Preciso ser sincero em dizer que demorei um bom tempo para apreciar a obra do De La Soul. Por estar acostumado com um tipo mais agressivo, contundente e político, a forma descontraída com que faziam rap não me agradava. Isso não quer dizer que fugiam do embate. Pelo contrário, falavam de todos esses assuntos com leveza. Kelvin “Posdnuos” Mercer, Vincent Lamont “Maseo” Mason Jr. e Dave “Trugoy the Dove” Jolicoeur, que faleceu em 2023, estavam na vanguarda. Conseguiam transitar entre underground e mainstream sem perder a essência. É por isso também que permanecem juntos por quase 40 anos. Esse tipo de resiliência poucos grupos têm. Manter a relevância então nem se fala. Inclusive, as gerações mais novas só tiveram acesso oficialmente aos quatro primeiros disco do trio em 2023 quando 3 Feet High and Rising, De La Soul Is Dead, Buhloone Mindstate, AOI: Mosaic Thump e AOI: Bionix chegaram ao streaming depois de anos e anos de batalhas judiciais.
Mesmo caminhando pela margem, o De La Soul esteve presente no filme Spiderman: No Way Home (2021), tendo a música “(3 Is) The Magic Number” apresentada durante os créditos finais. E em 2017 foi indicado ao Grammy na categoria de Melhor Álbum de Rap em 2017 com And the Anonymous Nobody…, que ganhou vida após arrecadar 600 mil dólares numa campanha de crowdfunding no Kickstarter. Saindo totalmente do convencional, algo esperado da parte deles, eles uniram o rap ao rock, com pitadas de funk e gospel, criando uma estética distinta do que se estava fazendo no rap naquele momento. Eles meio que sempre vão no contra-fluxo.
Isso acontece novamente em Cabin In The Sky, o seu décimo álbum e o primeiro sem Dave presente — pelo menos no mundo físico. Já na abertura o ator Giancarlo Esposito interpreta uma espécie de mestre de cerimônias, ou talvez represente um interlocutor de “Deus”, que diz que a ajudará a todos entenderem as “percepções da vida e do além”. Esse é o fio que conduz mais de uma hora de viagem.
Convenhamos que para os padrões atuais, o formato não cabe. Está fora. E dificilmente você o ouvirá pela metade. O tema central não é tão palatável. É quase que uma sessão de terapia em grupo para lidar com a perda de Dave. A intenção é tratar a questão sem fingir que não existiu. Sem colocar um peso nas costas, eles tratam o luto de um jeito leve. Talvez até para fazer um ritual de saída dele. Na chamada oral, quase como se fosse de uma escola, Esposito confirma a presença de todos os participantes, de cantores e MCs até aos produtores. Todos respondem à sua maneira. Ao final, chama por Dave algumas vezes. Isso dá a impressão que ele chegará a qualquer momento, como aquele aluno que perdeu o ônibus a caminho da escola. Mas não. Na verdade, ele até chega, porém, não como todos gostariam. Surge de outro espectro. Participa em 5 das 20 faixas. A introdução de “EN EFF” reflete essa aura, principalmente no verso: “Huh, ‘Funny’, an adjective, providing fun, causing amusement or laughter / Or warranting suspicion like you motherfuckers / Don’t make me laugh, niggas funny.” “YUHDONTSTOP”, “Sunny Storms”, “Good Health” e “The Package” são outras que têm a presença dele. Assim, nas demais, Pos fica responsável por todo o direcionamento lírico. “Sunny Storms”, assinada pelo DJ Premier, carrega essa dor que ainda incomoda. Mas o MC acredita que isso é necessário para o seu fortalecimento. Dá uma injeção de ânimo naqueles dias mais sombrios — “No need to grieve for the death of the old you, that ushers in change / Give birth to better versions for you to claim” [Não precisa lamentar a morte do seu antigo eu, que anuncia a mudança / Dê à luz versões melhores para você reivindicar].
O mais interessante do conceito do De La Soul é que a luz do sol aparece até nos sons que tendem a ser sombrios e mais carregados. Tem uma jovialidade, mesmo trazendo referências dos anos ’90. Não é algo que considero ser nostálgico. Está na personalidade de alguns OGs. E muitos deles marcam presença, de Q-Tip a Common, amigos do coletivo Native Tongues, mas também Nas, Pete Rock, Black Thought, Killer Mike, Slick Rick e o já citado DJ Premier. Cada um ajuda Pos a não seguir sozinho. Não no sentido de fazerem o papel de Dave. Mas de dar suporte a um amigo enlutado que precisa de um apoio.
Podemos considerar que Cabin In The Sky é um curativo para feridas expostas. Também de agradecimento, aceitação, honra e ode por um irmão que se foi e jamais será esquecido. Não se pode fazer comparações desse com os projetos anteriores do De La Soul, porque neste existe a falta de um elemento primordial. Mesmo assim, eles honraram o amigo. Não deixaram que a perda os fizesse parar. Provavelmente não era um desejo de Dave. Por isso fizeram sem ter pretensões. Apenas verdades. É sincero. Realista. E transmite um certo otimismo que está cada vez mais escasso. Tem mensagem, poesia e ritmo. É o rap puro que tanto os conservadores da cultura pediam que retornasse. Porém, sempre esteve ali encoberto pela lona do mainstream. É possível que ainda o álbum tenha passado despercebido por muitos ouvidos. Para assimilá-lo existe a necessidade de ouví-lo. Leva tempo. Não é rápido. Apesar do choro, Pos e Maseo (e Dave) conseguiram fazer uma obra irrepreensível. Está longe de ser a melhor que já fizeram. No entanto, tem uma beleza que nenhum outro tem. Basta observá-lo com atenção.