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Fotografia: Joey Wharton
Publicado a: 18/03/2024

Musicalmente omnilíngue.

DJ Harrison sobre Shades of Yesterday: “Sou eu num laboratório a conduzir uma pesquisa”

Fotografia: Joey Wharton
Publicado a: 18/03/2024

No Verão de 2023 vimos DJ Harrison ao lado do seu companheiro de Butcher Brown, o baterista Corey Fonville, a secundar o cantor Kurt Elling num concerto integrado no programa do Funchal Jazz em que o guitarrista Charlie Hunter também brilhou de forma intensa. Harrison, que nessa ocasião se sentou atrás dos teclados, é um working musician na real acepção da expressão, um músico que precisa de dominar diferentes idiomas para poder prosseguir no seu caminho. Tanto o vemos e ouvimos a produzir hip hop instrumental de alto gabarito — como aconteceu com o fantástico Tales From The Old Dominion lançado em 2022 na Stones Throw —, como a fornecer produções para rappers como Fly Anakin ou Pink Siifu, a assinar remixes para originais de Nubya Garcia ou a tocar em discos de gente como o já mencionado Kurt Elling ou do guitarrista DJ Williams. E isto, pois claro, nas pausas de actividade da sua banda Butcher Brown, uma das mais interessantes células criativas da cena de Richmond, na Virginia.

Percebe-se, por isso mesmo, as diferentes direcções presentes no novíssimo Shades of Yesterday, uma colecção de versões de temas originalmente assinados por gente tão notável quanto Donald Fagen, Vince Guaraldi, Freddie Hubbard, Ohio Players, Stevie Wonder, Shuggie Otis e Eddie Henderson, além de uns obscuros tipos franceses chamados Syntaxe e uns talvez não tão obscuros rapazes de Liverpool que respondiam ao nome The Beatles. Talvez já tenham ouvido falar… Sobre toda essa matéria, e em modo praticamente solitário, DJ Harrison operou a sua magia particular, estabelecendo uma linha de continuidade entre músicas vindas de campos muito diferentes, da cena bop mais tradicional ao jazz de fusão, do rock psicadélico ao proto-disco, do funk à soul. O resultado, Shades of Yesterday, justifica a conversa que a seguir se reproduz.



A minha primeira pergunta é muito simples. Tu tinhas planos para gravar um disco inteiro de covers antes de o começares? Ou a coisa foi acontecendo de forma menos pensada?

Eu tenho uma boa colecção de discos. Cresci a ouvi-los e a replicar as suas paletas sonoras. Enfiei-me num estúdio para me afinar com aquelas canções e também para tentar replicar a qualidade sonora desses temas. Isto tornou-se numa coisa minha, que é: sempre que eu vou fazer um álbum, faço uns quantos covers só para… É como a cena do Voodoo, do D’Angelo, em que eles foram para um estúdio ouvir discos e jammar em cima deles, até que alguma coisa acabaria por sair desse processo. Podem existir temas que se enquadrem na paleta sonora de algo que eu escutei, ou um detalhe qualquer numa canção que pode ser usado de uma nova forma numa faixa minha. Eu tenho o hábito de gravar esses covers e, na altura do Tales From The Old Dominion, as pessoas foram escutando-os numa Dropbox — “Meu, isto soa altamente. Devias lançar isto!” Eu pensei: “A sério?!” É que eu vejo muito estas coisas como sendo eu num laboratório a conduzir uma pesquisa.

E o que é que uma música precisa de ter para te chamar a atenção, ao ponto de quereres tu próprio dar-lhe a tua interpretação?

Tem a ver com o sentimento. Posso sentir nostalgia, pode vir de um certo groove, um certo beat, um certo compasso… Depende muito do tema em si. O “Galaxy”, por exemplo, tem um compasso em 4/4 e outro em 7/8, portanto dá-te aquela sensação de: “Onde é que foste desencantar esse groove?” É um daqueles casos em que a música me soa familiar e estranha ao mesmo tempo. Tentei obter isso na bateria, mas dando-lhe um certo polimento de hip hop.

O “Galaxy” é um dos temas em que eu não consegui decifrar quem é o autor original. Essa música é de quem?

O “Galaxy” é do Eddie Henderson. Eu não tenho a certeza… Creio que ele escreveu a música.

Já estou a ver, faz parte do alinhamento do Sunburst

Sim. E na Wikipedia não mostra informação sobre quem a escreveu, por isso presumo que seja uma composição dele.

A “Pling” é a outra que não sei de quem é.

Essa é do Shuggie Otis.

Ah… claro.

É do álbum Inspiration Information, que é um daqueles que… Esse álbum é fixe, para mim, porque vem dos anos 70, numa altura em que se gravava em fita. É meio que inacreditável pensar que um gajo como o Shuggie Otis tenha tocado tantos daqueles instrumentos sozinho. E isso serviu-me de inspiração. Ele era um gajo que já fazia tudo sozinho muitos anos antes de mim. Quis prestar-lhe essa homenagem. Aliás, todas estas músicas foram escolhidas como forma de prestar homenagens modernas, em que eu posso aplicar-lhes o meu próprio cunho, dependendo do que a canção me pede. Eu dou-lhes a minha interpretação, mas elas não deixam de homenagear os originais.

E tu não foste aos temas mais óbvios. Do Shuggie Otis, por exemplo, podias ter pegado em algum dos seus clássicos, na “Strawberry Letter 23” ou na “Aht Uh Mi Hed”…

É claro que sim. E pegar em certos êxitos podia ter algum impacto em determinada audiência. Mas a cena é esta: eu tendo a gravitar mais em torno daquelas faixas mais rebuscadas, que eu sinto que não receberam a devida atenção das pessoas.

Eu até me dei ao trabalho de verificar. A “Contusion” do Stevie Wonder, por exemplo, é das faixas menos rodadas do Songs In The Key Of Life. Portanto, tu foste mesmo à procura das cenas menos óbvias, os chamados deep cuts.

Podíamos ficar aqui bastante tempo a falar dos clássicos do Stevie Wonder, não apenas desse disco, mas da sua obra no geral. Ele escreveu muita música boa que merece ser reconhecida. Muitas das vezes, as pessoas prestam mais atenção às músicas que se tornaram populares, o que faz sentido. Mas quando tens o álbum e vais ouvir o que as pessoas chamam de filler material, aquilo tem substância e ajuda na estrutura do resto do disco. É como o For You, do Prince: a “Soft and Wet” é a mais conhecida, foi single desse disco, mas também lá tens a “Crazy You” ou a “My Love Is Forever” — há uma data de canções nesse álbum que comunicam comigo e que eu sinto que não recebem o devido reconhecimento. Esta é a minha opinião.

Muitas das vezes, isso a que as pessoas chamam de filler são aqueles momentos em que o compositor e a banda vão mais longe, sem quaisquer restrições. Por norma, isso transforma-se em material muito bom.

É isso.

Já me falaste do Eddie Henderson e do Shuggie Otis. No Shades of Yesterday também recrias temas do Freddie Hubbard, Vince Guaraldi e até mesmo do Donald Fagen, que pode ser incluído dentro do mesmo comprimento de onda, uma cultura particular à qual tu obviamente foste beber muito.

Sim. Esses músicos todos escreveram as suas canções, conduziram as sessões, andaram em digressões… Estudar estas pessoas é meio como que pensar naquilo que eu desejo ser. Essa é a trajectória que eu desejo para mim e eu já faço isso desde que sou adolescente. Tem piada, porque encontrei numas cassetes de gravações que eu fazia com 13/14 anos — por volta de 2001 e 2002 — um cover da “Palladium”, dos Weather Report, e outras malhas de diferentes outros grupos que eu ouvia na adolescência. Eu gravitava em torno daquilo e precisava de me apegar ainda mais à sua substância, de procurar nela as coisas que comunicam comigo. Ainda antes de eu dominar as teclas ou a bateria, eu já sabia que sons comunicavam comigo aos 12 anos de idade. E são coisas que ainda hoje, aos 35 anos, comunicam comigo.

Acho a tua abordagem ao “Tomorrow Never Knows” fenomenal. Eu ensino História da Música numa escola e sempre usei esse tema enquanto exemplo para os meus alunos de como é que tu podias vislumbrar o futuro já em 1966. Essa faixa tem tudo: fita em reverse, sampling, efeitos marados e até mesmo um break de bateria maravilhoso. Foi como se eles estivessem a prever o futuro com essa faixa.

Quis homenagear todos esses elementos de que falas. Quando a quis gravar com o meu input… Nessa faixa, é o Peanut Butter Wolf quem canta. Mas quando eu fiz essa gravação, só me lembrava de quando vinha da escola e só me importavam o J Dilla, o Madlib, o MF DOOM… Só o facto de poder estar associado ao gajo que esteve envolvido em tudo isso, mais o My Vinyl Weighs A Ton… Poder fazer parte dessa linhagem e tê-lo no meu disco é surreal. E ele é alguém que acredita na pesquisa que eu faço.

Além do Wolf, tiveste mais amigos contigo durante as sessões de gravação ou és apenas tu a tratar de toda a instrumentação?

Faço quase toda a instrumentação. As únicas pessoas que estiveram nestas sessões foram o Wolf e o Nigel Hall, que fez o solo da “Galaxy”. Eu já tinha gravado muitas coisas dele a solo, então perguntei-lhe: “Nigel, temos andado a curtir de George Duke há algum tempo e eu sinto que preciso de uma cena desse género na ‘Galaxy’”. Assim que meto a faixa, ele faz a coisa em apenas um take. Ele estava a solar na sala de captação e eu estava lá atrás a processar o som com uns efeitos. O que tu escutas no álbum é desse take. O Nigel ainda perguntou se era necessário fazer um segundo take, mas eu disse-lhe que não, que aquele já tinha tudo o que eu precisava. Todos aqueles efeitos e delays malucos — veio tudo desse primeiro take. E ainda houve outra pessoa comigo no estúdio a gravar — foi o Marcus Tenney, que tocou os sopros.

Se não estou em em erro, tens neste disco duas faixas dos Ohio Players.

Exactamente. O “Together” e o “Sweet Sticky Thing”.

Além de bons originais, esses tipos também tinham capas incríveis nos seus álbuns…

Sem dúvida. Tenho uma história engraçada. Um amigo meu, que se mudou recentemente de Richmond para Los Angeles, tem uma mesa de mistura muito doida que foi aquela que usaram para as gravações dos discos dos Ohio Players durante os anos 70.

Uau! Tem um belo pedaço de história nas mãos.

Tem mesmo.

Outra faixa que me chamou muito a atenção foi a “L’Anthropofemm”, dos franceses Syntaxe. Como é que te cruzaste com esse tema?

Quando estava a sair de uma sessão de estúdio em LA., o Tyler, The Creator mandou-me uma mensagem no Instagram, porque no dia a seguir eu ia ter com ele ao estúdio. Creio que ele estava de volta da gravação de uma campanha para a sua Golf Le Fleur, então eu mantive-me na minha, tranquilo para não atrapalhar muito. A dada altura ele mete essa música a tocar e começa a falar-me dela. Nós trocámos muita música, mas quando ele toca a dos Syntaxe… Eu nunca tinha escutado aquilo antes. Lembro-me de ter passado aquela noite a ouvir a faixa, depois voltei a ouvir ao acordar, à saída do hotel, no Uber a caminho do aeroporto, no aeroporto… Quando aterrei, disse-lhe: “Meu, eu passei as últimas 24 horas a ouvir esta música.” [Risos] O original tem uma certa arrogância… Só me lembro de chegar a casa, de retirar apenas o essencial da mala de viagem, porque viajo sempre com algum material de som, e passados uns minutos estava a tentar gravar aquilo. Fiz esse cover dos Syntaxe naquele dia. Creio que foi a 21 de Dezembro.

Como é que vais resolver este material em cima do palco?

Vou tocar algumas destas versões ao vivo, sim. Mas é tramado transpor isso para um espectáculo ao vivo, porque no estúdio podemos aplicar-lhes inúmeras camadas. Ao vivo tenho uma banda, às vezes um trio ou até posso mesmo tocar sozinho, e torna-se difícil condensar todas essas partes numa pessoa apenas e ao vivo. Ainda ando a tentar decifrar como o posso fazer, porque vou querer que as canções soem preenchidas.

Além deste disco, que outros planos tens em mente para 2024?

Tenho muitos planos. Gostava de reeditar coisas minhas antigas, mas também ando a gravar um novo disco a solo, outro com Butcher Brown… É muito bom poder estar na posição em que estou. Vai ser o meu terceiro álbum pela Stones Throw, o terceiro de Butcher Brown pela Concord Jazz… Toda a gente com quem me associo tem estado a fazer música a vida inteira, então ter a oportunidade de continuar a fazê-lo mas numa plataforma maior… Tenho de me certificar que entrego as coisas bem feitas.


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