Live Laugh Love. Tão simples quanto isto. Quem diria que para Earl Sweatshirt a vida revelar-se-ia brutalmente translúcida depois de anos (décadas?) assombrado pelos próprios seus demónios. Ao seu quinto álbum de estúdio a solo, ainda são visíveis alguns dos fantasmas que sempre pairaram em torno de uma aura incandescentemente depressiva, mas a luz parece ter finalmente invadido o espírito de Thebe Neruda Kgositsile pela brecha mais inusitadamente previsível: constituir uma família ter-lhe-á dado a clarividência que as suas questões familiares até então o haviam toldado. E para alguém como Earl Sweatshirt, cuja arte se traduz — entre palavras tantas vezes difíceis de decifrar — numa tela de emoções vívidas, não há como a sua música não reflectir isso mesmo.
Nada fazia prever esse destino, mas aqui estamos. Num hipotético lado B de Some Rap Songs, que em 2018 tanto significou não só para o próprio autor, mas sobretudo para toda uma linhagem que seguiu caminho precisamente a partir desse rasto. A começar pela estrutura, em ambos os casos a manipular uns parcos 24 minutos dando a sensação de umas preenchidas 24 horas de canções em fluxo contínuo e encadeado. Até chegar à produção, com toda a riqueza instrumental, a profundidade sonora e a multiplicidade de texturas rítmicas que de parte a parte sobressaem — desta vez, responsabilidade de Earl, desde logo, mas também de velhos cúmplices como Black Noi$e, Navy Blue ou Theravada. Essa deverá ser, aliás, a mais estreita ligação entre LLL e SRS: um portal de (novamente) emoções, canal aberto de duplo sentido, em que sentimentos tão análogos quanto antagónicos encontram, num círculo perfeito, correspondência do outro lado. Afinal de contas, este é, para todos os efeitos, um álbum de Earl Sweatshirt. Talvez o álbum mais Earl Sweatshirt que ouvimos até à data, na medida em que também ele se faz sentir e ouvir, aqui, pacificamente igual a si mesmo — talvez como nunca. Ouvir e sentir sempre foram, além do mais, as palavras-chave para abordar e reflectir sobre a música deste artista verdadeiramente especial.
Para além disso, e por muito fortes que sejam as sensações que, generalizadamente, o ouvinte comum de Earl Sweatshirt tem vindo a testemunhar ao escutar o seu mais recente disco editado pela sua Tan Cressida Records, há ainda assim muito mais do que Some Rap Songs subjacente a Live Laugh Love. Até porque, desde então — e esse então, por volta de 2018 para nos situarmos, marca uma altura particularmente determinante na carreira e vida do rapper e produtor nascido em Chicago e criado em Los Angeles —, tudo mudou. A perda do seu pai trouxe à tona uma série de intrincadas questões por resolver numa relação conturbada entre os dois, sinais esses que se manifestariam ainda no disco que, por si só, já abordava exactamente essas feridas familiares por sarar (recorde-se “Playing Possum”, faixa indirectamente protagonizada pelos seus dois progenitores). E agora é ele, Thebe, pai de duas crianças fruto de uma relação amorosa — nas suas palavras confidenciadas a Zane Lowe — feliz.
Esse feliz volte-face que a vida lhe pregou impingiu-lhe uma felicidade que ele talvez não acreditasse merecer a certo ponto. E a ironia de Live Laugh Love começa aí: a sorte dos patetas alegres bateu à porta de Earl Sweatshirt e trocou-lhe as voltas por completo. Agora, transparece estar ainda a tentar perceber como se conjuga uma vida feliz com as infelicidades da vida, cantando invariavelmente as suas dores, que nesta fase são, também, dores de crescimento como homem estabelecido, parceiro apaixonado, pai de corpo e alma, e artista em constante evolução.
Vale a pena, por isso mesmo, olhar para trás e reordenar todas as peças que o trouxeram até aqui. Em 2012, Doris revelou ao mundo um miúdo perturbadoramente talentoso entre os seus pares da irreverente turma Odd Future, liderada por Tyler, The Creator; I Don’t Like Shit, I Don’t Go Outside representou o culminar de uma espiral depressiva agravada pelo seu contexto familiar até 2015; em 2018, pegou nos cacos de uma juventude sofrida e juntou-os no incomparável Some Rap Songs; de 2019 a 2020, amealhou as peças soltas ainda por restaurar e apresentou-as em FEET OF CLAY; e a partir de 2022, com SICK! (e sabe-se lá onde encaixará realmente VOIR DIRE nesta cronologia…), endureceu a carapaça ao cerrar dentes à vulnerabilidade.
Já em 2025, damos de caras e ouvidos com o resultado de todo esse percurso coincidentemente artístico e pessoal. Ao longo de onze canções, fica-nos a melhor versão de Earl Sweatshirt, não por serem as suas onze melhores canções de sempre — excepção feita a “TOURMALINE”, a grande surpresa deste seu novo trabalho que nos prova como um meloso refrão do rapper-sem-refrões nos pode desarmar por completo —, mas por nos dar uma perspectiva plena de quem é Earl Sweatshirt enquanto artista em todas as suas camadas. Das mais profundas às menos sérias. Há que dar graças por isso. Três vezes, pelo menos.