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Fotografia: Rafaela do Valle & Geraldo Ferreira
Publicado a: 30/09/2025

De ouvidos (e olhos) abertos na sexta-feira e sábado nos jardins do Museu de Lisboa - Palácio Pimenta.

Cuca Monga, um festival da cantautoria que nos (en)cantou de Zé Ibarra a B Fachada

Fotografia: Rafaela do Valle & Geraldo Ferreira
Publicado a: 30/09/2025

Num mercado saturado de pequenos e grandes festivais (os mainstream e os de nicho, os urbanos e os inóspitos, os veteranos de culto e os novatos de pouca dura), que este ano confirmou sinais já dados de que o ecossistema estava para ruir com a não realização dos históricos Super Bock Super Rock e Sudoeste, com os cartazes a repetirem artistas e ideias até à exaustão, sem conseguirem convencer um público com menos poder de compra no bolso — eis que o Festival Cuca Monga surge como uma breve lufada de ar fresco num ambiente cada vez mais irrespirável.

Dois anos após a última edição, ainda num formato que ocupava diferentes salas no bairro lisboeta de Alvalade a que chamam casa, o festival da editora e associação Cuca Monga mudou-se para os jardins do Museu de Lisboa – Palácio Pimenta, no Campo Grande — seguindo os passos do Iminente no ano anterior mas, querendo ou não, por haver menos público em relação a esse outro festival, proporcionando um espaço mais confortável e tranquilo, a combinar melhor com um local tão agradável, habitualmente povoado por árvores e pavões.

Um festival organizado por artistas em prol da música, que apostou na simplicidade e na evidência (que deveria ser mais clara para muita gente) de que menos é mais. Sem marcas a invadir-nos excessivamente os olhos e ouvidos, deixando espaço para o silêncio e para a contemplação, porque um festival não precisa de ser, ao contrário do que muitos nos tentaram fazer acreditar, um cocktail de estímulos rápidos em constante ebulição. Sobretudo na era do menor attention span, da ansiedade constante e dos vídeos viciantes de poucos segundos, exige-se tempo, espaço, calma. E, mais ou menos propositado, foi esse equilíbrio que encontrámos no Festival Cuca Monga. 

Começámos por escutar, no sábado, a pop comunitária de Bia Maria — música inquieta (e por vezes interventiva) do seu álbum de estreia Qualquer Um Pode Cantar, editado há quase um ano. Acompanhada de uma banda, não tivemos a experiência de assistir a Bia Maria com um coro — que certamente só iria enaltecer a dimensão vocal da performance e acrescentar camadas harmónicas —, mas a cantautora muniu-se das ferramentas que tinha ao dispor para uma actuação sólida. 

Ao vivo, o humor e o jeito peculiar de se dirigir ao público servem como cola entre canções, uma descontracção que quebrou barreiras entre palco e plateia — que permaneceriam bastante diluídas ao longo dos dois dias de festival —, e funcionavam como momentos de passagem entre a solenidade das suas canções, de versos sérios e poéticos, melodias elaboradas e arranjos sofisticados que pedem uma certa sobriedade na forma como são encarados. 

Missão cumprida se a ideia era quebrar o gelo na abertura do festival e apresentar desde logo um cancioneiro consistente e autoral — provavelmente o grande elemento comum de praticamente todos os projectos que durante o fim-de-semana passaram pelos jardins do Palácio Pimenta, tornando o Cuca Monga num verdadeiro festival da cantautoria, com destaque para a palavra mas sem descurar a forma, reunindo alguns dos melhores escritores de canções da música contemporânea portuguesa (e não só).



Um dos outros bons exemplos disso foi o senhor a que assistimos a seguir no mesmo palco, Luís Severo. Sempre com uma bandeira da Palestina na retaguarda, lembrando que a sua música tem um posicionamento claro e muitas vezes uma politização, o músico foi igual a si próprio — de guitarra na mão, foi cantando poemas categóricos, tecendo ao vivo uma tapeçaria de canções magistrais com a sua interpretação singela.

Cedo ou Tarde, o disco prometido há dois anos que chegou mesmo a ter concertos de pré-apresentação, ainda está por vir — esperamos que as incertezas de Luís Severo, que tantos versos e melodias já geraram, sejam mais combustível criativo do que síndrome de impostor, que se transformem em matéria-prima e não se convertam em entraves artísticos. Certo é que, seja como for, tudo aquilo que Severo lançou e que canta em palco é de uma qualidade superior que o distingue como um dos grandes cantautores da sua geração. Num concerto de poucas palavras, também para conseguir cumprir o alinhamento a que se tinha proposto, fomos embalados por este trovador do século XXI até ao espectáculo seguinte.

Ainda ouvimos algumas das canções envolventes de A Sul, projecto auspicioso de Cláudia Sul que mergulha nas introspecções e nas sonoridades ambiente para dar azo a temas mais ou menos catárticos. Uma apoteose maior, contudo, esperava-nos de novo no palco principal para embarcarmos num Expresso Transatlântico rumo a um destino incerto, que tanto tem raízes no passado como uma visão desafogada de futuro.

A banda de Rafael Matos e dos irmãos Gaspar e Sebastião Varela — que, ao vivo, ganha outras proporções e se expande para uma formação alargada — é um dos muitos projectos entusiasmantes a surgir nos últimos anos em Portugal. Música instrumental que não precisa de voz nem letras para ser acessível, carregam uma aura rock n’ roll ainda que com um som bastante autoral e, claro, com destaque para um instrumento do fado: a guitarra portuguesa. Quando Gaspar Varela, de guitarra portuguesa nas mãos, se atirou para a plateia em modo crowdsurf, os dois universos pareceram fundir-se numa imagem nítida — ainda que a música deste Expresso Transatlântico integre muitos outros mundos e nuances sónicas, desafiando convenções e categorias.



Com a energia que os caracteriza, interpretaram temas do EP homónimo e do álbum Ressaca Bailada, mas também deram vida à “Flor Trovão” que desvendaram este ano como avanço de um próximo disco. Mais do que isso: provocaram uma autêntica “Avalanche”, antecipando outra faixa nova que se irá revelar no final desta semana, naquele que foi o grande concerto da primeira noite de Festival Cuca Monga. 

Também valeu a pena vermos, contudo, a performance de Jasmim, outro dos músicos contemporâneos de grande qualidade que, evidentemente, mereciam muito mais atenção do público. Lançou, este ano, o seu álbum Dias em Branco, de canções belas que demonstram como, além dos poetas, Portugal também é o país dos cantautores. Ao vivo, por trás de três televisores que iam ditando o mood ou incitando à participação da audiência, Jasmim foi oscilando entre os teclados e a guitarra, entre os versos sublimes e sóbrios e os diálogos descontraídos com a multidão à sua frente. A presença de diferentes instrumentos e texturas, por oposição aos concertos apenas com guitarra, também se provou como uma força distintiva no espectáculo, ajudando a erguer uma aura sonora própria. Haveria ainda espaço para as performances familiares do Conjunto Cuca Monga e dos Capitão Fausto em modo DJ set, mas voltaríamos a encontrar-nos com o Palácio Pimenta no dia seguinte.



As previsões meteorológicas eram francamente pouco animadoras, mas o cartaz de sábado tinha mais (e até melhores) argumentos do que o primeiro dia para nos levar — a nós e a várias outras centenas de pessoas — até ao Campo Grande. Entre gabardines e galochas, kispos e chapéus de chuva, a depressão Gabrielle não foi avassaladora o suficiente para esmagar o sonho do Festival Cuca Monga, mas obrigou à improvisação de um palco secundário abrigado mesmo ao lado do palco principal, por impossibilidade de utilizar o “bosque” do dia anterior.

Num ambiente tão encantado, ninguém melhor para o mote de arranque do que emmy Curl, uma fada transmontana que tem vindo a construir um percurso coeso e muito próprio ao longo dos anos. Em 2024, lançou um dos seus melhores discos, Pastoral, explorando o folclore ancestral português e cruzando-o com ambiências jazzy ou nuances pop contemporâneas. 

É um imaginário que evoca o pagão, rituais e ensinamentos cantados entre serras e montanhas, de um Portugal que é tão imaginado e projectado como concreto — pegando em elementos autênticos para construir uma fantasia musical que só dá asas à imaginação. Este universo multiplicou-se em palco num cenário verde — o ideal para acolher a performance mística de Emmy Curl e companhia.



Daí passámos para as irmãs Yeri & Yeni, que nos últimos anos temos ouvido em colaborações com Branko ou Nayr Faquirá, elas que foram apadrinhadas de algum modo por Dino D’Santiago. Criadas na Linha de Sintra mas de raízes cabo-verdianas, apresentaram-se com o guitarrista Célio Cardoso. Irmãs gémeas, não só partilham a aparência como a própria voz — um tom doce que casa bem com melodias açucaradas de R&B e letras de (des)amor, mas que talvez pudesse ganhar maior alcance ou intensidade noutro tipo de canções, fossem mais sofridas ou uplifting, consoante o estado de espírito.

Certo é que existe potencial nesta dupla que não necessita de loop stations ou quaisquer tipo de efeitos para que a mesma voz funcione como back vocal de si própria — quando temos duas cantoras com o mesmo timbre, existem uma série de experimentações e nuances interessantes que Yeri & Yeni já estão a explorar e que podem ser levadas mais adiante.

A transição do inglês para o português que estão a fazer, como explicaram durante o concerto, também parece a decisão mais acertada — quanto mais original e autoral for o registo, mais probabilidade de qualidade e sucesso terá este duo. O caminho ainda pode ser longo e árduo, mas Yeri & Yeni mostraram-se determinadas a percorrê-lo e a darem tudo de si para conquistarem os seus sonhos e ambições. Talvez seja o ingrediente mais importante para o futuro do projecto, que continuaremos a acompanhar com atenção e interesse, aguardando pelas (prometidas) novas canções que aí vêm.

Debaixo de chuva, que embora inconveniente desperta uma aura de catarse, aproximámo-nos do palco principal para receber o inigualável B Fachada. Claramente um dos músicos mais aguardados do dia, este cantautor singular fez escola ao longo dos anos e tem hoje um culto à sua volta — de quem tem guardadas aquelas letras peculiares na ponta da língua, de quem sabe a intensidade certa para soltar cada verso.



Como sempre, B Fachada apresentou-se sozinho, com uma guitarra mas sobretudo com uma viola braguesa, para mais uma performance de ode à canção. A backing track que passa de fundo, marcando o ritmo e acrescentando outras camadas mesmo que num registo lo-fi, serve como uma cama para as cordas e as letras de Fachada se deitarem confortavelmente e fazerem o seu trabalho.

Mais ou menos abstractas, mais sérias ou satíricas, as canções contam histórias, reflectem sobre dilemas existenciais, espelham a contraditória condição humana, incitam ao pensamento e à libertação, a uma purga do que vem cá dentro. Com um carisma muito próprio e uma relação estreita com o público, outro dos trunfos de Fachada é que este vive como poucos o momento — como saberão os fãs, não existe um alinhamento pré-definido, é o próprio ambiente do espectáculo, do público e do lugar que vão guiando os caminhos pelo seu cancioneiro. Essa imprevisibilidade, que está sempre latente e que é notória nas pausas entre temas, confere uma particular autenticidade e humaniza o artista em palco — uma dimensão bastante relevante nos dias que correm. 

Sonhamos com o dia em que B Fachada ceda a fazer uma digressão com banda, para que as suas canções ganhem outra vida e corpo ao serem arranjadas para uma formação maior, mas também compreendemos os elementos sui generis de cada autor e a magia de Bernardo Fachada reside muito nestas nuances que formam um imaginário próprio. Até à próxima, tio B.

Voltaríamos ao mesmo palco para acolher, de braços abertos, Zé Ibarra. O músico brasileiro, que se tornou conhecido nos Bala Desejo mas que posteriormente se emancipou a solo, é um dos cantautores mais interessantes a surgir do país sul-americano na última década. Embora se costume apresentar com banda, as condições ditaram que desta vez viria sozinho, munido apenas de uma cadeira e uma guitarra — um derradeiro teste para qualquer músico pôr à prova as suas canções, compreender se funcionam quando despidas dos instrumentos e das muitas camadas sonoras que podem compor uma faixa.

Lançou há um par de anos o seu disco de estreia a solo, Marquês, 256., a que deu seguimento há pouquíssimos meses com AFIM. Tímido mas simpático, talvez até sedutor, Zé Ibarra foi conversando com o público português, entre os quais vários fãs que tinham ido de propósito ao Festival Cuca Monga especificamente para o ver. As suas canções delicadas abordam os grandes temas da vida — o amor, a tristeza, a solidão, as angústias — de um ponto de vista pessoal, mas que naturalmente também se tornam relacionáveis para qualquer ouvinte com experiências para contar.

Com uma incrível e doce voz e um assobio que quase parecia gravado, Zé Ibarra foi encantando com o seu português brasileiro, tão melódico durante as músicas como nos momentos de conversa. Com a plateia rendida a seus pés, só teve de ir tocando uma canção após a outra, demonstrando em partes iguais os seus dotes líricos e vocais, posicionando-se como um herdeiro de todos os mestres da canção brasileira. Também ele, um dia, será uma lenda viva com esse estatuto — ou pelo menos aparenta ter todas as condições e talentos para tal.

Assistiríamos depois à actuação dos Ganso, um caso curioso na música portuguesa. Prestes a completar uma década de carreira, a banda emergiu de um contexto de música alternativa e indie mas tem conseguido escalar uma série de patamares na difícil escada do sucesso mainstream, conquistando um público mais jovem e fazendo canções que se tornaram êxitos gigantes em redes como o TikTok. Ao ponto de, em Março do próximo ano, terem data marcada para um concerto em nome próprio no Coliseu dos Recreios, o que não é coisa pouca.



Ao vivo e a jogar em casa, os Ganso provaram como são uma banda repleta de instrumentistas virtuosos — que fazem navegar o som do grupo por diferentes sonoridades, mais ou menos rock, mais ou menos pop, mais ou menos dançáveis — e com refrões orelhudos e letras cativantes que o vocalista João Sala sabe perfeitamente como entregar.

Ainda na ressaca do álbum Vice Versa (2024), que os catapultou para palcos maiores e salas esgotadas, também não deixam ausentes do alinhamento canções de trabalhos anteriores que já se tornaram cânones do grupo e do legado que têm vindo a cimentar junto de um público alargado. Experientes e particularmente competentes ao vivo, mostraram que um dos seus trunfos mais valiosos reside mesmo na maneira como se apresentam (e entregam) em palco.

Por fim, no que toca aos concertos que fomos apanhando no Festival Cuca Monga — que encerrou com os MAQUINA. —, vimos ainda a mais invulgar das actuações tendo em conta o contexto do evento. A Cuca Monga programou Silvino Branca, músico cabo-verdiano que tem caído nas boas graças dos programadores lisboetas e que veio apresentar o seu frenesim de cotxi pó — a mais recente mutação do funaná, ainda mais frenético e acelerado do que o género original, que se tem tornado amplamente popular em Cabo Verde e na respectiva diáspora.

A tocar gaita e acompanhado por um ferrinho (o outro instrumento tradicional do funaná), por um baixo e uma backing track, Silvino Branca foi cantando e marcando um ritmo tão agitado que não conseguiu deixar ninguém indiferente. Não houve concerto no Festival Cuca Monga com tantos corpos em movimento, numa dança quente a cortar a noite fresca e húmida, democratizando sons, corpos e elementos identitários culturais que muitas vezes não dialogam (nem se cruzam) com o público característico desta editora e associação cultural. A diversidade e interculturalidade lisboeta, já tantas vezes cantada e celebrada, a materializar-se uma vez mais — como sempre acontece num qualquer local, a um qualquer sábado à noite, na cidade onde cabem todos e que deveria ser sempre reivindicada como tal.


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