[TEXTO] Manuel Rodrigues [ILUSTRAÇÃO] Riça
85 mil. Foi este o número de visitantes que passou pelo Parque da Bela Vista, em Lisboa, no passado domingo, para assistir aos concertos de Anitta, Demi Lovato e Bruno Mars, entre outros. O músico norte-americano, na qualidade de cabeça de cartaz e enquanto nome maior da pop actual, serviu um concerto irrepreensível na execução técnica e praticamente intocável nas escolhas para o alinhamento, onde não faltaram êxitos explosivos como “Locked Out of Heaven”, “Uptown Funk” e “24K Magic”, bem como baladas contagiantes como “Versace no the Floor”, “When I Was Your Man” e, claro, “Just The Way You Are”. A receita para o seu sucesso ao vivo é bem mais simples do que parece: músicos de primeira liga, precisão e colocação na voz, groove no corpo e alma, abordagens que se afastam ligeiramente das versões de estúdio – com muitos solos à mistura – e um espectáculo sóbrio que nunca procura suplantar a performance.
No código genético de Bruno Mars é possível encontrar um longo catálogo de influências que vão de Michael Jackson a Prince e de James Brown a George Clinton e também aos Temptations, Impressions e Commodores. Diga-se resumidamente que vai beber a toda a herança da música negra norte-americana com base num imaginário editorial que encontra um sólido e óbvio epicentro na lendária Motown, selo do qual chegou inclusive a fazer parte. No entanto, apesar de ter nascido no Havai e de ter ido com 17 anos viver para Los Angeles, Bruno Mars é descendente de pais sem ligações directas aos Estados Unidos. O pai, Peter Hernandez, é metade porto-riquenho e metade judeu Ashkenazi (uma subdivisão da religião), e a mãe, Bernadette San Pedro Bayot, nasceu nas Filipinas.
Sempre que um artista não negro alcança o sucesso a praticar música de inspiração negra, há um coro de indignados que trata imediatamente de se levantar dos bancos corridos do mais conservador tribunal para acusar o mesmo de apropriação cultural, como se a música não se pudesse vangloriar de uma linguagem suficientemente universal para ser articulada por qualquer um que saiba fazer uso dela e tivesse obrigatoriamente que nascer e morrer nas mãos de pessoas escolhidas segundos os critérios dessa tirana assembleia. Elvis Presley ainda é considerado um dos maiores símbolos de apropriação cultural por ter se ter expressado através do rock ‘n’ roll, um estilo desenvolvido e, na altura, maioritariamente articulado por afro-americanos. Mas os exemplos não se ficam por aqui. Eminem, Vanilla Ice, Gentleman, Matisyahu, Macklemore e Post Malone são alguns dos nomes envolvidos nesta estranha perseguição.
No rescaldo da cerimónia dos Grammy Awards deste ano e da vitória de Bruno Mars na categoria “Álbum do Ano” com o disco 24K Magic, Seren Sensei, activista, escritora e Youtuber, acusou o músico – num vídeo de dois minutos que se tornou viral – de apropriação cultural por este não ser, segundo palavras da própria, “negro, de todo, e aproveitar-se da sua ambiguidade racial para oscilar entre géneros”. O que Sensei pede, no fundo, é que se apoie única e exclusivamente a música negra feita por negros, ou seja, que se comece a consumir música pelas caras e não pelo talento.
Comecei a ouvir hip hop desde muito cedo, quando este ainda habitava na periferia da metrópole onde actualmente encontrou – e bem – uma nova morada. Como gaiato que era, com treze ou catorze anos, vibrava com toda aquela ideia do underground e da constante guerra entre os puros e os impuros, os comerciais e os reais. Enfim, todo um leque de adjectivos e catalogações que, passados uns anos, deixou de fazer qualquer sentido para mim. Passei a dividir aquilo que ouvia em duas categorias apenas: o audível e o inaudível, ou seja, aquilo que me transmitia qualquer tipo de sensação na audição e aquilo que não me dizia rigorosamente nada.
Eminem foi sem sombra de dúvidas um dos artistas que mais consumi na minha juventude. Tenho os álbuns todos originais (mesmo depois de passar a febre, continuei a comprá-los, por uma questão de continuidade da obra) e, mais importante que isso, sei o temas pré-Encore (talvez tenha sido esta a fase em que comecei a afastar-me ligeiramente do homem de Detroit) quase todos na ponta da língua. Recentemente, voltei a aproximar-me graças ao magnífico Marshall Matters LP 2, talvez o melhor álbum de Em depois de The Slim Shady LP, The Marshall Matters LP e The Eminem Show. E, para ser franco, devo ter ouvido o mais recente álbum no máximo duas vezes: é claramente um dos capítulos menos inspirados de um outrora iluminado Slim Shady.
Eminem é um dos principais responsáveis pela proliferação do hip hop, pelo salto que deu do bairro para o mainstream, para as cerimónias dos Grammy Awards e, consequentemente, para os ouvidos de todo o mundo, sem excepção, numa altura em que ainda não existia Kanye West e muito menos Kendrick Lamar. Parte do mediatismo que o hip hop goza actualmente foi impulsionado por ele: é algo que não lhe podemos retirar, por mais que o seu presente artístico possa ser desinteressante se comparado com o que andam nos últimos anos a fazer Lamar, West e Drake. A questão que se coloca e que encerra a crónica desta semana é básica: terá Eminem alcançado tamanho estatuto por ser um rapper branco ou por ter sido realmente muito bom na matéria?
Não será toda esta questão da apropriação algo pateta quando um artista consegue provar por portas e travessas que o género musical lhe corre no sangue, independentemente das origens, da cor da pele ou do estrato social, como servem de exemplo Elvis Presley, Eminem e Bruno Mars?
Vale a pena pensar no assunto.