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Earl Sweatshirt

SICK!

Tan Cressida / Warner Music / 2022

Texto de Gonçalo Oliveira

Publicado a: 20/01/2022

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Foram muitos anos a alimentar o demónio que agora exorciza de vez. Por muitos visto como uma figura quase espiritual dentro da estética rap, Earl Sweatshirt mostra ser de carne e osso no seu novo SICK!. Mais focado no que existe ao seu redor e menos amarrado aos dissabores que a vida lhe trouxe, o sucessor de Some Rap Songs marca o início de uma nova etapa na carreira de um dos MCs de maior culto à escala global. E ao contrário do que tinha acontecido até aqui, na jornada pós-Sly Tendencies, iniciada no seio dos Odd Future com a mixtape Earl e findada junto dos afiliados da sua própria Tan Cressida em FEET OF CLAY, esta nova linha editorial atravessa um túnel muito melhor iluminado logo no seu arranque.

No entanto, esta certeza de onde começa e para onde aponta não tornaram Thebe Kgositsile menos sensível no acto de dosear a tinta no papel. Aos nossos ouvidos, Earl continua de tronco nu a cantar ao microfone, só não tem fendas abertas a revelarem-lhe a carne, as entranhas e tudo o mais que só a ele pertence. O factor “choque” despede-se finalmente do ouvinte e sobra apenas a beleza natural dos traços das cicatrizes que acumulou. Depois de 10 anos a auto-medicar-se com as próprias lágrimas, os níveis de resiliência do rapper e produtor estão agora muito mais compensados. Se em 2015 tudo lhe parecia demasiado escuro ao ponto de intitular um discocom a reveladora frase I Don’t Like Shit, I Don’t Go Outside, esta ideia de estar agora mais disposto a apreciar tudo aquilo que existe para lá da porta de casa surgiu logo em “2010”, o single inaugural deste novo projecto, revelado ainda em Novembro passado.



Apesar da mudança na forma como nos relata a sua forma de ver o mundo, a campanha de promoção que preparou o terreno para SICK! começou da mesma forma daquelas que nos trouxeram os seus dois últimos LPs. “2010” não é menos trappy do que era “Nowhere2go” ou “Grief“. Tem, sim, outros condimentos que a afectam tanto ao nível da mensagem como da sonoridade e que não são mais do que um espelho face à renovada confiança que Earl deposita em si mesmo e, consequentemente, transparecem na hora de gravar o tema. Pensamentos soltos como “threw me loose changе, look at what I made of it” ou “walked outside, it was still gorgeous” revelam uma atitude muito mais solarenga em relação à vida e são o oposto total das ideias de um jovem adulto que estava quase em burnout há sete anos e que ainda em 2018 não sabia qual o caminho a seguir. Já o tom fúnebre com que o beat de “Grief” se expande na atmosfera e os remendos de samples que formam o caos organizado que é a cama instrumental de “Nowhere2go” deram lugar a uma batida com contornos de banger, em que a componente atmosférica continua presente mas passa a servir um propósito muito mais tangível, já completamente refém de um kit de drums muito mais corpulento e em total sintonia com o tipo de produto que, por norma, vale mais tempo de antena.

Mais do que conceptual, a ligação de SICK! com o passado do seu autor chega-nos também por intermédio dos seus versos. Diz-se que às vezes são precisos dois passos atrás para, a seguir, poder dar três em frente e, num álbum com estas características, não é possível para Earl virar a página sem que lhe venham à cabeça alguns flashbacks de capítulos anteriores. Se ainda há algumas semanas, na entrevista que concedeu à Mixmag, lembrava a urgência de ter Domo Genesis, ex-colega dos Odd Future, de volta ao “jogo”, é logo em “Old Friend”, a canção que abre o alinhamento de SICK!, que as memórias de um dos colectivos mais irreverentes da última década vem à tona com um “Couple came, couple went still/ And what remain of the wolves, nil”. As referências e reminiscências do pretérito duram até à penúltima faixa, “Titanic”, em que recorda o fim do seu hiato em 2011 e regressa à campa de MF DOOM para lhe deixar mais uma flor. É só na despedida, em “Fire in the Hole”, que bate continência a AKAI SOLO depois de nos revelar como foi programado este seu novo chip mental — “It’s no rewinding, for the umpteenth time, it’s only forward”.

No primeiro trabalho de Earl sem um único toque de produção própria, a ausência do nome randomblackdude na lista de créditos é-nos compensada pelo inevitável primeiro placement do amigo e habitual colaborador The Alchemist num dos seus LPs — em 2019 o californiano tinha feito a primeira aproximação ao catálogo do fundador da Tan Cressida graças a “MTOMB“, de FEET OF CLAY. O resultado do último esforço entre ambos faz-se ouvir logo em “Old Friend”, canção que, em conjunto com “Tabula Rasa”, “Lye”, “God Laughs” e “Fire in the Hole”, traz para o presente algumas das cadências que fizeram de Some Rap Songs o clássico que ele é. Os também estreantes Rob Chambers, Theravada e Alexander Spit juntam-se a Samiyam, Navy Blue e Black Noi$e no lote de arquitectos sónicos do disco, que conta apenas com um par — trio, na verdade — de convidados vocais: quem nunca foi muito à bola com ZelooperZ também não vai morrer de amores pela prestação do rapper de Chicago em “Vision”; já E L U C I D e billy woods, que respondem enquanto Armand Hammer, são os responsáveis por acender o farol lírico que mantém a nossa atenção presa entre a monotonia do piano jazz recortado que se repete ao longo de quatro minutos em “Tabula Rasa”.


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