[TEXTO] Manuel Rodrigues [ILUSTRAÇÃO] Riça
No dia 4 de Outubro de 2011, Kendrick Lamar mostrou ao mundo “Cloud 10”, um tema que conta com a participação de Nosaj Thing, produtor norte-americano de descendência coreana que agrega também no seu currículo participações com artistas como Chance The Rapper e Kid Cudi. O seu portefólio de remisturas é invejável. Flying Lotus, The XX e How to Destroy Angels são alguns dos nomes mais sonantes de uma lista variada e extensa. Isto tudo para não falar dos quatro álbuns de originais que, desde 2009, vão cimentando a sua carreira. “Cloud 10”, que nasceu de uma colaboração proposta pelo Windows Phone, é uma pérola que nasce em pleno reinado de Section.80, a primeira obra de longa-duração de Kendrick Lamar, ainda em período pré-good kid m.A.A.d. city, quando este ainda andava longe das bocas de todo o mundo.
“When the sun fall out the sky
All I have is me in the land of do or die
A freeway, a gas pedal, and a peace of mind
Now, that’s the ultimate high
To the cloud I go, cloud I go
One time, baby tell me ya need me
Cloud I go, cloud I go
Two time, baby tell me ya love me”
O tema mostra um Kendrick Lamar mais introspectivo, a reflectir sobre si e, no fundo, sobre o mundo que o rodeia e as relações interpessoais – o verso “cause I’ve been drinking too much, thinking too much/ we ain’t been keeping in touch/ fell into lust, where is the love?/ my independency got tendencies of lack of trust” ainda continua a ser das melhores tiradas desta fase de K.Dot. O instrumental, por sua vez, coloca em evidência todo o talento de Nosaj Thing na manipulação de sintetizadores, num resultado magnetizante que nos transporta para uma densa e agradável nuvem de reflexão. “Cloud 10” é dos tesouros mais bem guardados desta dupla norte-americana. Todavia, existe outra característica que une o rapper ao produtor e que se estende muito além da mera colaboração a nível musical.
No dia 16 de Julho de 2016, Kendrick Lamar apresentou-se pela segunda vez em Portugal, num concerto inserido no festival Super Bock Super Rock. O rapper superou as expectativas com a mestria de alguém que já há muito desenvolveu uma elevada competência no exercício ao vivo – tome-se como exemplo as actuações nos programa de Ellen DeGeneres, Stephen Colbert e Jimmy Fallon, sem esquecer, claro, as prestações nos GRAMMYs e Video Music Awards, nas quais o músico se transcendeu completamente, deixando tudo e todos boquiabertos e contribuindo para que as críticas positivas se multiplicassem em parágrafos na manhã seguinte. Ainda hoje não parecem existir grandes dúvidas em torno das qualidades performativas do homem de To Pimp a Butterfly.
Regressemos à sua passagem pelo nosso rectângulo à beira-mar plantado. Kendrick Lamar trouxe ao Parque das Nações um alinhamento incrível que, para além de revisitar momentos importantíssimos da sua carreira, ainda serviu as exigências de quem apenas conhecia os singles mais badalados. Por norma, estes concertos de grande dimensão vêm acompanhados de um espectáculo audiovisual repleto de cenários dinâmicos, luzes robotizadas, conteúdo vídeo, canhões de fumo e, nalguns casos mais exagerados, bonecos insufláveis, trapezistas, botes salva-vidas, trampolins gigantescos e passadeiras de fitness. Em Portugal e na sua digressão toda em geral, Lamar fez-se valer apenas de uma frase exibida no ecrã gigantesco montado à sua retaguarda: “Look Both Ways Before You Cross My Mind”. As palavras (que ali se mantiveram do início ao fim da actuação) são de George Clinton.
Também Nosaj Thing actuou de forma sóbria e mensurada no concerto que integrou a edição deste ano do Lisboa Dance Festival. O músico não precisou de recorrer a grandes artifícios visuais, apostando única e exclusivamente numa luz strob, que acendeu e apagou no compasso das músicas, e num raio laser, que furou a sala de uma ponta a outra com uma dinâmica policromática. O concerto, apesar de ter acontecido numa dimensão bem mais reduzida daquela que viu Lamar vencer na ainda denominada MEO Arena, partilhou o mesmo sentimento: a vontade de concentrar as energias todas do público naquilo que o artista apregoa em palco, venha essa mensagem em forma de palavras ou em variações melódicas de sintetizador. Nosaj Thing conseguiu ser hipnótico, ao ponto de convidar a plateia para uma viagem ao longo de um mar de sensações que teve como principal veículo o ouvido.
Num mundo onde cada vez mais se querem baralhar os consumidores a partir da manipulação dos sentidos (veja-se os casos de bandas como os Muse, Metallica, Coldplay e U2, que insistem em camuflar a ausência de ideias nos mais recentes trabalhos com artifício desenfreado), valham-nos artistas capazes de trazer o seu trabalho a palco sem precisarem de o levar antes a um solário ou a um estúdio de maquilhagem. Kendrick Lamar e Nosaj Thing, cada um no seu estilo e cada um com a sua dimensão mediática, são um excelente exemplo disso. Janelo da Costa, dos Kussondulola, dizia que “quando a música é boa, a gente toca ela duas vezes”. É caso para dizer que quando a música é boa, vale por si própria, quer tenha ou não acessório decorativo: podemos dar-nos ao luxo de a tocar duas vezes, das duas formas. E essa é talvez a característica que mais aproxima Nosaj de Lamar.