodear. Quero estar rodeado por quem me ajude a crescer, não por quem me rebaixe”.
As ideias estavam claras. Havia que fazer algo novo, continuar a trabalhar, mas sem nunca perder a essência e o conforto. Madkutz consolidou o papel de produtor junto de Estraca mas, ainda assim, o jovem rapper procurou sempre mais e diferente, tanto na produção como na parte lírica do álbum.
“A minha cena interventiva vai lá estar sempre porque é onde me sinto bem. Não sou muito bom a inventar histórias. Foi tudo algo que vivi, que senti ou que presenciei, não sou muito bom com ficção. Mas isso não quer dizer que de vez em quando não faça um som como o que fiz com o Matay ou com outro rapper/artista qualquer de outro estilo”. Eu gosto de ir buscar um bocadinho a cada um. Já trabalho com o Madkutz há algum tempo, desde o ‘Palavras‘, e apesar de ele às vezes não aparecer está sempre no background a ajudar ou a dar umas dicas. Agora também comecei a trabalhar com o Tom Enzy, que finalizou a mistura e masterização final do álbum. Ele está muito ligado à música electrónica, mas vai começar a dar cartas agora no hip hop, até porque ele é muito bom”. A Selma conheci através do Francisco Rebelo. (…) Criámos logo uma empatia e, mais tarde, estava com o Spliff no estúdio – o beat do “Makweru” é dele — e ele sugeriu a Selma para o tema. Dei-lhe um toque a perguntar se ela curtia, ela disse que sim e aconteceu tudo naturalmente. Fomos ter com o Charlie Beats, gravámos e estava feito. Com o Matay, ele tem familiares aqui na zona e aconteceu tudo naturalmente. Agora vamos fazer uma coisa para o projecto dele também”.
Dar Vida começava então a ganhar forma e o contexto surge no fim de 2019, com o documentário com o mesmo título. Uma exploração ao passado e às raízes de um dos jovens mais promissores da indústria nacional que tira dali mesmo a inspiração para o seu trabalho. É dali que nasce todo o conceito por trás do projecto que se reflecte até na capa.
“No ‘Mitos Urbanos‘ aconteceu uma cena que até aparece no videoclipe. Estávamos a recolher imagens e aparece um rapaz a dizer ‘obrigado man, grande som, obrigado Estraca, a tua cena é mesmo importante, gosto bué e não sei quê…’, isso para mim é dar vida. Dar vida através da minha música, através das minhas letras, através das minhas palavras. O pessoal mete-me na caixa da intervenção e política. Eu não sou só intervenção. Eu não sou só política. Eu sou música, eu sou variado. Basta olhar para o meu background e vemos que não sou só aquilo, embora seja o que gosto e a minha essência, não abdicando nunca que possa fazer outra coisa qualquer. Cada música que está dentro do álbum tem uma temática diferente, A ‘Bela Adormecida’ é sobre violência doméstica, o ‘Mitos Urbanos’ é mais sobre o bairro. Tenho várias temáticas diferentes e o nome surgiu de tudo isso. A capa foi feita juntamente com um designer gráfico que já fez as capas do Madkutz também, o Xksitu. Sentámo-nos várias vezes, eu tinha uma ideia inicial que depois mudámos e tudo mais, mas chegámos através do nome e da minha ideia do álbum a esse conceito de florescer, renascer… É uma ideia que eu já tinha também de um álbum anterior, a de ‘renascer’, mas é uma palavra demasiado forte, na minha perspectiva. É uma ideia que vem desde o ‘Boom Bap’, há um ano que tenho isto na minha cabeça”.
Mas há espaço para muito mais na cabeça de Estraca. Diz-se que é alguém cheio de “ideias malucas” e foi mesmo sua a iniciativa de levar para o palco do Super Bock Super Rock representações dos outros três pilares do hip hop durante o seu concerto, algo em que andava a matutar há tanto tempo, como a sua próxima ideia megalómana. É que dia 28 [para já, ainda não se sabe se a data será alterada devido ao novo coronavírus] o Bairro da Cruz Vermelha recebe um verdadeiro festival de um dia em homenagem ao género musical urbano que tanto por ali se escuta e produz. Mas onde? No centro comunitário? Num estádio? Uma sala de concertos? Nem pensar, mesmo à porta de casa, no Largo da Cruz Vermelha. É praticamente um dois em um. É uma festa de apresentação do álbum em Lisboa e uma festa de despedida ao Bairro da Cruz Vermelha, que o viu crescer e que deve ser demolido até Fevereiro do próximo ano. 
“É algo que ambicionava fazer mesmo antes de saber que o bairro vai abaixo. Depois claro que tive de fazer as coisas acontecer, ou não ia ter tempo. Eu quando vejo as coisas acredito nelas. Toda a gente me disse que ia ser muito complicado, mas eu quis fazer na mesma. Disse que achava que era a altura certa de fazer o concerto à porta de casa, sobretudo porque vai ser muito fixe trazer os fãs de fora ao bairro. Pensei nos projectos da OPA, que tinham a ideia de levar a periferia ao centro. Eu quero trazer o centro à periferia, inverter os papéis. Isso é muito bom porque isto está aqui fechado. Ninguém de fora entra aqui se não for uma iniciativa destas que cruze as pessoas do bairro com as pessoas de fora. Ainda existe um muro invisível nas periferias de Lisboa, sem dúvida”. É quase uma festa de encerramento do bairro. Vou trazer alguns rappers locais, o backstage vai ser aqui em casa. Vou ter o Kronic e o Bdjoy a fazer o warm-up e durante o concerto vários convidados como o Matay e o Kosmo Da Gun. Antes convidei vários rappers locais para virem fazer a abertura do espectáculo. Também é um pouco essa a ideia, ser tudo bué local. Em vez de mandar vir uma banca da Super Bock vou ter a minha vizinha a vender cervejas de uma arca, outra a vender cachupa, outra bifanas… Tive a ajuda da Junta de Freguesia do Lumiar e do projecto que agora estou a coordenar na parte da música, o Cultura Urbana Alta Lx, com grafitti. Acho que vai ser mesmo muito fixe e algo para não esquecer”.

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