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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 15/09/2023

Hip hop espirituoso.

“Este Alambique é a destilação do essencial de Notwan nestes anos todos”

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 15/09/2023

Artista de diversos projectos e múltiplos universos artísticos, Notwan é o alter-ego de Mestre André enquanto produtor de hip hop. Conhecemo-lo sobretudo dos créditos de discos de Nerve, mas Notwan tem obra própria e também ele tem o instinto de pegar no microfone para debitar rimas.

A sua história pode estar a aproximar-se do cair do pano, como revela o seu autor ao Rimas e Batidas, mas antes foi necessário passar por um longo processo de destilação que apropriadamente se intitula Alambique. O disco é lançado esta sexta-feira, 15 de Setembro, em formato digital e em CD, pelo Sistema Intravenoso

O álbum de nove faixas foi construído entre 2011 e 2023 e conta com uma participação de Can I. De resto, foi tudo escrito, produzido, gravado, misturado, masterizado e ilustrado por Notwan (excepto “Bagaço”, que foi captada e misturada por Nerve). Rimas e batidas do universo sónico muito próprio deste camelão artístico eborense. Colocámos algumas perguntas ao músico sobre este potencial derradeiro projecto como Notwan.



Como nasce este Alambique? Foi um disco muito premeditado, planeado há muito tempo? Tens faixas com mais de 10 anos, tendo em conta a referência que fazes ao ano de 2011.

O Alambique é de alguma forma (em parte) um compêndio de malhas dentro do espectro do hip hop que têm acabado em gavetas empoeiradas… e cujas demos sempre revisitei. Havia mais, mas as que ficaram foram as que se relacionavam bem. É difícil dizer que o disco foi premeditado ou planeado. Um disco estava premeditado, mas o Alambique não é tanto resultado de planificação conceptual como da necessidade de me ver livre do engaço que transporto há tantos anos e que não havia ainda sido destilado. A planificação foi a escolha do alinhamento, que me obrigou posteriormente a repegar na maior parte das malhas e fechá-las. A maior parte das malhas são esboços de anos passados com silver linings de 2022 a 2023.

Como é que o descreverias conceptualmente?

O alambique destila o sólido ou líquido em espírito. Este Alambique é a destilação do essencial de Notwan nestes anos todos. É possivelmente o acto de encerramento deste caminho… e também a pedra necessária para saltar para o próximo, que também já está pronto e em fila de espera há mais de um par de anos.

Como funcionou, em termos gerais, o processo criativo? É simples para ti compartimentares a tua criatividade, tendo em conta todos os projectos que tens e em que estás envolvido?

O meu processo criativo não é nada metódico ou ‘voluntário’ quase. É muito complicado falar do processo criativo de um disco que tem malhas que comecei a fazer em 2011, como a “Árvore do Olvido”. O beat começou por ser para o Nerve se não estou enganado, quando eu estava a ser okupa em Londres, depois de umas férias que fiz em Marrocos em que se ouviu muito Lhasa. Acabei por escrever uma letra inspirada no próprio conceito da música que samplei, que fala sobre a minha relação com o Alentejo e Évora naquela altura especialmente, em que se viveu a grande crise e uma quase absoluta seca cultural de 12 anos (salvas firmes, resistentes e louváveis excepções), relativa a 2 mandatos da câmara. Mas bem, por acaso esse beat está bastante fechado desde cedo, não houve grandes alterações para o futuro… mas a voz dessa foi a última coisa que gravei no Alambique, há uns meses. Tirando os cantares, que também tem piada, porque gravei-os no Sonic Studio da SFU no Canadá em 2015, que eram supostamente só guias porque estava tudo desafinado, mas com o passar do tempo ganhei afeição ao desafinanço dessa parte.

Voltando à forma de processo criativo. Acontece-me muito (e tenho aprendido que é uma boa forma para mim) agarrar em ideias simples ou só criar lembretes de samples ou de seja o que for sonoro, em novos projectos do Ableton Live (normalmente). Anotações de esboços, em que normalmente não consigo fazer grande coisa, ou chego ao ponto em que estou demasiado confuso com as possibilidades e largo. Muitas vezes não perco muito tempo e deixo-os, e muitas vezes até os esqueço… até um dia mais tarde reabrir o projecto e ter uma escuta já distanciada, e normalmente tenho surpresas positivas e surgem ideias do caminho a seguir. É pouco consciente. Não tenho hábito de forçar muito e por vezes as malhas vão sendo passadas de gaveta a gaveta até já só faltar o verniz final. Aí tenho que forçar um bocadinho [risos], é a parte mais chata. Mas é bonito ver uma malha a surgir, não sei bem como, transformam-se muito e às vezes nem sei bem como se passou. A “Sleepless Bung’o” é um exemplo disso… era só um loop muito forte que parecia suficiente… até lhe dar 30 voltas.

Relativamente à compartimentação “das criatividades” de outros projectos, não me é complicado. Notwan é simples, é hip hop. É o meu projecto mais antigo, provavelmente moribundo, dum puto que largou os videojogos para passar os dias no Fruity Loops. E foi crescendo e foi mergulhando mais a fundo em muitas mais coisas… mas de todas, Notwan não é muito difícil. De vez em quando sai-me um beat e 10 anos depois olho para trás e escolho uns quantos [risos]. A “compartimentação” acontece na própria morfologia dos projectos. O Morto é um projecto que não só se faz valer de composições para sistemas quadrifónicos, também parte de premissas de composição muito diferentes. Normalmente parte de ideias mais definidas, normalmente recorre a experiências vividas e gravadas em gravações de campo, e a uma liberdade formal muito maior e mais difícil de gerir, mais difícil de julgar e tomar decisões… Os Golfinhes é deboche! E talvez daqui para a frente Notwan deixe de fazer sentido e se dissolva no ortónimo Mestre André, com o qual só tenho lançado música que fiz para espetáculos de teatro e dança.

Gostas do formato de intercalares instrumentais e faixas que também têm voz? Ou foi por onde o processo criativo te levou, naturalmente?

O que se passou foi que (ainda) tinha quatro malhas com voz. Na verdade, foram em parte os impulsionadores do disco inteiro. Eu precisava de me libertar destas malhas, isto já era um peso morto. Tirando a malha feita com o Can I, que é a música mais recente do disco inteiro (ou seja, começada mais tarde, não acabada) aquelas outras três já tinham tantos anos. E o Puto André de 13 anos não me ia perdoar eu nunca lançar um disco de raps… tinham que sair. Claro que gosto muito delas e têm muito significado para mim. Já não aguentava tê-las guardadas. O mesmo com todas as outras. O intercalamento aconteceu naturalmente na sequenciação do disco em si.

Da composição à produção, passando pelas ilustrações, és completamente auto-suficiente. Gostas de trabalhar em modo lobo solitário, ainda que fazendo algumas colaborações aqui e ali? Ou tem a ver simplesmente com teres o controlo criativo total sobre o teu projecto?

Eu sou um lobo solitário e preciso de ter estes processos solitários. Porque são universos inteiros. As ilustrações do Alambique são símbolos recorrentes nas minhas sessões de terapia que necessitei para sublimações. O próprio alambique é parte da simbologia. E essas ilustrações são a codificação da minha psique, a receita da destilação do espírito. O olho que chora a lágrima que evapora a abelha que faz o sol que no pote apanho que irradia pela brecha que a serpente guarda. O todo que alimenta a chama por debaixo de água. Eu também não sou só um lobo solitário. Tenho vários projectos a solo em que normalmente faço tudo, mas também tenho várias bandas. Neste momento estou com discos na calha, prontinhos a sair, tanto de Jibóia como de Banha da Cobra (as minhas duas bandas activas no momento) e estou a começar a fazer música com a minha mais que tudo Daiyen Jone.


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