Pontos-de-Vista

Rodrigo Brandão

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Nação nerd do hip hop.

De La Soul Is Dead ou The Dave Age

“I love, I love the dove
I love, I love the dove
I love, I love the dove
I love, I love the dove”


Daria um filme: em pleno sábado à tarde, solzão comendo como se fosse verão. Num gueto profundo, na periferia da maior metrópole da América do Sul, o refrão de “A Roller Skate Jam Named Saturdays” explode no p.a. ao ar livre. O público, majoritariamente jovem e preto, canta e dança de mãos pro alto. É a primeira de várias vezes que o legendário trio De La Soul pisa num palco brasileiro. 

Foi um daqueles momentos que se cristalizam na memória de quem viveu. A essa altura, o grupo já contava com uma década de belos serviços prestados ao hip hop, sim, mas além: à música atemporal, à cultura urbana e mesmo à moda. Dez anos antes, haviam ganhado o mundo ao invadir a sisuda cena do rap de então com uma alegre explosão colorida, de tons psicodélicos nunca dantes imaginados, tanto sonora quanto visualmente. 

Obra temática que se desenrola sob o pano de um talk show, 3 Feet High And Rising fez história em inúmeros níveis, e chegou a ter até mesmo um momento no mainstream, puxado pelo hino da festa pessoal “Me, Myself & I”. Estratégico, o clipe ampliava o conceito que a canção e a capa gritavam, ao encenar um confronto estético entre o passado, identificado em abrigos Adidas, tênis Puma com fatlaces e chapéus Kangol, típicos dos b-boys originais, e o futuro, representado pelo De La, estampado no visual afrocentrista multicor dos integrantes.

Além disso, ali eles levantaram a primeira bandeira Lado B na Lua do estilo, cujo histórico de auto-indulgência já era opressivo aos mais sensíveis naquele longínquo ano de 1989. Inicialmente, os geeks do grupo sofrem bullying pesado dos colegas de classe, todos trajados à moda do Bronx dos 70’s. Mas no fim quem se dá bem, e tira as melhores notas, são os novos donos do pedaço. Era a revanche dos nerds ao vivo e a (muitas) cores. Malandragem, representatividade pouca é bobagem! Vai por mim: tudo quanté quatro olho mundo afora se identificou com aquilo instantaneamente. Eu sei porque sou um deles… e nem entendia uma palavra sequer de inglês na altura!

Depois disso, o hip hop nunca mais seria o mesmo. Viraram linha de frente de um coletivo tão efêmero quanto fundamental. Os Native Tongues eram formados também por A Tribe Called Quest, Jungle Brothers, Queen Latifah, Monie Love, Black Sheep e Chi Ali. Entra o rap designado “positivo”. Podemos afirmar sem medo que são os pais e mães de Mos Def, Talib Kweli, The Roots, Slum Village, OutkastErykah Badu, Busta Rhymes, Hieroglyphics, Pharcyde, Freestyle Fellowship, Georgia Anne Muldrow, Madlib e muito mais. Sem os Soul, nenhum desses milagres seria possível.

A maioria da humanidade, ao se ver em tão confortável posição, faria fincar raiz e buscar se manter no topo, o que é compreensível, depois do enorme esforço até lá estar. No entanto, nessa hora, o que fazem nossos heróis? O extremo oposto. Cometem, em 1991, o mais belo ato de auto sabotagem já ouvido em vinil: De La Soul Is Dead.

A capa minimalista, com pouca cor, estampa só o título e um buquê de flores mortas, encerrando a “D.A.I.S.Y. Age” em corte seco. O visual de Posdnuos, DJ Maseo e Trugoy The Dove, agora bem casual, confirma que estamos diante de um animal diferente. Bem menos popular, inevitavelmente, o álbum teve sim seu sucesso, e segue intacto ao teste do tempo. Olhando agora, é fácil perceber que foi sagaz a opção por seguir junto aos seus. Em De La Soul Is Dead, a música mira o movimento hip hop, ao invés de procurar o pop.

Dois anos depois, voltam com uma imagem que, de tão desencanada, ganha nuances de manifesto. No clipe do primeiro singleBreakadawn”, aparecem trajando t-shirt, bermuda e chinelo. A mensagem era evidente: a arte é forte o suficiente pra se fazer valer mesmo sem apelo visual. E olhaí a nação nerd gritando ‘gol’ mais uma vez! 

De fato, a riqueza chega pelos ouvidos: Buhloone Mindstate, que veio à vida no auge daquilo que chamamos de Golden Era, contém o material mais lisérgico e sublime da sua discografia. É a famosa “pérola aos poucos”. Sempre à sombra do primogênito 3 Feet, é o favorito do Chris Rock, do DJ (e dono da editora Fool’s Gold) A-Track, meu e de muita gente.



Pra se ter uma ideia do grau de autoconfiança tranquila que emanavam nessa altura, Trugoy deixou até de ser Dove, passou a assinar só Dave. E quem faz um dos poucos feats do disco não é nenhum nome maior no mercado, mas um monstro musical: Maceo Parker, saxofonista e bandleader de James Brown nos primeiros anos áureos do Padrinho. Esse auge criativo marca também o capítulo final da parceria do DLS com o genial DJ e produtor Prince Paul, a quem amo como a um irmão. Apreço pessoal à parte, trata-se de uma unanimidade. A trilogia clássica composta pelos quatro segue imbatível. 

Depois disso vieram algumas maravilhas que chegam junto, como os álbuns Stakes Is High (1996), com destaque pra produção de J Dilla na track-título e o apadrinhamento do jovem Yasiin Bey em “Big Brother Beat”; e The Grind Date (2004), com a assassina “Rock Co.Kane Flow”, parceria com o saudoso vilão mascarado e conterrâneo de Long Island MF DOOM, que é, sem dúvida, um dos melhores raps lançados no século XXI, a ponto de eclipsar até colaborações cabulosas com Common e Ghostface Killah.

E mesmo os mais irregulares discos da trilogia inacabada Art Official Intelligence tem suas pepitas, como “All Good” (com a funky diva Chaka Khan), “Oooh” (com Redman), “Squat!” (com Beastie Boys) e “Copa (Cabanga)”, em Mosaic Thump (2000); ou “Baby Phat” (com Devin The Dude e Yummi Bingham), e “Peer Pressure” (com B-Real e Jay Dee aka J Dilla), em Bionix (2001). Sem falar na produtiva parceria com os Gorillaz de Damon Albarn, que além de musicalmente fluída e formosa, apresentou os Plugs 1 (Pos), 2 (Dave) e 3 (Mase) para toda uma malta até então intocada pela magia dos três.

Importante parar pra mencionar aqui suas poderosas performances de palco. Devo ter testemunhado uma dezena delas, e o nível nunca foi menos que incrível. A energia lá no alto, fazendo muito com muito pouco, nada mais que microfones e toca-discos, mantendo sempre acesa a tocha dos melhores MCs da gênese do gênero. Mestres de cerimônia, em toda sua excelência.

Incontornável comentar também as mazelas deles com a burocracia do business, inimiga mortal da inspiração que fez a fama do De La. Em uma skit do disco de estreia, 12 segundos não licenciados da música “You Showed Me”, da banda de rock inglesa sessentista The Turtles, geraram um processo judicial por uso indevido de propriedade intelectual que custou uma soma substancial. Mais que isso, o imbróglio abriu o precedente que complicou e capitalizou o uso de samples, parte essencial do processo de um compositor de rap, e a alma que emana de suas máquinas, a ponto de acabar por aniliquilar a estética de obras conceituais como o próprio 3 Feet High And Rising em questão, ou It Takes A Nation Of Millions To Hold Us Back, do Public Enemy, que trituraram mil trechos de outras tracks pra conjurar sua catiça. 

Como se não bastasse, o catálogo do grupo enfrentou a mais longa via crucis que se tem notícia até alcançar as plataformas digitais. A culpa de tamanho pecado recai sobre a Tommy Boy Records, gravadora do DLS até meados dos anos 2000. Depois de décadas de descuido com os sample clearances, que travaram tanto essa transição, a editora demonstrou uma ganância descomunal ao querer dividir os eventuais royalties de streaming de forma que retivessem 90%, e repassassem os restantes míseros 10% aos artistas. 

Derramando razão, o De La Soul botou a boca no trombone, angariou apoio de personas poderosas, de Nas a Jay-Z, passando por Pete Rock, Q-Tip e Questlove, numa bem sucedida manobra para só subir o catálogo quando houver um acordo aceitável para seus criadores, que foram pouco ou nada recompensados durante toda essa Era Do Gelo. 

Quando finalmente tal entendimento emergiu, os Soul entraram em estúdio pra repaginar os problemáticos samples, num processo que enfim os levou de volta ao laboratório do parceiro Prince Paul, e do engenheiro de áudio original Scotty Hard. A campanha culminaria em merecido sabor de “quem ri por último, ri melhor” no próximo dia 03/03, quando a discografia enfim estará disponível à geração milenial. 

Por essas e outras é que tanto pesa a partida do plug do meio, no domingo passado. Um par não pode ser trio… e três, a gente aprendeu com eles, é o número mágico.


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