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Fotografia: Andrew White
Publicado a: 08/03/2019

Em celebração do Dia Internacional da Mulher, o Rimas e Batidas criou uma playlist composta por músicas do agora e do outrora, com o objectivo de salientar todo o esforço e dedicação que várias artistas ofereceram ao movimento feminista.

De Beyoncé a Mynda’Guevara: uma playlist dedicada a mulheres que disseram “chega”

Fotografia: Andrew White
Publicado a: 08/03/2019

Em 1929, Virgina Woolf, num dos seus vários ensaios que mais tarde resultaram no livro A Room of One’s Own, disse que uma mulher precisava essencialmente de um quarto para escrever ficção; que uma mulher poderia ter escrito facilmente uma epopeia que chegasse às luzes de Dante, Edmund Spenser, Camões ou Byron. Mas nunca aconteceu. A história é repleta de momentos de subjugações, e as mulheres, durante séculos, construíram-na a partir dos limiares. Shakespeare teve uma irmã que morreu cedo e cuja antologia nunca saiu dos papéis dos seus cadernos – aliás, o paradeiro de tais textos permanece incógnito e inalcançável. A sua morte representa também a morte do trabalho de milhares de mulheres que tiveram um destino semelhante: renegado, refreado, tido em baixa conta por uma sociedade que as restringiu a graus secundários e submissos. Woolf afirmou também que, durante séculos, a mulher desempenhava primordialmente um papel de amplificar o ego masculino, e para contrariar tal noção, bastava a interiorização de uma única palavra: “chega”: “A mulher tem-se ficado dentro de casa durante milhões de anos, e por esta altura as paredes devem estar repletas da sua força criativa, que tem sobrecarregado a capacidade de que ela precisa para se aproveitar de canetas, pincéis; de negócios, da política”.

A verdade é que tem havido ao longo dos anos uma luta, cada vez mais incomensurável, a relatar a frustração da mulher ao exigir uma maior igualdade em termos sociais, políticos e económicos. Quando se utilizou pela primeira vez a palavra “feminismo”, as suas origens estavam ligadas ao socialismo francês, em pleno século XIX, e tinham consigo uma bagagem contestatária e progressista. Desde então, o termo ganhou conotações, significados e ideologias diferentes, proliferando-se, numa primeira fase, pela Academia, e, mais tarde, por volta dos anos 60 e 70, pelos vários movimentos artísticos. A música acompanhou evidentemente este processo e aliou-se à mentalidade feminista. A Queima dos Sutiãs ou o movimento “Riot Grrrl” foram das etapas mais famosas, mas o processo é activo e encontra-se numa constante construção e evolução.

A ideia do feminismo contemporâneo é proporcionar soluções pragmáticas aos problemas que fomentam desigualdades sociais, dando voz e confiança a mulheres – independentemente da sua orientação sexual, etnia, religião, nacionalidade, etc. – para que não se sintam sozinhas. O objectivo é usar a arte como fio condutor para partilhar experiências de assédio, abuso e discriminação a uma audiência mais ampla. Ilustrações, músicas, pinturas, e livros: todos têm na sua génese uma pequena manifestação que espalha, ao mesmo tempo, uma grande mensagem. É fácil olharmos para a mão-de-obra de artistas como Yoko Ono, Frida Kahlo, Georgia O’Keefe, Aretha Franklin, Audre Lorde, entre muitas outras, e perceber que, apesar das diversas áreas de influência e da distância temporal, existe um diálogo comum: uma conversa que exige uma urgente mudança na expectativa do público – uma mudança que vai para além das tarefas domésticas, das disparidades salariais, da opressão patriarcal diária e geral. É necessário o apelo a um revivalismo social e organizacional, e a arte é um motor perfeito para tal. Desde os primeiros trabalhos de Judy Chicago às Guerrilla Girls; dos ensinamentos Simone de Beauvoir às palavras proféticas de Marsha P. Johnson: todas estas mulheres mostraram-nos que o feminismo não é uma palavra feia, mas uma designação em que todos podemos livremente participar.

Em celebração do Dia Internacional da Mulher, o Rimas e Batidas criou uma playlist composta por músicas do agora e do outrora, com o objectivo de salientar todo o esforço e dedicação que várias artistas ofereceram ao movimento. Claro que não se deve cingir somente pelas escolhas editoriais desta publicação: o movimento é inclusivo e todos os dias nascem novas canções dignas de serem ouvidas sobre este mesmo tema. Todas elas partilham uma sensação de raiva, tristeza e cansaço; mas acima disso, há um grande sentimento de superação, resiliência e irmandade: tudo isto num universo que ainda hoje descredibiliza e menospreza a luta de cada mulher.


[Sophie Tucker] “I Ain’t Taking Orders From No One” (1929)

Humor feminista subverte o sexismo e o patriarcado ao legitimar as preocupações e as necessidades das mulheres. Por volta dos anos 30, especialmente nos Estados Unidos, começava-se a ver os primeiros sinais de resistência feminina ao aparecerem slogans como “as mulheres devem ficar em casa…na Casa dos Representantes e no Senado”. Aproveitando esta onda, Tucker, das primeiras vozes feministas do romper do século XX, lançou “I Ain’t Taking Orders From No One”, uma valente e dura crítica a um sistema que estava longe de sofrer alguma mudança. A música é doce, engraçada, subtil e feita maioritariamente por one-liners, mas transmite uma mensagem que serviria de mantra para gerações futuras.

Letra-chave: “I do what I like/ Whenever I like/ I like what I love/ Love what I like”


[Nina Simone] “Break Down and Let It All Out” (1966)

O que tornou a voz de Nina Simone tão inconfundível e icónica foi a sua capacidade de contar histórias. E apesar de se ter focado em contar, ao início, as de outras pessoas, Nina conseguiu sempre colocar a sua interpretação em cada uma delas. Em “Break Down and Let It All Out”, tal exemplo é bem visível: a narrativa é baseada em vivências do seu próprio passado e retiradas da sua própria dor. A canção tomou uma posição para as mulheres negras, cujo sofrimento, no nexo da discriminação de raça e género, era muitas vezes invisível. Logo após o lançamento, a música não teve tanto sucesso como “Sinnerman” ou “I Put A Spell on You”. Mas destacou-se como a banda sonora para uma luta destemida e uma peça central no activismo de Nina Simone. 

Letra-chave: “My eyes are open and now I see it’s all over for you and me”


[Aretha Franklin] “Think” (1968)

Em Abril de 1968, Franklin cantou “Precious Lord” no funeral de Martin Luther King Jr.. Seis dias depois, a mesma sentou-se em frente ao seu piano e derramou toda a dor que carregara nos últimos anos na canção que, mais tarde, se tornaria em “Think”, um dos maiores hinos feministas americanos. A cantora estava numa fase turbulenta da sua vida e sofria diariamente de agressões por parte de Ted White, o marido na altura. A música tornou o pessoal em político e fez com que uma inteira geração de homens olhasse para si mesmo e para os comportamentos abusivos que tinha com as respectivas mulheres. No pleno dos anos 60, acções de sensibilização para casos de violência doméstica existiam, mas não tinham o financiamento necessário para agir devidamente. “Think” falou para as pessoas e hoje em dia continua a espalhar a sua mensagem.

Letra-chave: “It don’t take too much high IQ’s/ To see what you’re doing to me”


https://youtu.be/ZkYg4bz2qGQ

[Grace Jones] “Walking In The Rain” (1981) 

“Walking In The Rain” é mais um exemplo de reinvenção por parte de Grace Jones. As letras, tal como a imagem do álbum, são naturais, assertivas e mostram uma Jones bastante confortável com a sua pele: negra e andrógena – alguém que não assenta nos padrões estandardizados pela sociedade de “homem” e “mulher”, porque acima disso, consegue ser confiante e sensual. Nightclubbing foi um álbum marcante para a comunidade queer nos anos 80 e temas como este dão uma nova camada de pele a quem não se sente naturalmente confortável na sua. 

Letra-chave: “Feeling like a woman/ Looking like a man/ Sounding like a no-no/ Mating when I can” 


[Neneh Cherry] “Buffalo Stance” (1989) 

“Buffalo Stance” é a junção de vários mundos: batidas 808 usadas no hip hop combinadas com uma atitude pop bastante refrescante. A música foi um sucesso tremendo na altura devido principalmente ao ritmo cativante, na moda e ao mesmo tempo sem qualquer esforço na sua execução. Neneh era vista como uma possível sucessora ao trono de Madonna, mas essa não era a sua intenção: em vez disso, preferia falava sobre emancipação feminina num formato nada autoritário e que coubesse nas playlists dos DJs na altura. O resultado foi conseguido, e quase três décadas depois, Neneh continua a lançar trabalhos com mensagens suficientemente boas para serem ouvidas por quem quer dançar ou simplesmente reflectir sobre o mundo actual. 

Letra-chave: “When you lost your babe, you lost the race/ Now you’re looking at me to take her place”


[En Vogue] “My Lovin’ (You’re Never Gonna Get It)” (1992)

En Vogue ficaram conhecidas como das melhores girl-groups de sempre com o lançamento de Funky Divas, aliando nitidamente as bordas entre hip hop e r&b. “Free Your Mind”, “Give It Up” e “Turn It Loose” foram grandes hits que iam buscar influências aos antigos grupos de Motown, mas que ao mesmo tempo mantinham uma postura bastante moderna. Foi em “My Lovin’” que o grupo mostrou que tinha mais no seu reportório para além de músicas cálidas e ritmadas: a música é um apelo ao amor-próprio e à auto-preservação, dois aspectos mais importantes do que a tentativa de qualquer homem ao tentar nega-los. 

Letra-chave: “Maybe next time you’ll give your woman a little respect/ So you won’t be hearing her say, No way”


[Erykah Badu] “Penitentiary Philosophy” (2000) 

“Penitenriary Philosophy” tem um pouco de Sly & The Family Stone, um pouco de Maggot Brain, mas é 100% Erykah Badu. Enquanto em Baduizm as letras eram maioritariamente enigmáticas e idiossincráticas, em Mama’s Gun, as músicas vão directas ao assunto: para alguém que sofreu de racismo e de discriminação não só na indústria musical, como na vida pessoal, Badu afirma-se como uma mulher orgulhosamente negra e exprime tal sentimento ao longo da canção. É uma tour-de-force de seis minutos que explode no exacto momento em que ela exprime a sua raiva e acalma quando já disse tudo o que tinha a dizer. É pragmática na sua execução, e profética na sua mensagem: fala-se de uma união, não de mulheres ou de homens em específico, mas de seres humanos enquanto um único ser. 

Letra-chave: “Gather all of your members/ Unite them as one/ Move together in harmony/ Build a bridge”


[Capicua] “Alfazema” (2008)

Todos os problemas que mencionámos ao longo desta lista são universais e facilmente compreendidos por mulheres das diversas faixas etárias. Capicua é uma delas e em “Alfazema” fala sobre as expectativas que a sociedade desenha para a mulher portuguesa e desafia-a a repensar nelas mais uma vez. Esta pungente manifestação é uma de muitas presentes em Sereia Louca, um trabalho vindo do hip hop português que se destaca num género musical ainda hoje dominado por homens. Capicua sabe que está em desvantagem no que diz respeito a números, mas usa-os para apelar a uma audiência com que os outros rappers ainda não estão muito preocupados em chegar lá. 

Letra-chave: “Com tradições nascem contradições opressivas/ Como lições pra sermos fracas e reprimidas/ Sem autoestima, postas de lado como um talher/ Não foi pra isso que nasci uma mulher”


[Janelle Monáe] “Cold War” (2010)

Diz-se que uma imagem vale mais do que mil de palavras; pois, neste caso, o valor deste vídeo é inigualável. Em “Cold War”, Monáe exprime-se como nunca antes visto: plano próximo, olhar fixo para a câmara e despida – de dogmas e de roupa -, relata a dor de uma mulher queer e negra na América, que, quase 10 anos depois, ainda se assemelha muito ao que se vive hoje em dia. A cantora canta todas as partes da música menos o verso: “I was led to believe there’s something wrong with me”: momento esse em que desvia a cabeça para não chorar. É sem dúvida a parte decisiva da música, uma vez que só certas demografias compreenderão o peso das suas palavras. 

Letra-chave: “I was led to believe there’s something wrong with me”


[Beyoncé] “***Flawless” feat. Chimamanda Ngozi Adichie (2013)

Empoderamento feminino sempre foi um tema recorrente na discografia de Beyoncé, e temas como “Singla Ladies (Put A Ring On It)” e “Run The World (Girls)” são normalmente considerados fundamentais entre fãs e críticos; portanto, quando o quinto álbum de estúdio foi lançado mesmo no final de 2013, era de esperar que as canções continuassem a seguir este padrão de rejúbilo feminino. Mas foi diferente desta vez. E tudo graças à canção “***Flawless”. Aqui Beyoncé não estava a cantar sobre “Girl Power”, mas sim sobre “Feminismo”, o que ajudou progressivamente a transportar esta palavra para o mainstream. De repente, era o assunto mais mediatizado em entrevistas, revistas e discussões políticas. O termo saiu de uma ideologia radical e académica para a mente de quem ligasse a rádio. É claro que a luta não foi feita por Beyoncé sozinha – ela simplesmente inspirou-se nas mulheres que lhe abriram o caminho para que se pudesse afirmar como algo muitas vezes mal interpretado e grosseiro. Pelas palavras dela, toda a gente pode ser feminista – e toda a gente deve ser feminista. 

Letra-chave: “We flawless, ladies tell ’em/ I woke up like this/ I woke up like this”


[Elza Soares] “Maria da Vila Matilde” (2015)

Elza fala para quem tem dificuldade em ser ouvido: para as mulheres negras reprimidas, para a classe operária brasileira, para a população homossexual que é diariamente vítima de ataques. Todas estas fracções fazem parte da história do Brasil, e vêem-se nas palavras d’A Mulher do Fim do Mundo. Em “Maria da Vila Matilde”, o conto é o de uma mulher vítima de violência doméstica; não é um caso isolado e facilmente poderá representar a vida das 606 mulheres abusadas pelos maridos e namorados em 2018, no Brasil. No entanto, é também a vida de Elza: uma mulher que chegou à fama há quase 30 anos, mas que passou por abusos, discriminação, sequestro e pobreza. E hoje é vista como dos nomes mais memoráveis da música popular brasileira. Aos 88 anos, ainda lhe resta contar várias experiências e nós ouviremos cada palavra. 

Letra-chave: “Cê vai se arrepender de levantar a mão para mim” 


[Jamilia Woods] “Blk Girl Soldier” (2016)

Nítidas e impactantes como as historias que são invocadas, as letras de Woods prestam homenagem a mulheres revolucionárias, maioritariamente activistas afro-americanas, que passam pelos campos de algodão até ao movimento #BlackLivesMatter. Aqui, lamenta-se o abuso, o racismo histórico e negligência institucional (“We go missing by the hundreds/ Ain’t nobody checking on us”). Contudo, na sua formação, “Blk Girl Soldier” é optimista e energética, transformando todas as angústias e tristezas em gritos de guerra, dando uma voz a todos aqueles que lutaram e que continuam a lutar.

Letra-chave: “Look at what they did to my sisters/ They make her hate her own skin/ Treat her like a sin”


[Mynda Guevara] “Ken Ki Fla” (2018)

Mynda é uma nova e promissora voz no cenário rap crioulo: as suas letras, tal como a postura, são combativas, sem receios, sem incertezas, e sempre cheias de vida. A mensagem é igualmente contestatária e em “Ken Ki Fla”, single do EP de estreia que ainda está para sair, tenta ao máximo centrar-se no cenário machista e quebrar com as regras opressoras que minimizam a mulher ainda hoje. “Nós (mulheres) sempre estivemos em minoria no movimento hip hop, portanto sempre que uma mulher se chega à frente de forma determinada e com atitude tem sempre respect”, contou ao Rimas e Batidas. Deixar a sua marca nem sempre foi fácil, especialmente quando ainda é olhada como uma rapper feminina. Mas para Mynda, o rap não tem nada a ver com papéis de género, com o que separa um homem de uma mulher, mas sim com a mensagem que se quer transmitir. E ela tem várias. 


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