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Fotografia: Sara Falcão / NOS Alive
Publicado a: 16/07/2019

O Rimas e Batidas conversou com o rapper paulistano sobre as mutações que tem sofrido o seu registo em palco, o crowdfunding “ao contrário” e uma colaboração com Marcos Valle num horizonte próximo.

Emicida: “A nossa meta não é o combate, é a existência”

Fotografia: Sara Falcão / NOS Alive
Publicado a: 16/07/2019

“Ano passado, eu morri, mas esse ano eu não morro”: 2019 será também o ano de Emicida. Ao lado da meteórica cantora Pabllo Vittar e da não-binária Majur, importante revelação vocal do Brasil, o MC que nos trouxe Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa volta à acção com “AmarElo”.

O tema de cicatrização e revitalização tem o seu mote extraído de uma das maiores referências do cancioneiro brasileiro, Belchior. E se este consórcio de vozes parece improvável, não é essa a intenção de Emicida, que o convoca não pela surpresa, mas pela celebração e pela necessidade de passar o megafone a identidades cujas histórias estão ainda por ouvir. “AmarElo” foi um dos auges do alinhamento do concerto de Emicida que estremeceu a edição de 2019 do NOS Alive.

Foi nos bastidores do Palco NOS Clubbing que nos foi aberta a porta para o seu camarim, onde encontrámos o rapper paulistano a respirar por um inalador — recuperação e hidratação vocal — do qual gentilmente se ausentou por um quarto de hora. O Rimas e Batidas conversou com Emicida sobre as mutações que tem sofrido o seu registo em palco, o crowdfunding “ao contrário” e uma colaboração com Marcos Valle num horizonte próximo.



Este é o teu primeiro concerto na tua nova digressão pela Europa. Atravessas o globo há muitos anos; como funciona a tua preparação? Tens algum ritual ou preparativo especial que faças antes de arrancares?

Cuidar da saúde. [Risos] Beber bastante água, porque ‘tá um calor desgraçado… Em São Paulo estavam seis graus no fim-de-semana. Muito pesado, muita dor de cabeça — como é que o Hemisfério Norte está mais quente que a gente?

Chegaste aqui e foi um choque térmico.

É, então o que eu vim fazer aqui foi pegar o nosso calor de volta. [Risos] Mas eu tenho uma relação muito espiritual com a música, entendeu? Então, antes do concerto aqui o que eu faço é tentar me concentrar e conectar meu espírito com o universo.

Tentas canalizar isso para te fazer sentido.

Para poder chegar no palco ali, daqui a pouco e explodir mesmo, sabe? Fazer o que nem o Universo faz — essa aí é a parada. Em relação à montagem do espectáculo em si, o que eu penso é: não é a primeira vez que a gente vem para Portugal, a gente já vem com uma certa frequência, tem bastantes amigos, alguns fãs, enfim pelo continente europeu inteiro.

Até com Língua Franca.

Sim, Língua Franca também explodiu bastante o nosso trabalho por aqui. Então, eu tento montar um espectáculo que faça uma boa apresentação do que eu acredito ser a música urbana do Brasil hoje — acho que é uma espécie de cartão de visita que eu venho compartilhar. Fora que eu sempre gosto de ver um show foda; acabei de ver Samm Henshaw, man, tipo caralho, sinceramente…

Não consegui ver tudo, infelizmente. 

Sério?

Fui falar com o Loyle Carner.

Eu também não consegui ver tudo, tive que dar entrevista no meio… ossos do ofício.

Estavas a falar da montagem do espectáculo, os anos que tens de experiência proporcionaram uma evolução diferente do que tens em palco, e mesmo a banda já não é a mesma, tirando o DJ Nyack.

Sim. A gente teve muitas transformações. Na verdade, eu tenho uma música — vamos dizer assim, uma música por encontrar, o que é que essa música, essa musicalidade dessa música brasileira do século XXI?

Então, no primeiro momento, era uma banda gigante: tinha metais, tinha coro, muita gente no palco, e era tudo parte de uma pesquisa para entender o que é que a gente deveria ter e não ter no palco. Resolvi tirar a bateria, resolvi pesar a mão na percussão por dois motivos: um, porque no último trabalho a gente tinha feito um disco que foi composto [inteiramente] na África — do ponto de vista percussivo, ele era muito rico, tinha muita coisa, a gente pesou realmente a mão na percussão e teve dois percussionistas no palco durante muito tempo; dois, isso não é mais o nosso show, ele está baseado numa retrospectiva dos últimos dez anos, então a gente se pode aventurar com outras coisas e mirar para o que a gente está fazendo agora.

A gente lançou algumas músicas e acho que nessa formação que a gente ‘tá hoje e que vamo’ ‘tá, a bateria e percussão e o DJ, aí eu fico ali também fazendo minhas rimas, eu acho que é uma formação que a gente quer seguir, sempre pesquisando. Tudo é parte de uma pesquisa, eu sinto que falta algumas coisinhas ainda, mas eu acho que vai entrar agora um teclado, porque tem muito a ver com o que estou a sentir nesse momento.

Sentes que a performance nunca fez mais sentido do que neste momento, como a descreves?

Acho que sim. Na verdade, é sempre uma troca. Eu sempre misturo. O Roberto Carlos fala isso, né? Ele fala que você não termina o disco, você para de mexer — e isso é muito verdadeiro. Quando você sobe ali, você fica escutando a música, ‘cê pensa “[estala os dedos] oh, podia ter tido um trompete aqui!”.

Poder evoluir sempre.

E aí, meu, tipo, isso não é uma coisa sacralizada que a gente não pode fazer isso, sacou? Você vai sempre estudando e desenvolvendo uma forma de chegar ali, eu estou muito nessa coisa de pegar essa coisa brasileira, rítmica, que é muito rica — a nossa poesia é muito rica e, em especial, a poesia que vem do samba, trazer isso para dentro da minha parada e conseguir desenhar o que é que é a música que sai duma cidade como São Paulo no século XXI. Essa é a minha noção. Por exemplo, a gente acabou de perder o João Gilberto. O que o João Gilberto fez pela música brasileira… olha que foda, você ser representante da geografia de uma coisa invisível que é a música — a geografia ela é invisível, é extremamente invisível. O cartão postal dele foi uma parada que ninguém mesmo só sendo, essa é a minha noção: conseguir fazer a pessoa que ‘tá lá na República Checa escutar e falar “cara, esse aqui é do Brasil”.

Exacto, e foi algo assim que o Marcos Valle me disse há pouco tempo-

Você entrevistou o Marcos Valle?

Sim.

Sortudo para caralho.

É absolutamente verdade.

Ele é incrível, mano. A gente ficou nos estúdios uns dias…

A sério?

Porra! A gente acabou de ter duas sessões de estúdio. Ele está para lançar um disco, eu fiz duas músicas no disco dele.

Do [Sempre] que saiu agora?

Não, do próximo. Ele fez dois!

O homem não pára.

Não… Eram onze horas da noite [a gravar]. Houve uma outra sessão no estúdio o dia inteiro, chegou às onze horas da noite, tocou piano até à uma da manhã, dando risada… Eu e o meu parceiro Nave, que é produtor, a gente ficava dando risada, mano, porque a gente ficava falando “caralho, Jay-Z sampleia Marcos Valle, Kanye West sampleia Marcos Valle, e nós temos Marcos Valle aqui para nós [gargalhada]”.

E ele nem sabia quem era o Jay-Z!

É foda, eu e ele ficávamos sentados na frente do piano, o Marcos Valle tocando no piano, a gente ficava olhando um para o outro dando risada… [risos]

Ele deu um concerto na passada sexta-feira e é de outro mundo o poder que ele ainda tem em palco, com 75 anos. Incrível mesmo.

É isso, mano. O que é que o Marcos Valle está fazendo? Ele não está correndo atrás do ritmo, ele faz música para a eternidade. João Gilberto fez música para a eternidade. A minha ambição é essa: fazer música para a eternidade. A música, ela é um presente do tempo, ‘tá ligado? Daqui a quinze anos, quando a gente escutar essa música, a gente tem de sentir ela conversar com o futuro e trazer essa noção.

No fundo, esse é o maior sucesso de todos. Lançaste o tema “AmarElo”, que dizes ser um “experimento social”. Queres desenvolver isso?

Sim. Eu penso que desde o começo que a gente fala no disco como um experimento social, porque a gente não foi só pelo modelo tradicional da indústria, a gente fez nosso próprio disco, gravou ele em casa, prensou ele em casa, realmente a edição mais caseira do que isso é impossível. A gente entrou dentro do mercado de uma forma completamente atípica. A gente não ficou esperando uma gravadora ou uma editora. Se a gente tivesse esperado isso, a gente estava esperando até agora. A gente fez um crowdfunding só que ao contrário: as pessoas investiam sem saber o que viria. Quando elas compraram o disco, elas pegaram o brinde primeiro, investiram aquela grana — com aquela grana a gente conseguiu construir todo esse projecto: os vídeos, as turnês, os livros, os estilos de moda. Não é só música, sabe? Desde o começo, eu entendo que gerenciar uma carreira artística no século XXI não é só mais música.

Wilson das Neves disse, “bom gosto tem, só falta quem financie”. É o seguinte: a gente tinha a ideia, mas não tinha quem financiasse. Que acontece? Depois que a plateia acredita, compra os discos, merchandising, vai nos shows, a gente consegue capitalizar em cima disso, pegar esse capital e investir, mostrar essa nova forma de gerenciar uma carreira artística — isso é um experimento social.

Quando a gente chega nesse momento, a transformação que a gente sugere é: durante muito tempo, o hip hop teve um discurso extremamente combativo — e eu não estou diminuindo isso, eu acho que isso é muito valioso, muito útil e muito urgente, principalmente no planeta que a gente está nesse momento. Porém, é muito importante que a gente abra o leque de temas e referências, para que a gente consiga aumentar o nosso alcance e gerar essa transformação, e não ficar preso a uma bolha de pessoas que reclamam sobre os mesmos assuntos, entendeu? Porque senão a gente vai-se perder no labirinto: o que a gente está buscando é fazer com que as palavras ecoem, mas a única coisa que a gente está fazendo é se conectar com lugares que são reflexos de nós mesmos. Isso para mim é experimento social.

“AmarElo” são duas palavras: a brincadeira com a cor é um detalhe, sabe? O que é que é a coisa mais importante de todas? Eu fiquei reflectindo muito nos últimos anos. É a relação, ‘tá ligado? Se você estiver aqui sozinho, não acontece entrevista. Se eu estiver aqui sozinho, também não acontece entrevista. A coisa mais importante nesse momento é nós dois se encontrar — é quando as pessoas se encontram que a vida acontece. Essa é a importância de falar, esse é o experimento social, o projecto científico maluco.

Mesmo nesse sentido de relação, convidas a Majur e a Pabllo Vittar — dois dos nomes mais relevantes na música brasileira agora. Como tiveste a ideia de os convidar e como jogaste com o sample da “Sujeito de Sorte” do Belchior?

Queria muito fazer isso e há algum tempo — nunca tinha dado o valor que a música “Sujeito de Sorte” merece, aí há uns quatro anos, eu ouvi ela e me bateu de um jeito muito profundo. Fiquei no estúdio ouvindo ela uma hora, duas horas, três horas, quatro horas. A gente fez um monte de versão dessa música no meu estúdio.

A Majur é um nome novo, mas um nome novo ultra-potente na música brasileira; gosto muito da Pabllo, porque ela é um símbolo de força. É um símbolo de potência mesmo, de vida, de vencer, isso é importante, porque, em geral, existe um grupo de pessoas que são mais militantes do que artistas e eles não reconhecem a importância disso. A existência deles faz-se muitas vezes de um combate, mas a nossa meta não é o combate, a nossa meta é a existência.

O combate como instrumento.

Sim. A Pabllo Vittar sintetiza o movimento. Eu imagino todas as dificuldades pelas qual ela passou e quando ela chega e vence, ela inspira tantas outras pessoas a vencer, vejo um paralelo muito grande. Não vejo o porquê da gente estar separado — fora que artisticamente falando, as primeiras músicas dela eu gostei, mas ficaram-me perguntando que tipo de história a gente pode contar junto. Quando chega o momento de “AmarElo”, existe uma história que a gente pode contar: a gente ‘tá falando sobre atravessar todas as dores.

Última pergunta: achas que enquanto nome de proa no hip hop brasileiro, ainda tens a missão de abrir as portas para alguns artistas que no fundo têm dificuldades de singrar num género machista e reservado, por vezes, ao homem branco e heterossexual?

Na verdade, o hip hop tem um paradoxo interessante: [já não é maioritariamente branco]. Pelo menos no palco, [nos bastidores] isso era outra entrevista.

Em Portugal, é isso que se sente mais.

Mas isso é outro contexto, Portugal. Brasil é o país mais preto fora da África. Mas eu acho que a questão aí é a seguinte: hoje, a gente tem a oportunidade de ver vários artistas incríveis, gente que para mim é uma honra poder estar juntos com eles — seja a Pabllo Vittar, que já é conhecida, seja por exemplo a Quebrada Queer, um grupo de rap de garotos que são gay e estão começando agora. Eu acho que essa é uma reflexão que a gente precisa de fazer internamente. Para a gente ser a transformação que a gente quer para nós mesmos.


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