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Fotografia: Daryan Dornelles
Publicado a: 26/11/2021

Em cada esquina um crioulo.

Dino D’Santiago: “O BADIU é o primeiro álbum em que visto a minha pele sem receio de mostrar a minha vulnerabilidade”

Fotografia: Daryan Dornelles
Publicado a: 26/11/2021

Projectou um Mundu Nôbu, em 2018, apelou mais à mistura em KRIOLA, em 2020, e, para fechar a trilogia, canta uma história para ela não se perder na História em BADIU, em 2021. Dino D’Santiago continua a crioulizar-nos e a missão parece estar longe de se dar por terminada, acrescentando-se mais camadas neste novo longa-duração: a saúde mental é, por exemplo, parte importante da equação do disco.

Em conversa com o Rimas e Batidas, o artista de Quarteira falou de tudo um pouco, abordando a sua prestação solitária no Iminente, o acompanhamento psicológico que começou a receber, a vontade de ser educado pelo olhar do seu filho, o povo que dá título ao álbum ou o afro-futurismo à portuguesa.



Vou escolher o teu concerto no Iminente como ponto de partida. Achei muito engraçada a forma como te apresentaste sozinho no palco, um formato que já vimos a ser utilizado por outros artistas, como o Kanye West ou o Jay-Z, no pico das suas carreiras. Isso a combinar com a tua prestação, que na altura apontei como “imaculada”, deixou-me ali uns quantos dias a remoer naquilo. Chegando a este álbum, sentes que estás na tua melhor forma, neste momento?

Pois foi. Na altura até partilhei o teu texto. Eu sinto tanta coerência e segurança na mensagem que quero passar… Já tive até a reciprocidade de quem me ouve, sente e se manifesta. “Dino, eu vou estar lá na fila da frente!” ou “Dino, eu vim de Bragança para te ver”. Senti a necessidade de transformar o público na minha orquestra. Aquilo contagia-me de uma forma tão extrema, que eu acho que as pessoas nem têm noção. É uma injecção de energia que vem do público. Cada boca que eu vejo a cantar as canções… Man, tá tudo certo. Essa roupagem, de ir eu sozinho para o palco, era para ter acontecido logo no início, desde o Mundo Nôbu. Ainda assim, no Iminente, eu ainda não apresentei o conceito todo. No videoclipe com o Slow J, já vais ver o meu palco montado como eu quero: chão espelhado com folha de água; a parede de LEDs, em vez de ser na horizontal, vai ser na vertical; os elementos todos de Cabo Verde. Isto tudo no campo do visual. Mas até podia ser só eu e umas luzes, que a cena acontecia na mesma.

Para mim, o importante é a mensagem e a força do beat. Quando decidi avançar nesta viagem, pensei: “imagina como é que será daqui a 50 anos, quando alguém for reflectir sobre o nosso tempo”. Nós somos da era do beat. Somos realmente a era do beat. Só que a indústria musical em Portugal ainda tem algum atraso, para aí de 15 anos, em relação a alguns países. As frequências do beat e do bass são as nossas assinaturas. São as assinaturas do nosso tempo. E quando esses elementos são abafados pelas bandas, que nós usamos para tocar por cima, só para ser considerado música — porque ainda existe esse preconceito — tu perdes a energia do que realmente é o nosso tempo.

Ou seja, não se tratou apenas de uma escolha estética. Isso é um statement que estás a tentar fazer passar.

É mesmo um statement.

“É isto que se faz agora. É isto que vamos representar.”

É. Até porque não tens muitas bandas que consigam reproduzir ao vivo aquela pressão sonora. Os Buraka Som Sistema eram um exemplo disso. Em vez de um kick, eles chegavam a ter sete! Não me lembro de mais nenhuma reprodução como essa, dos Buraka. Nem a nível internacional. Há pessoal a fazer as coisas bem, a juntar o minimalismo com a cena orgânica. Mas cais naquela cena da banda abafar o beat, quando a banda tem é de servir o beat. O beat é a matriz. É a assinatura do nosso tempo. O que eu fiz nesse concerto foi um statement e é algo que eu quero continuar a trazer agora ao vivo, em qualquer palco.

Dás já como certo de que os teus próximos concertos vão ser nesse formato?

Sim. Se o Caetano Veloso pode dar um concerto sozinho, no Coliseu, porque é que eu preciso de ter tanta gente no palco? A mensagem sou eu e o beat.

Apesar dessa excelente forma que atravessas, tu chegas a este disco mais vulnerável do que nos anteriores. O que é que te levou a condimentar a tua música desta maneira?

A principal razão é que eu comecei um tratamento — uma terapia — de auto-conhecimento e estou regularmente com uma psicóloga a trabalhar a minha saúde mental. Foi um investimento necessário. É um tratamento avultado. Não existe uma comparticipação. Nós, enquanto humanidade, devíamos de ter acesso ao apoio psicológico. Tal como temos acesso a um médico de família. Muitas das doenças físicas que se manifestam em nós vêm do nosso sistema nervoso, das doenças da nossa alma, tristezas que vamos abafando dentro de nós, angústias. Sempre tive essa curiosidade e sempre pesquisei bastante sobre o auto-empoderamento, sobre como coabitar num planeta em que todos somos parte de uma mesma equação. Senti a necessidade de recorrer a isso agora por causa da fast lane, da velocidade com que as coisas andam. Tive de parar. Eu estava deitado e, se acordasse, deixava de conseguir dormir mais. O meu cérebro ficava logo a 3000 à hora. Tive de procurar essa ajuda e ela foi determinante no processo deste disco. Existe um antes e um depois deste disco, mesmo fazendo ele parte da mesma trilogia que o Mundo Nôbu e o KRIOLA. O BADIU é o primeiro álbum em que eu visto a minha pele sem receio de mostrar a minha vulnerabilidade. Porque foi nessa vulnerabilidade que eu encontrei caminhos que me deram uma força ímpar. E o palco tornou-se ainda mais sagrado para mim, porque é lá que eu consigo perceber o feedback das pessoas que entendem a minha mensagem. Tornou-se num canal aberto mas que é capaz de respeitar a minha individualidade. Foi um struggle e este disco reflecte muito isso. Há também o nascimento do Lucas, que se tornou no epicentro de todo este meu movimento. Levou-me a escrever o disco ainda mais rápido, com vontade de deixar este legado. Estamos nesta situação de pandemia e eu não sei o que é que me pode acontecer. Queria deixar-lhe isso. Senti que o meu “livro” ainda não estava finalizado, depois do KRIOLA. Precisava de mostrar este outro lado. Mostrar-lhe que ele pode errar o número de vezes que forem precisas até acertar. Não há mal nenhum nisso.

Há aqui, também, uma grande empatia para com os outros. No disco acabas por explorar também as vulnerabilidades daqueles que te rodeiam, ao abordares temas como a misoginia ou a homofobia.

Bastante. Mas eu sinto que sempre fui assim. Sempre fui muito observador. E eu só critico quando consigo trazer uma solução. Claro que já fui um desses putos, estúpido, que mandava postas de pescada à toa, compradas no senso comum da nossa ignorância. Mas na pele de adulto, e vestindo a responsabilidade social que cada cidadão do mundo deve ter, estes assuntos já não me deixam dormir direito. Eu não falo à toa. Eu percebo o poder da palavra. Se disparas uma vez, já não tens como voltar atrás no que disseste. Todas essas fobias, fruto dos credos que fomos tendo ao longo dos milénios e do medo castrador da nossa liberdade, fizeram-me ficar muito mais atento e a ter muito mais empatia pelo próximo. Até porque eu tenho amigos com as mais variadas condições humanas — de todas as cores, de todos os gostos, de todas as crenças, de todas as espiritualidades — e vejo uma enorme riqueza nisso. Os millenials são um reflexo disso. São muito mais inclusivos, muito menos preconceituosos. Olho para o meu filho e digo-lhe, “olha, este mundo está uma merda porque ainda existe uma grande força exercida pela geração do teu pai e da geração do pai do teu pai, que ainda são as pessoas que estão no lugar de quem toma as decisões. Mas a tua geração é uma geração regenerada”. Tenho muita esperança. Quero ser educado pelo olhar do meu filho e sentir que tenho a responsabilidade de fazer deste mundo um lugar melhor. Não podemos ser tão egoístas. A nossa geração é a mais conformada que existiu até hoje. Não há uma que se conforme tanto quanto a nossa. Vemos o Iêmen, com tantas crianças a morrer à fome. Vemos o Paquistão, com pessoas a fugir da guerra. E nós? Vamos para o Tik Tok ver uma coreografia como se nada fosse. Temos acesso a tudo e não fazemos nada. Isso mexe comigo. Daí este disco ter muita angústia transformada em canção.

E quando é que te fechaste a produzir este disco? O press release apontava para uma residência de quatro semanas que tu organizaste para esse efeito. Quando é que isso aconteceu? E quem foram as pessoas que levaste contigo para te ajudarem?

Foi de Março a Abril deste ano. Cumpriu-se com pessoas maravilhosas. Em estúdio, tive a produção do Toty Sa’med, do Djodje e do Djodje Almeida. Tive a Nayela, que canta no disco e vai em breve lançar a cena dela, a solo. Tive o Beat Laden e o Pedro Gerardo na equipa técnica. O Leandro Ramos, que foi a pessoa que tratou de toda a casa e cozinhou para nós, para não termos de sair. Foi impecável e esse é um trabalho imprescindível, quando queres fazer uma coisa deste género. Estiveram comigo a minha família — o meu filho e a mãe do meu filho. Via Internet, mas ligados a nós em directo, tive o Paul “Seiji” Dolby, que está na Austria, o Nosa Apollo, através de Londres, o Kalaf, que estava em Berlim, o Nami, em Los Angeles e o Branko, apesar de estar em Lisboa. Depois foram chegando amigos, que foram complementando as narrativas. O disco é muito um fruto das conversas que íamos tendo, eu, o Tristany, o Sir Scratch, o NBC, o Valete, o Virgul, o Djodje… As pessoas iam chegando e abraçando o movimento. E, claro, todas as outras pessoas que estão creditadas no disco, como o Slow J, a Nayela, o Rincon Sapiência, via São Paulo, e a Lido Pimienta, via Colômbia. A faixa com a Lido foi a última a chegar. Ela gravou logo uma ideia, que ficou brilhante, mas ela quis regravar, em Nova Iorque, enquanto estava a montar uma exposição. Enviou mesmo no limite e nós atrasámos o lançamento do disco por causa disso [risos]. Felizmente está aí e está incrível. E a minha avó, que antes de falecer consegui gravar a voz dela, a Nha Tareza.

Tudo o que está no disco surgiu, literalmente, desse processo? Não tinhas maquetes ou ideias apontadas que, depois, ganharam outra vida nessa residência? Até mesmo por causa dessa terapia que iniciaste. Nunca te aconteceu estares a falar com o terapeuta e achares que algo que disseste dava uma ideia boa para um tema?

Isso acontece-me muito. Mas eu gravo as coisas mentalmente. Foi tudo criado lá. Eu é que vinha com muita informação na cabeça. Eles na altura até pensaram, “achas que é possível fazermos isto em quatro semanas?” Eu disse-lhes que fiz o KRIOLA em duas semanas — uma em Londres, outra em Quarteira. Este aqui demorou mais, porque estávamos à procura do som que representasse essa comunhão. Se tu juntas esta quantidade de criativos… Não há como as coisas não acontecerem. Eu tinha essa fé. E o que é certo é que fizemos 37 canções, para escolher as 12 que ficaram no disco. Dá uma média de mais de uma canção por dia. Quando terminou, nem eles acreditavam. Se tu estás predisposto e crias condições para que a inspiração aconteça… Não existe aquela cena de “a inspiração veio até mim quando eu estava sentado ao sol” ou “a inspiração chegou-me quando eu estava sentado na pedra do Bob Marley”. Não. Tu crias as condições e a inspiração vai acontecer. A minha profissão é ser músico e, então, todos os dias tenho de dedicar-me um pouco a isso. E, há bocado, faltou-me mencionar o Charlie Beats, que também esteve presente nessas sessões. Bem como o Fumaxa, que produziu para algumas dessas 37 canções, embora nenhuma daquelas em que ele entra tenha ficado no disco.

E quanto à expressão que dá o título ao disco, BADIU. Porque é que a escolheste para representar um novo álbum?

Principalmente por dois motivos. Uma, é o facto do povo Badiu nunca ter vindo para as narrativas. Tiveram origem nos escravos que saiam da Gâmbia, Senegal e, posteriormente, da Guiné, e eram trazidos como mercadoria para o tráfico de pessoas escravizadas, pelos portugueses, para a Cidade Velha, antiga Ribeira Grande, que já foi capital de Santiago. Era um ponto estratégico no Oceano Atlântico para todas as transacções comerciais, desde o ouro até às pessoas escravizadas. Foi lá o berço da escravatura. Eu homenageio os Badius porque eles conseguiram fugir para o interior de Santiago — sairam do litoral e foram para as montanhas — na altura em que a Cidade Velha foi bombardeada por ataques corsários de piratas vindos de Inglaterra, Turquia, Holanda e França. Esses ataques ocorreram durante três séculos, sendo que os do século XVII foram os mais explosivos e incendiaram a cidade toda, ao ponto de deixar de ser a capital. Esse povo refugiou-se no interior, foi um povo que sofreu bastante com o clero, neste caso a igreja católica, que lhes negaram quer os costumes como a própria condição humana. Os resistentes — aqueles que conseguiram fugir — foram os únicos que conseguiram conservar as culturas que vinham directamente de África. Depois, houve uma conversão natural ao catolicismo. Mas a fusão com os ritmos de África sempre se mantiveram, como o batuque e o funaná. Até ao final do Estado Novo, esses géneros eram proibidos. A minha intenção foi: “agora que vocês já dançam o batuque e o funaná e perceberam que não têm nada de demoníaco — pelo contrário, eleva-nos o espírito — eu vou contar-vos a história para que ela não se repita”. São sons de resiliência e resistência de pessoas que eram analfabetas, não letradas, e as canções eram eternizadas só em memória. Depois, nos anos 70, ganham um novo fulgor com outros instrumentos, graças a’Os Tubarões. Nos anos 80, graças aos Bulimundo. Nos anos 90, graças aos Ferro Gaita e a pessoas como o Orlando Pantera. Existiram sempre figuras icónicas que permaneceram — como Nha Balila, Bitori Nha Bibinha, Ntoni Denti d’Oro, Nha Nácia Gomi… Pessoas antigas, ancestrais, que foram mantendo as histórias daquele tempo intactas. Muita da história do povo Badiu está reflectida apenas no batuque e no funaná, que são géneros que não eram considerados géneros nobres, que não pertenciam às elites. Mas foram esses géneros que construíram Cabo Verde. Então, essa é a minha homenagem. Até porque eu sou filho de dois Badius, do interior de Santiago. As únicas ilhas que tiveram escravatura foram Santiago e a Ilha do Fogo. Depois, o Fogo, juntamente com a Ilha do Maio e de S. Vicente, passaram a ser, estrategicamente, ilhas boas para as tropas piratas se formarem e invadirem a Cidade Velha para a tomarem. Essa história é muito contada por pessoas que fazem teses de doutoramento com base nessa história de África. Mas não é cantada. E nós sabemos que a música chega às pessoas. África chega muito mais rapidamente às pessoas através da música do que de outra forma qualquer. Então, fiz questão de honrar esse propósito e esse caminho.

Tu, quando vais a Cabo Verde, tens essa curiosidade de ir aos sítios onde isso aconteceu? “Olha, era aqui que o navio atracava.”

Sim. E existem muitos navios. Não dão para visitar. Tens um na Boavista, encalhado, que dá para ver. O resto, está tudo no fundo do mar. A imagem dantesca com que eu fiquei, por saber dos muitos negros que foram parar ao fundo do oceano juntamente com esses navios, amarrados no porão. Não havia escapatória possível. São mais as almas que ali estão, debaixo daquele chão, do que propriamente o ouro, que algumas pessoas vão à procura. É forte, chegar à Cidade Velha e ver aquele pelourinho que servia de castigo para quem tentasse fugir. Hoje há um mercado lá ao pé, as crianças brincam por lá, sem perceberem o que aquilo um dia foi. Claro que tu não deves de apagar a história, para não a tornares a repetir. Mas há monumentos que, realmente, não deviam de ter o nome de “monumento”, por terem sido instrumentos de tortura. Tu vês as pessoas a visitar os pelourinhos, em Portugal, por todos os cantos, especialmente aquele que está em frente à Câmara Municipal de Lisboa. E visitam-nas como se fossem monumentos. Mas aquilo foram instrumentos de tortura. Não deviam de ser motivo de vanglória. Se querem fazer daquilo parte do nosso roteiro histórico, então que contem a história toda, sem o romantismo. Expliquem que, realmente, foram centenas de milhares de vidas que foram dizimadas nesses pelourinhos. Se eu partisse já para outro plano da vida, este Badiu diz muito da mensagem que eu gostava de deixar cá.

E quanto aos convidados que partilham contigo o microfone? Isto foi tudo muito escolhido a dedo, não foi?

Houve um propósito, que era o de não ter participações só “porque sim”. Foi olhar a caminhada, ver quem comunga da mesma viagem e agregar. Foi “vamos aumentar a nossa esfera de comunicação e acção e tornar mais próxima esta ponte transatlântica.” Do outro lado do oceano trouxe a Lido Pimienta, que é uma artista e activista colombiana a residir no Canadá. Teve uma prestação incrível na “Utopia”, que teve um beat do Nami. Esta ponte ligou L.A. ao Canadá, à Colômbia, a Cabo Verde e a Portugal. É um tema que fala na utopia de uma nação crioula livre. Uma nação em que não existe homofobia ou misoginia e onde possamos ser todos igualmente diferentes. Há uma intenção real para que esse mundo cresça. Nessa canção tenho até um choro do Lucas, ali num detalhe. Ele chorou ali numa determinada parte. A malta a pensar “ele estragou o som”. E eu, “estragou o quê?! Ele abençoou o take!” Mas a Lido Pimienta foi incrível. Ela estava a meio da preparação de uma tour gigante, que ainda continua, mas gravou logo a ideia, “vejam o que é que acham”. A demo que ela gravou era brutal. Eu disse, “por mim, podia ficar já esta ideia.” Mas não. Ela gravou melhor e enviou. Depois, o Rincon Sapiência, que traz aquela narrativa afro-futurista de São Paulo, olhando para um Brasil que é o país do mundo com mais descendentes de africanos fora de África, embora viva de costas voltadas para a sua história. Continua com um branqueamento da sua história. Existe uma racialização. Essas pessoas estão entregues a valas infinitas de silenciamento. Foi importante trazer essa narrativa orgulhosa do Rincon Sapiência.

De Portugal, tive a participação do Slow J, que é alguém que eu admiro de verdade, quanto à forma como ele vive a arte. É uma pessoa que não são os concertos que o nutrem. É a criação e todo esse processo. A criação do beat e da mensagem. É uma pessoa que está sempre à frente do seu tempo, sempre à procura, incansável. É viciado na busca de novos sons e escreve com a alma. Fazia todo o sentido para mim tê-lo. Por ser fã da forma como ele sente e vive a vida e por perceber que ele não é refém da indústria. Ele percebeu que nós não podemos continuar a ser pedintes e a viver da cultura só com subsídios. A temer os grandes promotores de espectáculos. Não. Nós temos de criar a nossa própria indústria e o nosso próprio legado. E ainda tenho a Nayela, que é uma feminista africana muito forte. Ela em breve vai apresentar-se a solo, finalmente, e vai trazer muita força. Ela cresceu na Bélgica, filha de pais angolanos, e expressa-se entre o francês e o português com sotaque mangolé. Tem vindo a trilhar o seu caminho e o seu posicionamento. E ainda entra minha avó, que foi quem me baptizou de Dino D’Santiago. Este quadro não podia ter sido mais perfeito. E o Branko! Que já é o meu comparsa de várias jornadas e, juntos, fizemos sempre autênticos hinos. Este novo, “Lokura”, é um desconfinamento global. Dá sempre gosto ir para o estúdio com o Branko.

Ele também te visitou durante a tal residência de quatro semanas?

Não, não. Esse foi o único tema que foi feito fora da residência. Eu já tinha a canção, comecei-a com o Nosa, em Londres, e depois o Branko trouxe-lhe uma nova roupagem para entrar neste disco.



Com uma selecção tão meticulosa ao nível dos colaboradores para este disco, todos eles com uma forte componente activista, arriscaria dizer que o Chullage também teve algum envolvimento nisso tudo.

O Chullage envolveu-se de forma indirecta. Ele é uma pessoa com quem eu falo muito.

Falar de afro-futurismo em Portugal tem de ter o nome do Chullage lá pelo meio.

Ele está a fazer um trabalho inacreditável. Ele foi um dos primeiros activistas musicais a trazer essa narrativa de “pretugal”. É uma narrativa difícil. Em toda a sua discografia. E ele tem formação académica, para trabalhar a sociologia, para trabalhar nos bairros, fazer sensibilização. Ele criou recentemente um estúdio no bairro da Bela Vista. É um estúdio comunitário, mas em vez de ser aquela coisa “para safar”, não, é um estúdio de grande dimensão, com salas de captação, régie, salas de formação… É inacreditável. O projecto está incrível. Ele disse mesmo, “querem que eu venha para aqui? Então, vão dar a dignidade a qualquer artista que entre aqui, de qualquer género, de se sentir realmente num espaço para cultura. Temos muitos diálogos. Eu entrei no novo disco dele, que ainda não saiu, no Fidju Maria. Somos ambos filhos de Marias a trazer o nosso som para este tempo.

E explica-me: que visão tens tu em relação ao afro-futurismo?

Eu estou sempre atento aos movimentos artísticos desde a Idade Média. Claro que o clássico também me inspirou. Mas esta era moderna é uma era que me fascina pelas possibilidades todas que temos. E a minha crença nesta nação crioula permite que eu possa beber de outras raízes sem sentir que estou a apropriar-me delas. Então, quando olho para o que é África e para aquilo que era a visão do Fela Kuti… porque ele já tinha essa visão, só não lhe deram foi as ferramentas. Olho para a Coreia do Sul e para a forma como eles se conseguiram reinventar e serem vanguardistas de uma estética, que agora o mundo replica… Eu sei que África tem esse potencial. E há muita gente a construir fora de África, descendentes de africanos, a construir cenas incríveis, tecnológicas e com ar muito futurista e a serem replicadas agora, pelos norte-americanos. Como exemplo tens o Blitz the Ambassador e o Emmanuel Adjei, que são dois produtores/realizadores que trabalharam recentemente com a Beyoncé no Black is King e com a FKA twigs. Eles trouxeram essa estética afro-futurista, sem receio dessas cores que são vivas, a utilizar a cena dos neóns, o contraste com a pele negra e o orgulho de não ter medo dela ser escura. E quando eu falo em afro-futurismo, falo de um olhar vanguardista e que diz respeito a novas metrópoles que podem nascer no continente africano. Grande parte dos beats que tu sentes com o afro-house ou com o kuduro são cenas vanguardistas. Essas pessoas na Europa, com mais oportunidades… Tu perceberias a potência. Eu só quero que a nossa diáspora perceba que a riqueza que estão a traduzir dentro dos países para onde foram viver é muito importante.

E mesmo aqueles que vivem em África, o caminho para chegarem a outros mercados está a encurtar cada vez mais. E eles próprios a pensar cada vez mais globalmente.

Eu tive um reflexo disso. As pessoas e os jovens que lá estão olharam para o meu percurso como um exemplo. “Nós afinal podemos ganhar um prémio da GQ? Podes ser considerado um dos africanos mais influentes do mundo? Vencer prémios num país que não fala crioulo? Se honrares as tuas raízes e sem teres medo do beat?” Olha, aconteceu-me uma cena nos Globos de Ouro, em que uma das canções nomeadas foi a “Kriolu”, que é um funaná electrónico. Eu sei a importância que tem aquele beat estar nomeado numa gala como a dos Globos de Ouro. Eles queriam que eu fosse fazer uma versão da canção num medley, quando eu sinto que não o podia fazer. Estragava a identidade. Estragava a estética. Mesmo que reproduzida por aqueles músicos brilhantes. Que legado é que eu deixava para o puto que está em Luanda ou em Bissau, se eles me vissem a despir o beat daquele funaná que tocou no mundo inteiro e nos fez ter uma platina? Só para poder estar nos Globos de Ouro? Não podia. Fui criticado e foi duro. Mas sinto-me bem por não ter violado esses princípios. Isto é para tu veres que ainda há muita resistência. Por haver resistência, eu não posso desistir de levar o nosso som como ele é. Para que esses putos não tenham medo do seu som.

Deram-me a dica para te perguntar sobre o Berlok, que produz o “Pé Ratxadu”, porque parece que há por aí uma história assim mais curiosa. Queres falar-me da tua ligação a ele?

Ó, mano. A cena com o Berlok é incrível. No início de 2019, ele envia-me umas cenas. “Dino, sou fã do teu trabalho, estou a acompanhar o que tu estás a fazer com os sons da terra e a dar-lhes uma contemporaneidade. Ouve isto”. Era um álbum que ele tinha feito, chamado Trap Terra Terra, que consistia em usar samples de música tradicional de Cabo Verde e introduzir-lhes o trap. Eu ouvi aquilo e senti o que ele queria. Partilhei com ele a minha jornada. “Aquilo que tu podes fazer para te tornares realmente distinto dos americanos é pegares nos nossos ritmos e melodias, conhecê-los bem — do batuque ao funaná; da morna à tabanka — e reproduzir esses sons. Chama músicos para tocar, em vez de usares samples. Depois metes os kicks, os snares e os hi-hats que tu utilizas no trap. Usa essa sonoridade para vestir os nossos ritmos, e não vestir os ritmos americanos da nossa essência musical. É aí que está a riqueza. É o tu acrescentares uma camada qualquer que eles não conseguem nos Estados Unidos. Se tu mostras isso a um americano, ele vai sentir, porque se identifica com a estética do trap, mas ia perceber que havia ali um outro flavour“. Então, ele abraçou a cena, só que como trabalhava numa fábrica, só fazia beats à noite. E aquilo estava a incomodar-me. Imagina, ele fez o beat do “Pé Ratxadu” e eu vejo-lhe o potencial. “Este gajo, se trabalhasse todos os dias só em música, tudo seria diferente”. Desafiei-o: “Quanto é que ganhas por mês na fábrica? Ok. Então, eu dou-te o mesmo valor para tu ficares em casa só a fazer beats durante seis meses.” Tu não tens a noção de quantos beats o gajo já fez e o que ele me envia todos os dias.

Esse “contrato” ainda está em vigor?
Está. É até ao final de Dezembro. E agora vou dar-te esta em primeira mão: vou convidar todos os rappers da diáspora cabo-verdiana mais os que estão em Cabo Verde para fazerem parte do disco dele.

Serás uma espécie de curador, então.

Vou ser o curador desse movimento. Quero mesmo que hajam mais produtores cabo-verdianos, afro-portugueses, que continuem a trazer cenas. Porque nós precisamos sempre de beats. E então, se houver assim um grande núcleo de beatmakers, o pessoal deixa de precisar de comprar beats da net. Há pessoal aí a produzir mesmo bem. E são “nossos”. Vão buscar beats ao Dotorado ou ao Nigga Fox. À Nídia… Entendes? Esse pessoal está a trazer um som que é só nosso. Não é o reflexo de mais nada nem de nenhum outro país.

Esta semana apanhei-te no É Ou Não É?, da RTP, a discutir possibilidades para um futuro melhor no nosso país. Tocaste lá num assunto — e confesso ser algo do qual eu próprio só me apercebi há relativamente pouco tempo — que muita gente que está do outro lado nem faz ideia, que é a quantidade de artistas que recorrem anualmente a apoios, como é o caso das bolsas da GDA, para poderem ter uma vida um pouco mais digna. A pandemia veio limitar a nossa economia, a nossa situação política está tremida… Como é que olhas para a sustentabilidade da arte do nosso país nos tempos que se avizinham?

O mundo está a meio gás mas, ao mesmo tempo, há países que estão no auge da sua criação de conteúdos. É um mundo digital e de conteúdos. E vês plataformas como a Netflix ou a HBO a explodir. Ou seja, há mercado. Havendo mercado e se nós é que somos os que criam arte… Nós continuamos a ser reféns dos agentes que nos vendem, dos managers que nos representam e que, por vezes, são mais artistas que nós próprios. Dos grandes produtores deste país, que continuam a ser os mesmos e têm o seu monopólio. Das rádios e das televisões. E continuas a mendigar por um lugar de fala, quando esse lugar de fala nunca existirá se tu tirares da equação os criadores. Há toda uma industria que se move graças a nós e nós ainda temos de pedir licença para entrar nos sítios. A grande volta que nós temos de dar é tornarmo-nos empreendedores da nossa arte e percebermos que o valor está em nós. É percebermos que se não passam a nossa música ou não nos deixam fazer peças naquele teatro, vamos nós criar o nosso núcleo, sólido, os nosso próprios circuitos. Temos de ser auto-suficientes e não uns mendigos. Foi isso que fizeram os artistas latinos, os artistas norte-americanos, os artistas francófonos… Eles criaram os seus próprios circuitos, tão sólidos e unidos. Nós, aqui, continuamos a achar que o músicos que está à nossa frente é nosso rival. “Não. Ele é meu colega de profissão”. Enquanto não nos virmos como colegas de profissão, cada um vai andar a tentar construir o seu castelo. Andas nesse Game of Thrones e a cultura não vai ganhar com isso.

E quanto à arte em si? Como futuro vês para a música portuguesa?

Vejo um futuro cada vez mais expressado na língua portuguesa. Sinto que isso cresceu mas que pode sufocar nesta bolha, de nós ainda pensarmos mais em música de Portugal e não em música expressada em língua portuguesa. A única forma de nós conseguirmos sobreviver é fazer o que os espanhóis fizeram. Há um tratado, quase. Qualquer artista visita todos aqueles países. Nós continuamos com o Brasil a trazer os seus artistas para este lado do oceano mas o sentido inverso não acontece. Para nós sermos apetitosos para o Brasil, temos de juntar à equação de Portugal a música de Moçambique, Cabo Verde, Angola, São Tomé, Guiné… É criar um mercado justo, sincero, viável. Criar pontes e estreitar todas as restrições de vistos nos países que comunicam em língua portuguesa. Esqueçam essa merda dos vistos. ‘Bora lá criar o que a CPLP tentou. Fazemos isso com arte e a arte consegue furar muito mais rapidamente. Temos de ter essas empresas a trabalhar directamente connosco, em parceria. Porque o conteúdo artístico é muito valioso. A indústria da música ou do cinema são indústrias milionárias. So que quem está por trás desses milhões não é um artista.

Gostava de falar também sobre a tua experiência no A COLORS SHOW, até porque foste um pioneiro entre os artistas portugueses. Ajudaste, de certa forma, a estabelecer a ponte entre essa malta? Ou não existiu muito esse diálogo com a produção deles?

O processo foi bué bonito. Eles tentaram levar-me umas cinco vezes, só que não estávamos a encontrar o timing. Veio o pandemia e já todos pudemos parar [risos]. Fui, então, a Londres e deixei-lhes o “Brava” e o “Morna”. Logo na altura, eles pediram-me referências de Portugal. Lembraram-se que a Mayra Andrade já lhes tinha levado aquilo de Cabo Verde, apesar de estar a viver em Lisboa. Que o Rincon Sapiência também já tinha levado aquela cena dele. Eu levei a minha. Eles disseram, “vocês têm uma coisa que nós não estamos a encontrar nos outros países”. E estranharam como é que éramos todos afro-descendentes. Estavam espantados com o falarmos a língua portuguesa e o crioulo ao mesmo tempo. Preparei-lhes uma playlist com vários artistas portugueses que eu admiro e que tenho a certeza de que um dia os vou lá ver a todos. Alguns já lá estão, como aconteceu com a Carolina, a Gisela e a Nenny.

Queres fazer um pouco de futurologia aqui? Dá-me dois ou três desses nomes que ainda não tenham surgido para ver se acontece.

O primeiro nome que eu dei foi o do Slow J. Dei o nome da Carminho, do Valete, NGA, Chullage, o Marfox, o Richie Campbell… Uau. Ainda foram alguns.

Voltando agora aos concertos: tu já tens uma data para Abril no Coliseu e há pouco apontaste umas alterações que andas a fazer ao teu espectáculo. Queres falar-me um bocado mais sobre como vão ser os concertos em torno deste disco?

Vai haver uma componente visual mais forte. O facto de as pessoas não perceberem o crioulo faz-me sentir que há muita mensagem que passa despercebida. Vou usar esse lado visual para fazer a ligação. Há quotes das canções que eu vou ter a reflectir nos ecrãs. Há elementos do pano terra. Vou trazê-los de forma mais futurista, em 3D. O chão em espelho de água, em que eu canto e estou reflectido naquele chão. Um bom jogo de luzes. Será mais um espectáculo audiovisual do que propriamente só um concerto tradicional. Mas esse concerto do Coliseu vai ser uma cena diferente. Vai ser uma viagem pela minha história, para fechar esta trilogia de discos.

Achei que esse era o concerto de apresentação do BADIU. Achas que ainda acontece antes disso?

Tenho a certeza de que vai acontecer, até porque eu quero muito ver as pessoas a reagirem ao disco. Mas não vou apressar nada. Vamos fazer o que vier e vamos honrar o destino. Vamos maturar a nossa estética, para que, quando formos, já não vamos limitados. Ainda vai sair a série Acoustic Home, da HBO, em que eu e o Plutóio representamos Portugal. É um programa de música acústica. Junta música e narrativa. No meu caso, vou falar da Lisboa africana. Vou lá ter o Branko, a Cláudia Semedo, a Cristina Roldão… Eles vão estar a falar da minha viagem na óptica deles. Foi curioso perceber que os Espanhóis chegam a Portugal e as duas pessoas em quem eles pegam são afro-descendentes. É curioso eles olharem-nos como portugueses, porque muitas das vezes a nossa música entra mas os nossos corpos não. É a vida a dar-nos lições. É uma Madonna a chegar e a levar as batucadeiras e os sons que ela sentiu dos afro-descendentes portugueses, e ao mesmo tempo leva também a guitarra portuguesa.

Para terminar: já tens ideia de quais são os teus próximos passos? Fazendo as contas, sobrou-te muita música dessa residência artística.

Há canções que dei. Uma delas dei à Lura. Vai ser o próximo single dela. Já a tocámos no Coliseu e o pessoal ficou maluco. Houve tentativas de Shazam frustradas [risos]. Foi bonito ver isso. Eu quero que aquelas canções ganhem a vida certa. Mas há outras que já me fizeram ver um outro caminho. Essas vou guardar para mim. Há ali canções que estão mais à frente. Estas aqui são as que contam a história verdadeira da jornada do Badiu. Eu tive de respeitar a história. Nas faixas que ficaram de fora já estão outras histórias.


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