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Fotografia: Pedro Lopes
Publicado a: 06/12/2021

Um novo som para uma Almada Velha.

DarkSunn: “Nunca me senti tão em casa como me sinto em Almada. Esta cidade inspira-me muito”

Fotografia: Pedro Lopes
Publicado a: 06/12/2021

Na passada quinta-feira, dia 2 de Dezembro, a Monster Jinx lançou Almada Velha, um novo álbum assinado por DarkSunn.

Aos 40 anos de idade, a musicalidade e o espírito de iniciativa que residem na alma de Bruno Dias estão longe de se esgotarem. Em 2008, fundou uma das editoras independentes mais consistentes e duradouras no nosso país, a Monster Jinx, que tem estado em especial destaque no actual cenário de crise sanitária. Depois de soarem os primeiros alarmes, a turma roxa arregaçou as mangas e abençoou a cultura nacional com cerca de duas centenas (!) de faixas editadas desde o primeiro confinamento, como que a dar-nos uma desculpa plausível para ficarmos realmente em casa, protegidos e de ouvidos ocupados.

A constante contribuição de DarkSunn em muitos desses lançamentos — que vão desde o “meio-álbum” que cozinhou para Crooked n’ Grinded às habituais compilações ou até mesmo a projectos inovadores que nascem do calor do momento, como a Crib Season, a Monster Jinx Type Beat ou a vénia de MJ DOOM — fez como que quase nem notássemos os seis anos que passaram entre MELANGE, o penúltimo longa-duração a solo, e este novo Almada Velha.

Em conversa com o Rimas e Batidas, o produtor almadense explicou o que o levou a querer dedicar um capítulo inteiro da sua vida artística à zona que o viu crescer — e vice-versa.



Estava aqui e lembrar-me destes quase dois anos em pandemia. A Monster Jinx teve um pico de actividade mal o confinamento entrou em vigor e não pararam desde então. Vês essas edições como consequência natural do momento que vivemos ou houve aí um certo compromisso que vos fez arregaçar as mangas para não nos faltar música?

Isto foi algo que aconteceu naturalmente e em conjunto. Quando saem as primeiras notícias e se começa a prever o primeiro confinamento, nós tínhamos uma festa marcada para, se não me engano, uma sexta-feira, sendo que na segunda-feira a seguir era quando tudo ia fechar. Falámos com o Musicbox, para perceber qual iria ser a posição deles, e entretanto a festa acabou por não acontecer. E nós, como editora independente, dependemos muito das festas. Aquilo teve um impacto… Quando nós percebemos essa ideia do confinamento e que aquilo não vai durar só um mês… Vamos para confinamento e ficamos em contacto uns com os outros. Havia pessoal que, por exemplo, trabalhava em restauração e estavam a ver-se mesmo entalados ao nível financeiro. Eu sabia que conseguia ficar em teletrabalho mas também tive receios. Estávamos todos a tentar saber lidar com a saúde mental uns dos outros e a servirmos de suporte uns para os outros. Presumimos que os próximos dois anos iriam ser muito importantes, tal como hoje se vieram a revelar e — e 2022 vai ser, provavelmente, igual. Quando previmos isso, pensámos: “o pessoal está todo fechado em casa, não há festas e ninguém pode sair para se divertir. Vamos fazer uma cena: todos os dias lançamos uma faixa e dividimos o trabalho entre todos. Depois fazemos compilações semanais. Sete temas por semana”. Não fomos os únicos a fazer [algo desse género] mas assumimos mesmo aquela cena de fazer um DJ set ou live act todos os dias, às seis da tarde, no live do Instagram. “O pessoal está fechado e, pelo menos, música não há-de faltar”. Assumimos isso. Fizemos isso durante sete semanas e, portanto, nasceram daí 49 faixas. Foi essa a nossa Crib Season. Depois, a nível de merch: “Estás em casa? Então toma lá umas meias”. Siga. Foi isso. Eventualmente, o tempo que passámos em casa também pode ter puxado pela cena criativa e deu-nos tempo, não adulterado, para nos podermos dedicar a fazer música.

Grande parte deste meu álbum foi feito durante esta fase da pandemia mas eu ia fazê-lo independentemente de estarmos ou não nesta situação. Em 2020 lancei um disco a meias com o Maria, o Crooked n’ Grinded, que já vinha a ser preparado antes. Nós lançámos aquilo em plena pandemia e ainda deu para o apresentar ao vivo. Também estive envolvido numa série de projectos, tanto dentro como fora da label. Trabalhei na cena de Monster Jinx Type Beat e fazer a co-produção num universo de cinco pessoas é um sistema bué complexo. Não é algo ao qual eu estivesse habituado, porque nunca fui muito aquele gajo que faz colaborações ao nível da produção, embora já o tenha feito, como aconteceu no álbum do Sensei D.. Isso puxou muito por mim.

O resto da crew também lançou cenas. Don Pie Pie, por exemplo, lançaram um projecto algumas semanas depois [do confinamento]. Eles tinham uma tour de 12 concertos já marcada e que foi toda por água abaixo. Adaptámo-nos. O ser humano é resiliente e, por isso, vamo-nos adaptando. Foi saber jogar com o impacto da pandemia nas nossas finanças. Nós estamos a editar cada vez mais cenas físicas e discos de vinil não são propriamente uma cena barata. Se olharmos para estes dois anos… Nós fizemos das tripas coração para pôr tudo cá fora e a rolar. Ao mesmo tempo, as pessoas que já nos ouviam acompanharam tudo isso. Ouviam a música e compravam o merch, sempre a dar aquele suporte e a empurrar a cena para a frente.

Passaram seis anos desde que tinhas editado o teu álbum a solo anterior. Por outro lado, és presença assídua em praticamente todos os lançamentos da Monster Jinx e, como tal, o número de contribuições tuas no catálogo da editora aumentou também nestes últimos dois anos. Isso deixa-me a pensar: se não tivesse existido esse esforço conjunto por parte do colectivo todo, se calhar tinhas ficado com material suficiente para, por exemplo, fechares dois discos teus. Como é que fazes a gestão da tua própria música nesse aspecto?

De certa maneira, sim. Há alturas em que tu produzes muito e tens um output muito grande. Diria que, neste momento, estou com um output muito semelhante ao da altura em que tinha 20 e tal anos e fazia muita música. Mas isso também se deve a uma série de mudanças mecânicas na forma como eu abordo a minha música, nomeadamente uma concentração maior no processo e não tanto no outcome. Para este álbum até fiz uma cena diferente: eu comecei por fazer umas 50 faixas, que depois escorri até ficarem as 15 que tens no disco — ou, se quiseres, 14; porque a que tem a participação do J-K é, basicamente, uma nova roupagem que se deu à “almada”. Todo esse backlog que eu fui criando nos últimos tempos vai reflectir-se de uma forma quase directa em lançamentos que tenho em vista para 2022. Vão acontecer. Tenho várias ideias mas não quero levantar ainda muito o véu, para me poder concentrar agora neste álbum. Por isso, vão surgir mais coisas. E isso é fixe, porque me permite ter alguma flexibilidade para fazer as coisas e até colaborar com mais people, como fiz recentemente no álbum do Mura, O Álbum do Desassossego. Isso vai passar a acontecer com maior regularidade, se calhar. E isto consegue-se devido a esse tal foco no processo em vez de no outcome. Em vez de estar a pensar no que é que vai sair dali, eu estou numa fase em que só estou mesmo focado em fazer beats. Não penso tanto no que se constrói a partir dali ou se o som vai ou não bater. Isso são cenas pelas quais, de momento, tenho zero interesse. Obviamente que fico contente quando recebo mensagens do pessoal, a dizer “estou a gostar bué do álbum” ou “adoro esta faixa”. Isso é altamente e eu gosto muito. Não vou ser hipócrita. Só que, ao mesmo tempo, estou muito mais focado no fazer a melhor música que eu conseguir. Até porque acho que cheguei a um momento em que olho para trás e penso, “pelos anos que eu levo a fazer música, deveria de ter o triplo dos lançamentos que tenho cá fora”. Um gajo perde-se noutras coisas. Tenho de me concentrar no que vou tocar, tenho de me concentrar na editora… Vai-se embora a tal disponibilidade para fazer música e para pensar em projectos. Isso já está ultrapassado na minha vida e eu espero que a próxima década seja recheada de projectos.

Quando é que te apercebeste de que já tinhas feito temas suficientes para iniciares o processo de triagem, já com o todo o conceito do Almada Velha em mente?

Há uns meses… Seguramente em 2021. Eu estava focado nisso, no Crooked n’ Grinded, com o Maria. Tínhamos a primeira edição do Cursed. Era uma série de projectos que tínhamos aí e que me obrigaram também a pensar e a estar com a minha energia virada para ali. Foi uma fase em que eu parei e comecei a ver os beats que tinha, aqueles que mais curtia. Pensei, “está na altura de começar a preparar o disco”. Veio-me à ideia o eu não saber quantos mais álbuns eu tenho “em mim”. “Está na altura. Eu quero fazer a minha homenagem a Almada.” Na altura, o título era inspirado numa cena que o Ras G fazia, o Afrikan Space Program. Eu tinha a ideia de fazer o Almada Space Program. Mas achei melhor não dar aquele byte directo. Ficava demasiado colado e eu não queria fazer isso.

Eu vivi em Almada Velha durante uma série de tempo. Vivo em Almada há muitos anos mas estive a viver mesmo em Almada Velha. Foi de lá que me veio esta inspiração muito, muito grande, e as faixas começam a reflectir isso. É eu estar, por exemplo, à beira da Tasca do Cão. Lembrar-me que um determinado tipo de som é o tipo de som que eu associo mentalmente à Tasca do Cão. Mas, lá está, foi aquilo que conversámos na altura do primeiro single: eu não fui samplar cenas de Almada. Tens, por exemplo, uma faixa do Rão Kyao chamada “Almada”. Eu não samplei nada dessa faixa. Não samplei bandas de Almada. Isto é música que foi inspirada por esses locais e pelas pessoas. Uma faixa chama-se “Ladrão” e o pessoal que não é de Almada não manja que o Ladrão é um cão, que é mascote eterna aqui da cidade. Já o tentaram adoptar uma série de vezes mas não dá. Ele sai sempre e volta para a street. Pode dizer-se que é um cão comunitário, de certa maneira. Tens pessoal que se junta para meter dinheiro para pagar as vacinas ou algum tipo de tratamento ao Ladrão. Coisas desse género. Tipo “3 Shots”. Ainda hoje estava a falar disso com um amigo meu. Quando penso em “3 Shots”, penso no Manecas. E o pessoal de Almada Velha sabe que é o bar que onde íamos beber shots quando éramos miúdos. Ou seja, há referências mentais minhas. Coisas muito pessoais. A minha ligação à Tasca do Cão, por exemplo, é uma ligação muito pessoal.

Quando começo a montar o disco na cabeça, ainda foi numa altura em que eu continuava a fazer música. Essa música estava a começar a entrar no tal lote de faixas que tinha para escolher para o álbum, até que chegou uma fase em que eu disse, “acabou. Não posso pôr mais beats novos. Não importa o que é que eu vou sacar a seguir — e pode até ser um beat incrível — que já não vai entrar aqui. Entra mais para a frente”. Eu estava a produzir tanto, que tive de travar isso. Depois, todo esse processo de selecção das 50 faixas foi um trabalho muito comunitário. A minha crew ajudou-me muito nisso. Gajos como o OSEB, o Maria ou o M.A.F. ajudaram-me. A minha própria mulher ajudou-me. Esse pessoal ouvia e “se calhar, estas duas faixas juntas não fazem sentido. Mais vale separar e ficas só com esta”. A partir daí, foi o processo de montar aquilo para que fizesse sentido em termos de narrativa. E mais: tu tens lá skits que são gravações de conversas com esses amigos; uma delas é do Brinco, a outra é do Maria Isso até foi captado com o telemóvel no dia em que estávamos a gravar o vídeo para Crooked. Isto anda tudo assim, à volta [risos].

Há pouco tempo tweetaste um pequeno texto que falava de “memórias e inspiração” e no “amor e na rudeza” que Almada te transmitiu. Agora sem o limite de caracteres da plataforma, que quadro é este que nos tentas pintar sobre essa zona tão específica dentro da cidade?

Há várias fases de Almada Velha, para mim, que as vi enquanto fui crescendo. O pessoal mais novo, por vezes, não tem noção do que era Almada Velha nos anos 90. Tinha mais gente que o Bairro Alto. A Rua Capitão Leitão, à noite, era intransitável de carro. Era um mar de gente que se ramificava por todos os bares.

Há uma coisa muito interessante sobre Almada que eu falo muitas vezes, que é a possibilidade de estares numa cidade em que o número de pessoas envolvidas numa qualquer vertente artística é bué grande. Qualquer miúdo da minha geração fazia qualquer coisa. Ou andava de skate, ou estava no teatro, ou era writer, rimava… Beatmakers não existiam muitos, também porque o material era de difícil acesso naquela altura. Mas existiam todas essas coisas que a mim, especialmente, me moldaram. Almada Velha mais ainda, por ser o epicentro de Almada. E quando eu falo em Almada, falo de toda a Margem Sul. Tu vais ao Seixal ou ao Barreiro e tu encontras pessoal com essa mesma mentalidade.

Quando falo na beleza e rudeza, lembro-me daquelas ruas estreitinhas de Almada Velha, todas taggadas, pintadas, com as cenas meio a cair. Agora está um bocado renovado. Tens o miradouro da Boca do Vento, onde vês aquele quadro de Lisboa. Sobes ao castelo, olhas e vês aquilo. Na Casa da Cerca ou no seminário, a mesma coisa. Tu tens esses contrastes todos sobre aquilo que é a beleza natural da cidade e também uma beleza rude da cidade. Por mais que o people me possa até criticar por estar a dizer isto, a verdade é que eu cresci no meio de tags. Se for a outra cidade qualquer, que esteja também toda taggada, eu sinto essa rudeza, uma cena mais áspera aos olhos, que para mim é muito bonito. Eu vejo beleza nisso. E essa ideia, do “belo e rude”, vem de uma frase do Roka, um gajo cá de Almada que sempre foi bué inspirador para o pessoal de cá. O retrato que eu faço de Almada Velha é o de um local com ruas apertadas, meio sujas e com gente, uma certa rudeza pelos tags em todo o lado mas, depois, tens também toda a beleza natural da cidade. Quem duvide, que vá ali ao elevador da Boca do Vento, pare, olhe à volta e perceba aquilo que eu estou a dizer. Ou que desça até lá a baixo, ao jardim, a sente-se à beira do rio. É uma cena surreal. Tens aqui cenas na cidade que são… E nem vou falar do Cristo Rei nem dessas cenas todas.

Há uma cena que eu também costumo dizer, que o pórtico da Doca 13 da Lisnave é como que um velho amigo bêbedo. É, essencialmente, aquela grua gigante que tu vês a partir de Lisboa. Aquilo vai manter-se no panorama da silhueta da cidade. Segundo o que sei, os planos da cidade incluem manter aquele pórtico ali. Quando vejo esse pórtico — seja numa viagem de regresso ou mesmo da vista da minha casa — assim, velho e um bocado ferrugento, faz lembrar aquele amigo bezano que te dá os bons dias e te faz sentir: “estou em casa”. E nunca me senti tão em casa como me sinto aqui. Esta cidade inspira-me muito.

Tu há bocado apontaste o Ras G como influência para este álbum e eu, quando o ouvi, lembrei-me imediatamente do Madlib, um nome que também se encaixa nessa estética beat californiana. Não sei se é das palmeiras, da praia e do sol, mas sinto que o som daqui, por norma, vais mais ao encontro do que se faz a oeste do que a este dos Estados Unidos. Consegues encontrar alguma razão mais específica que ajuda a explicar esta ponte sonora?

Back in the day, havia esta ideia de que o Porto era Nova Iorque e que Lisboa — não apenas Almada — representava Los Angeles, a west coast. Na verdade, aqui na zona sempre existiu essa influência muito grande por parte de sonoridades como a do g-funk ou de cenas mais latinas. E, obviamente, que Ras G, Madlib e J. Dilla são nomes de referência, para mim. E eu sempre fui um gajo do hip hop indie de Nova Iorque. A questão é que a sonoridade foi destilando e foi-se alterando. O que L.A. nos trouxe, nessa fase da Low End Theory e da Brainfeeder ou da Alpha Pup, foi a componente da experimentação. Quem pode, talvez, ser o “pai” dessa sonoridade é o El-P, em Nova Iorque. Era uma cena mais rude e agressiva, com muitos stabs no som, tipo The Bomb Squad e Public Enemy. Em L.A. tens uma cena mais mellow mas, depois, tens também toda a cena da experimentação, que é brutal e que engrandece essa cultura beat. Até porque essa cultura beat transcende, naturalmente, o hip hop. Nasce e bebe do hip hop, claro. Mas tu, especialmente se andares pela Europa, essa cultura beat já encontras essa cultura dissociada do hip hop. Tens o drum and bass, o jungle, trip hop, dubstep… Tudo isso é cultura beat. Nessa fase, L.A. conseguiu espremer ainda mais o pote. Nós, na Jinx, bebemos muito disso, tal como também bebemos muito do indie rap nova-iorquino. Bebemos disso tudo. Relativamente a Almada, pode ser isso que tu disseste: nós temos praia; temos praia a sério. Por isso, talvez não seja uma coisa assim tão cultural. Eu próprio sempre ouvi hip hop de ambas as costas — depois, eventualmente, da cena a sul, também — e não me sinto especialmente marcado pela cena de L.A. por ser de Almada. Mas o meu som também já mudou muito ao longo dos anos e eu já perdi a noção daquilo que possa ser a minha influência matriz — é já uma matriz influenciada por mais de mil cenas.

O J-K é o único nome que tens creditado como convidado neste disco. Foste tu que produziste e tocaste tudo? Não aproveitaste os instrumentistas que já tens na editora para te darem uma mãozinha nisso?

Nada. Nem tudo surge de samples neste disco. Tens outras coisas, que foram tocadas e gravadas por mim. Toquei baixo, algumas teclas, entre outras dicas. Fui eu que fiz. O único convidado foi mesmo o J-K. E isso leva-nos de volta àquela conversa, de que eu poderia ter ido buscar alguém mesmo a Almada. Temos excelentes MCs em Almada, muitos deles com quem já trabalhei. Mas eu escolhi o J-K precisamente por isto ser a carta que eu escrevi a Almada e não algo que queira reivindicar: “isto é Almada!”

É música feita a pensar em Almada e não música obrigatoriamente feita no coração de Almada.

Isso mesmo. Até porque eu nunca teria sequer essa audácia, de dizer que “isto é Almada”. Muito por contrário. Almada está aqui e Almada não precisa de mim. Sou eu a ajoelhar-me no chão, com um raminho de rosas, perante a cidade. E a cena do J-K foi algo que aconteceu de forma muito natural e orgânica. Antes de ter lançado o “almada”, andei a mostrar a faixa nos nossos grupos da Jinx. O J, para aí uma hora depois, envia-me um áudio dele a rimar em cima da faixa já com o primeiro verso praticamente terminado. Ele manda-me aquilo, gravado no telemóvel, e eu pensei, “ok, vamos fazer isso”. Neste disco, mesmo sendo totalmente instrumental, tens essa faixa a servir como uma espécie de bónus. A “Cacilheiro” representa o percurso do J-K, de Lisboa até Almada, de barco. Vir de barco é o percurso que eu recomendo sempre a toda a gente. O J-K fez uma faixa incrível. Gravámos cá em baixo. Aproveito para deixar um abraço ao meu bro João, do LX Sound, que tem feito um trabalho incrível e tem muitas coisas boas a sair daquele estúdio.

Em que é que dirias que o som do Almada Velha difere do que apresentaste no Crooked n’ Grinded?

Diria que o som da minha parte do Crooked n’ Grinded está mais psicadélico, talvez por ter estado a trabalhar com o Maria. A parte do Maria nesse disco tem, se calhar, uma batida mais musculada, que é um trait mais meu. Já eu tornei aquilo mais psicadélico. É uma cena mais de viagem, música de riding. Em relação ao Almada Velha, uma amiga minha disse-me que lhe soava mais maduro. Não sei se é verdade, mas eu também nunca fui bom em auto-análise. Sinto que o som está menos trabalhado. Está mais directo. Está simples sem ser simplista. Há faixas que tu vais ouvir e sentes que aquilo está muito directo, até te aperceberes de todas as coisinhas que estão a acontecer ali por trás, em camadas mais baixas, que só se apanham depois de algumas audições. É também um traço da minha musicalidade e da música que eu gosto de ouvir. Gosto de ter pequenos detalhes. Por vezes tens certos pormenores numa faixa que podem durar apenas um segundo. É aquele chop que só acontece ali e em mais lado nenhum. Tem a ver com o que te dizia há pouco, de estar concentrado no processo e não no outcome. Todos estes beats seguem a mesma narrativa, apesar de terem BPMs ou instrumentos bastante diferentes uns dos outros. O álbum está coeso. Diria que a principal diferença está no ser menos psicadélico e mais terra a terra, de certa forma. Encontras é algumas semelhanças: o som é muito sujo, os drums continuam a ser reis e senhores… É por aí.

Em relação ao Melange, acho que as diferenças são ainda mais gritantes. Até porque tu vinhas de uma estética mais ou menos idêntica àquela que voltas a apresentar agora — mais sample-based, a viver muito dos breaks — e culminaste na versão mais electrónica de ti mesmo nesse disco de 2015. Estas reviravoltas na tua música foram premeditadas?

Não. Eu acredito que, tendo em conta os anos que eu levo a fazer música, importa eu conseguir ir viajando. Para não ser sempre arroz. Ninguém quer estar sempre a fazer a mesma coisa. Há uma série de transições na minha música. Eu começo no Fractal. O Mint é quase um Fractal em esteróides. Depois tenho uma fase em que lanço dois EPs de remisturas, os Shadaloo, com cenas muito diferentes e que tem desde Gravediggaz a Lana Del Rey. Eu estava a experimentar um bocado de outras sonoridades. Chego ao Melange… Esse disco foi totalmente criado em viagem. Tive dois anos a trabalhar fora, em que tinha de passar blocos de duas ou mais semanas em diferentes países. Corri um pouco de cada continente — do sudoeste asiático à Àfrica profunda ou à América do Sul. Agora que já saiu o filme do Dune, o pessoal é capaz de já entender melhor algumas das referências que eu tinha ali, até porque serviu de inspiração para essa minha fase mais sci-fi. No Melange não tens praticamente samples nenhuns. É tudo tocado. Isso foi uma aprendizagem para mim. Não o trabalhar com os sintetizadores — já fazia isso antes — mas mais o aprender cenas simples de teoria musical para poder experimentar na minha música. Reduzi tempos, meti alguns sons muito graves, outros mais trabalhados… No pós-Melange volto novamente a experimentar cenas novas e encontro-me praticamente no mesmo sítio onde comecei, com o Fractal. Volto, por exemplo, ao crate digging. Não é que eu tivesse deixado de o fazer na altura do Melange, mas fazia-o com outra finalidade, mais para eu estar a ouvir. E antes do Melange, em 2013, tiveste o Sorriso Parvo, do J-K, que foi 90% produzido por mim. Se fores a ver, é tudo muito sample based, apenas com uma ou outro dica tocada. No fundo, o que eu fiz foi aproveitar aquilo que aprendi a fazer com o Melange e utilizo isso no Almada Velha, numa camada de sons que eu toquei como complemento aos samples. Agora, tenho um novo arsenal, novas ferramentas. Mas isto é sempre uma viagem e eu, no próximo álbum, posso vir a fazer outra coisa completamente diferente.

Claro. E quem acompanha as tuas rubricas do Beats For Plants percebe que tu até és um gajo que está constantemente a adquirir novos gadgets e máquinas para produção. Ou seja, tu até podes estar a trabalhar numa estética que já tinhas explorado antes, mas o processo, de momento, acredito que seja completamente diferente de como fazias música há uns nos

Sem dúvida.

Hoje em dia, se calhar, até já deixaste o computador de lado. Há bocado disseste-me que também tocaste baixo e teclas. Já só estás a trabalhar directamente com máquinas e instrumentos?

Neste momento, 100% dos beats que faço vêm directamente do trabalho com as máquinas. A principal é a MPC Live, que, apesar de dar para ligar ao computador, eu só a ligo quando é preciso exportar as cenas que tenho lá. Utilizo, por exemplo, o Ableton Live para montar tudo. Lá só faço um arranjo, já quase não adiciono nada ao nível da composição. É muito raro. E isso permite-me ter uma outra flexibilidade. Porque a faixa também pode ser montada na MPC, mas isso implicaria um outro tipo de trabalho. Se eu tenho uma outra ferramenta para o fazer mais facilmente… Mas sim, pode dizer-se que eu estou a 100% nas máquinas.

E há outra coisa: fazer as cenas nesta MPC já não tem nada a ver como quando eu trabalhava com a 2000XL. A MPC Live já é quase um computador, está cheia de instrumentos lá dentro e umas outras quantas adições que eu fui fazendo ao longo do tempo, como synths ou outras ferramentas para uma finalidade mais específica. Lembro-me de ter andado meio obcecado com uns pads de bateria, que acabei por comprar. Uso aquilo para tocar, por exemplo, os hi-hats. O feeling é diferente do que estar a tocar com os dedos. Essa é outra cena: a procura pelo ritmo natural. Falo disto com muito pessoal, sobre tocar as cenas não quantizadas. Isto é música electrónica e uma grande parte da malta usa instrumentos electrónicos para a fazer, independentemente se estão a samplar ou não. Mas andamos sempre naquela busca constante de tentar humanizar a música que fazemos de forma electrónica. Por exemplo, basta-te ter um microfone e consegues gravar o som daqueles ovinhos com arroz lá dentro. Fazes o teu próprio shaker. Podes usar dois paus para bater um no outro, gravas e tens uma cena qualquer de percussão. Tudo isso se encaixa na tal cena de tentar humanizar a música. Tu podes ir sempre acrescentando camadas nesse sentido. Tens a cena do field recording, que é algo que eu também faço neste disco. Não precisas de um mic de 100 euros, em estéreo, tipo aqueles gravadores portáteis da Zoom, para andares na rua a gravar sons. Eu andava nas estações do metro a gravar sons com o telemóvel. O Crooked está cheio de cenas desse género. Há lá um som, por exemplo, que captei na Jordânia, no lobby de um hotel, onde estava a acontecer um casamento muçulmano. Eu estou a gravar isso, depois entro para um spot para ir fumar um cigarro e apanho uma missa católica ao lado. Eu estava entre os dois sítios, a apanhar com esses dois acontecimentos específicos. No casamento muçulmano apanho uma cena de percussão incrível e, ao mesmo tempo, consigo ouvir a malta a cantar na missa. Todos esses elementos são, depois, reintroduzidos para dentro da música. São componentes. Tal como se samplasses um piano. São componentes sonoros que te dão algumas camadas naturais à tua música. Antes de mais, porque é que nós samplamos? Não é por não sabermos tocar, até porque facilmente vais para estúdio e contratas músicos para tocarem. É mesmo porque estás a samplar toda uma identidade que está à volta daquele som, que está relacionada com a altura em que aquilo foi gravado, na forma como foi gravado, as pessoas que tocaram aquilo em estúdio… Tudo isso são elementos que tu queres trazer. E eu, agora, a produzir as coisas 100% na máquina, tenho tido essa tendência natural no meu processo, de tentar humanizar as coisas de forma não forçada. Em relação àquela conversa do ritmo natural, não quantizado, posso dizer-te que é uma cena que demora. As tuas mãos não conseguem logo reproduzir o que tu estás a imaginar na tua cabeça, de modo a que esse tal ritmo natural apareça. E o pessoal não tem de ter pressa com isso. É ir fazendo. É meter horas na máquina.

Então, tu tens várias fontes diferentes ao nível do som e todas elas vão desaguar na MPC? Consideras ser essa a tua ferramenta base?

Sim. Eu toco um synth e envio-o para a MPC. Até porque eu posso fazer duas coisas distintas com esse som dentro da MPC. Posso deixar a linha de synth as it is, como também posso samplar a minha própria linha de synth — faço uns chops e retoco, por exemplo. O que eu faço muitas vezes para as minhas percussões é ir gravando os sons das cenas que tenho aqui por casa e, depois, choppo aquilo na MPC e posso nem usar o som da mesma maneira como foi gravado. Eu retoco as cenas de outra maneira. Esse re-sample constante às coisas que estás a fazer, permitem-te criares uma identidade diferente. O processo de estar sempre a adicionar e remover coisas torna a tua música em algo muito mais pessoal. E isso é muito importante, porque, principalmente ao nível do hip hop, existe agora uma certa cultura de homogeneização do som — tudo soa muito parecido e essa ideia nunca esteve tão presente como está hoje. Nós, artistas, devemos de ser os primeiros a tentar contrabalançar isso. Há pouco dizias-me que o meu álbum te fez lembrar de Madlib. Para mim, é uma honra ouvir isso. Só que, ao mesmo tempo, tens aquela coisa de eu querer que aquilo seja o mais “eu” possível. Obviamente que toda a gente tem as suas fontes e o facto de tu seres inspirado por algo não significa que tenhas de fazer igual. Mas se tu estiveres só a pensar no outcome, provavelmente vais querer fazer as coisas iguais àquilo que está agora a bater. Isso faz com que a tua arte perca a validação.

Percebo isso que falas da homogeneização e eu próprio já dei por mim a pensar nesse assunto. Mas depois lembro-me: nunca se fez tanto hip hop como se faz hoje em dia e estão constantemente a surgir novos artistas dentro do género.

Isso é verdade. E eu, quando falo em homogeneização, falo-te de uma camada maior, que está mais à superfície. À medida que tu desces, vais acabar por te cruzar com cenas completamente únicas. Tens gajos como o Pink Siifu, o Kenny Segal, o Knxwledge… Há aí malta a fazer coisas muito próprias. Até mesmo gajos com carreiras muito longas, como é o caso do Alchemist, estão constantemente a refinar o seu som. Já o Guru e o DJ Premier falavam, no Moment of Truth, algo como “dar update ao nosso estilo”. Acho que a dica é mesmo essa: ires dando update ao teu estilo, porque vais conseguir fazer cenas únicas. Ainda hoje encontras pessoal que te deixa impressionado quando os descobres pela primeira vez. Ao mesmo tempo, tens essa tal grande camada — que eu não vou chamar de mainstream, porque acho que deixou de existir — que está muito homogénea. Se tu só receberes o que te dá essa camada e não fores diggar mais fundo, parece que ficas com a ideia de que “o hip hop agora é só isto”. E não tem mal nenhum tu estares só a querer criar o som do momento. Inspira-te nisso! Faz é a tua própria cena. Até porque, a mal ou a bem, todo o processo acaba por ser muito mais gratificante.

Já tens uma ideia de como é que vais apresentar o Almada Velha ao vivo? Vais ser apenas tu em palco ou tens aí planos para uma formação mais ambiciosa? Há já alguma data marcada que me possas revelar?

Posso dizer-te que tenho duas datas para a apresentação, uma em Lisboa e outra no Porto, mas não tas vou dar já. Temos estas questões da pandemia e eu não me quero comprometer já, porque essas datas estão a ser apontadas para Janeiro mas isto ainda anda tudo muito incerto. O formato vai ser com banda e, neste momento, essa banda é composta por mim, pelo Maria e o Vasco Completo. É exactamente o mesmo formato que usámos para os concertos do Crooked. Se essas datas correrem bem, certamente que iremos ter mais concertos, quem sabe uma mini tour… Vamos ver o que acontece daqui para a frente. Mas o formato de eleição será com banda. Apresentar-me em DJ set — ou outro formato qualquer, mais redux — não está fora de questão. Posso ir só eu tocar num formato mais híbrido, numa espécie de beat set que me obriga a utilizar outro equipamento — pode ser com a MPC, a SP-404 e um prato, por exemplo. Mas a apresentação oficial será com banda e acontecerá em duas casas que me são muito queridas. Nos primeiros meses de 2022, espero encontrar todo esse pessoal, que me tem dito que está a curtir do disco, em palco.

Vocês os três já começaram a ensaiar as novas roupagens para os teus temas? Já existe uma divisão de tarefas bem definida para aquilo que se vai manifestar em palco?

Já andamos a pôr as coisas em prática. Estamos a experimentar as coisas e a preparar o que será esse live act. Para quem não tem bem a noção de como funciona, posso revelar que vou estar eu e o Maria nas máquinas e o Vasco estará na guitarra a aplicar mais uma outra camada. Ao vivo, creio que o som se vai tornar mais psicadélico e não tão terra a terra. E isso ao vivo é fixe, aquela ideia de estares numa viagem musical.

Presumo que soará diferente do que ficou registado na versão de estúdio. Isso é fixe.

Nós não queremos que soe igual ao disco. Já o tínhamos feito em Crooked e com a Monster Jinx Type Beat, essa possibilidade de criar elementos diferentes nas faixas — estender as faixas, retocar as faixas em certos aspectos… Já estamos a trabalhar nisso.

E aproveitando este óptimo momento de forma da Monster Jinx, um concerto com banda abre-te até a porta para a edição de um primeiro álbum ao vivo.

Sim. Honestamente, eu nem sou um grande fã de álbuns ao vivo. Ouço uma série deles, mas não sou fã. Por acaso, no primeiro concerto que demos de Crooked, no Passos Manuel, gravámos o concerto todo — não só a gravação da mesa, tal e qual nós tocámos, mas também a gravação do público. Esse álbum ao vivo até podia acontecer já. É uma hipótese e é um desafio muito interessante.

E essa maratona de lançamentos por parte da editora é para continuar? Sei que têm o álbum do Stray mesmo aí ao virar da esquina. O que é que nos espera em 2022?

É isso. A 16 de Dezembro sai o álbum do Stray. O pessoal que ouviu os dois singles sabe que estamos a falar de uma coisa totalmente diferente. É uma cena que ainda não foi experimentada em Portugal. Tem uma aproximação àquilo que fez o Tom Waits, se calhar. Chamamos-lhe cantilena portuguesa. Vai ao encontro daquela tradição de rimas meio cantadas e o Stray soube fazer isso na perfeição.

No início do próximo ano, vamos ter o álbum do NO FUTURE finalmente cá fora, depois de ter lançado já um EP este ano. Temos várias coisas em perspectiva para depois disso: a ROXO 08 e uma surpresa, lá para Março ou Abril, que não posso mesmo revelar mas que vai ser um momento gigantesco na história da Jinx. Gigante. Surrealmente gigante. Ainda hoje, quando falamos sobre isso, ficamos a olhar uns para os outros. “Nós vamos realmente fazer isto?!” Quero deixar toda a gente atenta, porque isto será um ponto mesmo fundamental. Em suma, vais ter muitas coisas a acontecer durante o próximo ano. Se tudo correr bem, teremos também um novo álbum do Maria e uma outra novidade minha. De momento temos um álbum do Saloio a ser preparado, um EP do J-K a ser preparado… Como vês, a coisa está a rolar e nós não vamos abrandar. Aliás, vamos é acelerar!


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