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Publicado a: 13/05/2018

Crónicas de um HipHopcondríaco #3: A Aparição

Publicado a: 13/05/2018

[TEXTO] Manuel Rodrigues [ILUSTRAÇÃO] Riça 

Celebra-se hoje, em Fátima, o centésimo primeiro aniversário das aparições de Nossa Senhora a Lúcia, Francisco e Jacinta. Há sete anos, por altura do verão, Kanye West protagonizou, também ele, uma inesquecível aparição que estará certamente registada na memória dos quarenta e cinco mil pastorinhos que rumaram à Zambujeira do Mar, por altura do ainda denominado Sudoeste TMN.

Sexta-feira, 5 de Agosto de 2011. A hora vai avançada na Herdade da Casa Branca. Para trás ficou um concerto inebriante dos portugueses Deolinda e uma actuação algo apagada do afro-alemão Patrice, a milhas de distância daquilo que servira, anos antes, mais a sul, nos idos do festival Sagres Surf Fest. Dezenas de milhares esperam impacientemente pela entrada em palco do cabeça de cartaz da noite, nesta que seria a sua segunda passagem por Portugal (a estreia acontecera em 2006, no âmbito do Cool Jazz Fest, nos Jardins do Marquês de Pombal, em Oeiras). Passam-se os minutos e nada. Mr. West não dá sinais de vida e já lá vai cerca de uma hora de atraso.

De súbito, entra em palco um generoso grupo de bailarinas. Assumem as suas posições, fazem um compasso de espera e voltam a sair. Falsa partida.

Segunda tentativa, segundo esforço falhado. A elegância dos vestidos de tule volta a sair da mesma forma que entrou: a correr. A noite parecia não estar a correr bem para os lados do anfitrião norte-americano.

Mais um compasso de espera e eis que se iniciam finalmente as hostilidades, desta feita sem percalços. De olhos fixos no palco, o público espera ansiosamente pela entrada do homem que parecia querer tornar-se numa espécie de Axl Rose do hip hop. O conjunto de ballet dá um ar de sua graça, em frente a um cenário gigantesco que em muito se assemelha a uma pintura da antiguidade clássica, e prende em si a atenção da multidão. Ao invés de surgir em palco, como seria de esperar, West faz a sua aparição em pleno coração da plateia, numa plataforma elevatória que o coloca uns bons metros acima dos presentes. Numa questão de segundos (milésimos, talvez?), Kanye passa a ser o epicentro da acção, quase como se em torno da sua pessoa se tivesse formado um gigantesco campo magnético, uma força centrípeta capaz de concentrar em si todas as energias do festival e, quem sabe, do próprio Planeta Terra.

Naquele preciso momento, Yeezus esteve como sempre quis estar: acima de tudo e todos, no centro das atenções, venerado como nunca, Deus na primeira pessoa.

As linhas que se seguem não procuram – de todo – defender o que Kanye West disse ou deixou de dizer nas polémicas mais recentes, mas sim tentar descodificar os bastidores desta mente tão peculiar.

Há muito que Ye se habituou a viver além das margens do banal e do profano. O sucesso discográfico deu-lhe uma notável visibilidade, mas foi através do seu comportamento no dia a dia que os focos em si se concentraram. Na memória mais imediata estão episódios como a acusação pública a George Bush, depois da passagem do devastador Katrina, a subida a palco nos MTV Video Music Awards, em 2009, descurando a vitória de Taylor Swift na categoria de Melhor Vídeo Feminino (que, segundo, West, deveria ter ido para Beyoncé) e, mais recentemente, o apoio a Donald Trump.

É muito provável que Kanye West já não consiga, no fundo, viver na penumbra, sufocado pelo garrote do bom senso e do politicamente correcto. Quando quebra esse silêncio, nem sempre o faz da melhor forma, é verdade. Aliás, conta-se pelos dedos de uma mão apenas as vezes em que as suas palavras são consensuais. A questão aqui é simples: andará ele em busca de unanimidade ou ruptura? Catalogá-lo simplesmente como louco é escolher um caminho demasiado fácil para alguém com tamanha complexidade a nível artístico e pessoal. Ninguém sabe o que vai na sua mente. Nem ele próprio. E talvez seja essa a razão que o faz agir de modo tão impetuoso, sem filtros e condicionamentos externos. Desta vez não lhe correu bem, talvez corra numa próxima.

Uma coisa é certa: os assobios não o afligem. Não lhe causaram mossa nos segundos que antecederam a sua entrada em cena na Zambujeira do Mar, depois de ter deixado 45 mil pessoas à sua espera; também não será agora. Kanye vai continuar a concentrar em si as atenções, como de costume e à imagem da inesquecível e omnipotente aparição de 2011.

 


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