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Fotografia: Joey Wharton
Publicado a: 07/12/2021

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DJ Harrison: “Adoro sentir a energia humana que se cria no estúdio”

Fotografia: Joey Wharton
Publicado a: 07/12/2021

Devonne Harris é o nome a que DJ Harrison há-de ter respondido muitas vezes quando, ainda criança, era “apanhado” pelos pais a mexer na colecção dos discos que eram também ferramenta de trabalho — o seu progenitor trabalhava em rádios. Entretanto tornou-se uma identidade artística que poderá confundir algumas pessoas, porque Jarrison não é, na verdade, um DJ como aqueles que reconhecemos serem pessoas como DJ Shadow ou, para dar um exemplo mais próximo, DJ Ride: os pratos a que está mais habituado serão os da sua bateria.

De facto, é como baterista que DJ Harrsion, natural de Richmond, na Virgínia, se tem notabilizado: encontramos o seu nome em fichas técnicas de trabalhos de Matthew E. White, Jack White (o homem dos White Stripes que é patrão da Third Man Records), Kurt Elling, Dillon, Kiefer e, obviamente, Butcher Brown, banda que já conta com uma considerável discografia.

Em nome próprio, DJ Harrison também tem mostrado assinalável serviço, tendo, em 2017, oficializado uma ligação à Stones Throw de Peanut Butter Wolf, notável editora que o descreve como um criador “inspirado pelos músicos locais da fértil e plural cena de Richmond: entre rappers, produtores, punks e bandas de bluegrass, ele tem-se encaixado numa cena expansiva de músicos com que tem colaborado”.

E tudo isso leva-nos a Tales From The Old Dominion, o novo álbum que acaba de lançar e que inspirou a presente conversa tida há algumas semanas no Zoom, quando acabava de aterrar em casa vindo de uma digressão europeia com os seus Butcher Brown. Este álbum, garante a Stones Throw, “reflecte a forma como DJ Harrison escuta o Sul e se move através do mundo”. Um diário de viagem, portanto, criado durante a pandemia, quando a imaginação era a única coisa que não se deixava confinar.



Podemos começar por falar sobre os teus anos de formação?

Claro.

Eu li que o teu interesse em coleccionar discos foi desencadeado pelo teu pai, que era um DJ de rádio.

Sim. Ele era uma espécie de lenda local, nas áreas de Virgínia, D.C., por aí. Ele passou por várias estações de rádio e lembro-me de termos sempre imensos discos espalhados por casa. Em miúdo, eu gravitava muito em torno desses discos. Mais ninguém na minha família tem algum tipo de ligação à música, pelo menos que eu saiba. O gosto dos meus pais pela soul, o funk e o r&b foi-me passado. Isso entranhou-se em mim. Eu adorava ver as capas dos discos. “Ah, isto é uma banda? Mas como é que alguém consegue arranjar uma banda? E como é que se faz um álbum?” A partir daí, fiquei fascinado com a forma como se cria um disco e todos os processos que isso envolve — dos instrumentos, à gravação, composição… Todas essas coisas.

Existia algum tipo de ritual que tinhas de cumprir antes de deitar a mão a esses discos dos teus pais? Escutavas ao lado deles ou ias buscá-los às escondidas? Como é que era o teu acesso a essa colecção?

Muitas das vezes eram só eles a meter a música a tocar para mim. Quando fiquei mais crescido, sim, era capaz de andar sorrateiramente a experimentar os CDs ou a tentar ligar o gira-discos. Fui apanhado porque estraguei alguns discos [risos].

Eu apercebi-me, maioritariamente através do cinema e televisão, de como as vossas escolas fomentam imenso o talento. Nos filmes, existe sempre aquela ideia da banda que até pode acompanhar os eventos desportivos das equipas da escola, tocar em festas, etc. Foi através do sistema de ensino que tu progrediste na tua forma de tocar?

Sim. Houve uma altura em que cheguei a uma escola que tinha aulas de combo e foi incrível. Deu-me acesso a todo o tipo de instrumentos de que eu já tinha ouvido falar, mas que nunca tinha visto antes. Tipo, “então isto é que é uma tuba? E é assim que se toca tuba?” Fiquei com este bichinho de querer aprender todos os instrumentos e as suas funções, o papel de cada um deles.

Quem dirias que foram os bateristas que te inspiraram a tornar a tua relação com esse instrumento ainda mais séria?

O meu amigo Questlove, sem dúvida. Há uma data de malta daqueles discos mais antigos, dos Earth, Wind & Fire e bandas desse género, o David Garibaldi dos Tower of Power… São muitos. Na verdade, inspiraram-me também muitos produtores de hip hop, no que toca à programação. Aquela malta que consegue para a bateria aquele feeling das drum machines e vice-versa.

Há por aí uma nova geração de bateristas que são também produtores. Lembro-me de ti, claro, mas também do Makaya McCraven, o Terrace Martin, o Kassa Overall. E estou certo que existirão mais ainda. Sentes que são vocês quem estão realmente a construir a ponte entre o jazz e o hip hop nos dias que correm?

Pode dizer-se que sim. Ao mesmo tempo, acho que essa responsabilidade acaba por ser de todos. Até porque os músicos vão acompanhando aquilo que se anda a fazer ao nível da electrónica, tal como os produtores também tentam não ficar apenas focados na electrónica e vão estando a par daquilo que os músicos andam a fazer nos dias de hoje. As coisas começam a influenciar-se umas às outras. Está a acontecer o mesmo que aconteceu com aquele jazz psicadélico nos anos 60, que acabou por se espalhar pelo público do rock, como fizeram o Miles Davis ou o Jimi Hendrix. Isso tem muito a ver com a altura em que as coisas acontecem e com aquilo que se anda a passar no mundo. As coisas acabam por ter uma responsabilidade partilhada. Um produtor e um baterista apresentam sons diferentes, mas eles podem ter bebido certas coisas um do outro. É isso que ajuda a construir as tais pontes. Por isso, não existe propriamente um grupo de pessoas com maior responsabilidade do que outros. Essa é uma tarefa partilhada por todos e todos são capazes de trazer mais alguma coisa para cima da mesa.

A diferença entre tocar bateria ou programar através de uma MPC deve ser mais ou menos a mesma que separa o pintar um quadro com um pincel do desenhar num iPad. Que semelhanças ou diferenças encontras tu entre essas duas formas de criar ritmos?

Eu acho que isso depende sempre daquilo que queres retirar desses instrumentos em específico. Por vezes eu vou tocar bateria e quero que aqueles sons se assemelhem a algo que foi programado, como numa MPC. Tal como também acontece eu estar a fazer beats na MPC que soam muito a um baterista real. Há diferentes formas e métodos para fazer ambas as coisas. Acho que depende sempre daquilo que a música pode estar a pedir. São duas coisas que andam de mãos dadas. Embora eu, em determinada altura, possa estar a precisar de algum tipo de particularidade muito específica da bateria ou da MPC. Conforme o tempo foi passando, eu comecei a trocar as voltas às coisas, ao ponto de eu estar a tocar bateria numa faixa e as pessoas me perguntarem se aquilo é programado. Tem a ver com aquilo que eu estava a falar, de saberes qual o papel a desempenhar por cada um desses instrumentos e de que forma podes modificar o som para que se pareça com outra coisa.

Tu és capaz de misturar ambos os instrumentos? Por exemplo, quando tocas bateria tens a MPC ao teu alcance ou tentas não misturar essas ferramentas?

Diria que tento mantê-las perto uma da outra. Algumas vezes — especialmente agora, que estou cada vez mais competente com o Cubase e com o gravar instrumentos através do computador — aquilo que eu faço nas minhas faixas é ter uma camada de bateria electrónica e outra com uma bateria acústica. Assim consigo perceber qual das duas vai soar melhor. Neste álbum, tens também partes de bateria real com algumas camadas de bateria tocada na MPC por cima. Isso serve o propósito de chegar a novos sons. Tu podes alcançar novos resultados se fores aplicando diferentes camadas umas em cima das outras. Mas tudo depende da canção. Sou capaz de ficar duas horas a tocar bateria até chegar a um loop. Outras vezes, ligo a MPC e consigo logo criar dois compassos de bateria. Depende muito daquilo que os temas te estão a pedir.



Tenho uma questão — um bocado mais filosófica, se assim lhe quiseres chamar — para te colocar. O ritmo é a forma de fazer música mais antiga que existe e eu tenho a certeza de que, há milhões de anos, os nossos antepassados eram capazes de tocar ritmos com paus, pedras ou outra coisa qualquer. Como é que, ano após ano, ainda conseguimos detectar inovação nesse campo? Nós estamos há tanto tempo a criar padrões rítmicos e no entanto parece haver sempre  espaço para se inventarem novos ritmos.

Isso é uma cena muito doida. É como tu dizes: os nossos antepassados utilizavam esses sons como forma de comunicação. Creio que é o que se passa também com a comunicação verbal, porque à medida que o tempo avança vão surgindo novas palavras e conceitos. Acho maravilhosa a quantidade de ritmos diferentes que tu consegues executar com apenas duas mãos e dois pés e como ainda existe espaço para inovares. Essa inovação tem como base algo que já tinha sido inventado antes. Mas o facto de existir essa reformulação… Se tu pensares nos povos indígenas da América ou nas tribos africanas, no facto de eles utilizarem um tambor para comunicar com outras pessoas… É uma cena muito primitiva, mas foi a partir daí que tudo aquilo que eu faço evoluiu. Eu tento criar a minha própria linguagem, as minhas próprias palavras, com os meus ritmos.

Há bocado perguntei-te pelos teus mestres ao nível da bateria. E em relação aos beats, quem sentes que mais te influenciou?

O Premier, o Madlib… O Dilla, obviamente. O DOOM na sua faceta de Metal Fingers. Fui influenciado até mesmo por alguns daqueles discos clássicos, do Jazzy Jeff ao Jam Master Jay, que são coisas que o meu pai punha a tocar. Essa foi uma fase engraçada, quando eu me apercebi de toda essa ideia por detrás do sample e que os produtores estavam a ir buscar pedaços das músicas que eu ouvia há anos.

Tu já tocaste com o Jack White ou com o Kurt Elling, entre muitos outros. Como é que tu lidas com os impulsos criativos quando és chamado para ser “apenas” um músico de sessão?

Eu adoro isso. Leva-nos de volta à tal cena da comunicação, de que a música não é mais do que uma forma de comunicarmos. O Kurt Elling tem a sua forma de o fazer, o Jack White há-de ter outra forma… Eu gosto imenso de tentar perceber o quanto de mim consigo oferecer à cena deles. É como se eu fosse uma extensão das vibrações deles. Eu consigo inserir-me em qualquer tipo de situação, seja ela de gravação ou composição. Mas ter esse pessoal a segurar o leme do navio faz-me manter os pés assentes na terra, no sentido de que eu vou lá estar a complementar a cena deles sem estar necessariamente a tentar meter-me no caminho deles. É uma cena engraçada e que eu gosto de fazer. Faz também com que eu puxe por mim mesmo. Eu posso tocar para um gajo do hip hop, do jazz ou do rock. Pensar em como é que me vou inserir em cada uma dessas situações é algo que me ajuda a expandir a paleta de sons. Acho que sou um músico melhor por ter a capacidade de escutar e de me inserir no universo dos outros.

Butcher Brown acaba por ser onde todos esses registos — o jazz, o funk, o hip hop, o rock… — se cruzam, não é? Queres falar-me um pouco sobre esse capítulo muito específico da tua vida artística?

Nós voltámos de uma digressão na Europa há poucos dias. Quando surgiu Butcher Brown, eu já era um multi-instrumentista e já gravava as cenas por mim próprio. Só não tinha tido aquela experiência comunitária de tocar numa banda e de partilhar coisas com outras pessoas. Butcher Brown obrigou-me a ter os pés assentes na terra. Sinto que todos temos evoluído devido às nossas diferentes experiências dentro da música. Ao lado deles, sou quase como uma esponja. Estar atento ao que se está a passar no grupo ajuda-me colocar a minha audição à prova. É a cena bonita no meio disso. Até porque todos viemos de um cenário musical diferente e isso explica a grande diversidade de sons que cabem dentro do nosso registo. E ainda há muita coisa que queremos fazer.

Só consigo imaginar ao que é que pode soar a playlist que vocês ouvem juntos quando andam na estrada…

Man… Vamos a todo o lado. Do trap a David Axelrod. De Miles Davis a Led Zeppelin. Do funk e boogie dos 80s ao Madlib ou aos Migos. Vamos mesmo a todo o lado.

Ainda bem que falas na cena funk e boogie dos anos 80. No Tales from the Old Dominion, a julgar por temas como o “Be Better” ou o “City Lights”, tu pareces estar a explorar esse som clássico de fusão, que talvez tenhas apanhado através de discos de Weather Report ou de Steely Dan. Quais foram as tuas principais inspirações para este álbum?

Quando começou a quarentena, em Março de 2020, foi de doidos. De repente, estava em casa com imenso tempo livre. “Bem, tenho tempo para levar as coisas com calma, fazer a minha pesquisa e concentrar-me na música”. Pude fazer com que o processo de criação do álbum fosse um pouco mais lento e o estúdio passou a ser mais uma espécie de laboratório. Tinha lá o meu gira-discos, alguns vinis e umas revistas. Investi imenso na pesquisa. Acabou por se tornar num reflexo daquilo que é a minha colecção de discos. Há sons a vir de todas as direcções. É algo de novo mas também é uma reminiscência de tudo o que veio antes. Eu quis juntar tudo num caldeirão, todas essas influências que eu captei. Há Weather Report e Steely Dan por entre essas influências, sem dúvida. Há muitas influências espalhadas pelo disco mas, no fundo, sou eu a tentar criar a minha própria versão delas.

Não tive a oportunidade de passar os olhos pela ficha técnica desse projecto. Tiveste convidados ao teu lado ou és apenas tu?

Sou maioritariamente eu. Diria que 97% do álbum sou só eu, a cantar e a tocar todos os instrumentos. Tive um par de convidados. Um deles é o Stimulator Jones, que também é de Virgínia e é meu colega na Stones Throw. Também recebi o meu amigo Nigel Hall. Essa faixa deve ter sido feita, para aí, em Junho deste ano. Nós estávamos a trabalhar no álbum dele e eu perguntei-lhe se ele podia retribuir o favor e ter uma faixa no meu álbum. Também foi assim que consegui o Pink Siifu. Estivemos a trabalhar no álbum dele aqui. Ele veio, fizemos algumas sessões e eu disse-lhe que seria fixe conseguir que ele também entrasse no meu disco. Outro amigo meu que também entra é o Billy Mercury. Conheci-o na PLAYLIST Retreat, do Jazzy Jeff, que é tipo um campo de criação para produtores. Conheci-o lá. “És de Virgínia? E moras mesmo ao meu lado? Bora fazer alguma cena juntos”. Eu toquei para um projecto dele que deve de sair ainda antes do final deste ano. Eu tinha aqui uma faixa e meio que já tinha conseguido imaginar o que ele era capaz de fazer com ela. O gajo trouxe mesmo aquela vibe, tipo Quiet Storm. Ficou muito fixe. São esses os quatro convidados do projecto.

E, fora os samples, todos os instrumentos foram tocados por ti?

Certo. Há cenas que até foram feitas a partir de material antigo que eu já tinha lançado. Meti as coisas na SP-404 e reconfigurei-as. Há só um par de temas assim.

Planeias levar uma banda contigo em digressão para apresentar este álbum ao vivo?

Vai depender da agenda. O ideal seria eu conseguir datas para me apresentar com banda mas também algumas em que pudesse ir sozinho e fazer uma cena mais à base de loops. Há formas diferentes de conseguir fazer isto mas não tenho dúvidas de que adoraria fazer isto com uma banda. Aconteceu uma cena engraçada durante esta última digressão. Eu tinha lançado um dos singles e meti-o a tocar para a malta ouvir. O Andrew, o nosso baixista, sugeriu “já que saiu hoje, devíamos incluir isto no nosso set”. Aprendemos a tocar aquilo no camarim, fomos para o soundcheck e praticámos um par de vezes. À medida que fomos tocando a faixa, começava a soar cada vez melhor, ao ponto de me deixar a pensar, “devíamos tocar o álbum todo” [risos].

E que cenas tens aí na calha para editar nos próximos meses?

Está aí o novo álbum do Kurt Elling, SuperBlue, que foi gravado aqui. O Pink Siifu também tem umas cenas para sair. Tenho remisturas aqui e ali, como aconteceu com a “The Message Continues”, da Nubya Garcia. Fiz uma faixa com uma artista nova, a BeMyFiasco, que conheci numa concentração da Foreign Exchange. Ando a tentar colaborar mais. Acho que o facto de termos passado muito tempo nas nossas casas, sozinhos, me fez querer estreitar os laços com as outras pessoas. Durante a pandemia fiz muitas colaborações à distância… E eu até gosto disso. Mas também sou aquele gajo purista, da velha guarda, que adora sentir a energia humana que se cria no estúdio. É isso. Quero fazer mais colaborações. E Butcher Brown também tem novo material na calha. Havemos de nos juntar em estúdio, algures no próximo ano. Tento deixar a minha marca um pouco por todo o lado. Ser músico freelancer e ter a oportunidade de tocar no meio de tantos grupos diferentes ajuda-me a manter as minhas ferramentas afiadas.


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