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Publicado a: 26/09/2018

Crónicas de um HipHopcondríaco #12: A maldição laranja

Publicado a: 26/09/2018

[TEXTO] Manuel Rodrigues [ILUSTRAÇÃO] Riça

Iniciou-se em 1959 (apesar de existirem documentos que apontam para 1955) e só findou a 30 de Abril de 1975, quase 20 anos depois. A guerra do Vietname é um dos episódios mais sangrentos da história da humanidade e, por conseguinte, um dos que mais mazelas deixou na sociedade em geral. Até aos dias de hoje, não foi possível determinar um número certo de mortos no confronto, cujo palco se estendeu também ao Camboja e a Laos, no entanto, e apesar dos valores diferirem de estudo para estudo, estima-se que tenham sucumbido entre 1,4 e 3,5 milhões de pessoas, das quase 600 mil vítimas de democídio.

A Guerra do Vietname esteve envolva em bastante polémica. Não apenas derivada à chacina de inúmeros militares e civis, mas também devido ao uso de armas químicas, como o Napalm, um letífero conjunto de líquidos inflamáveis, e, claro, o tão nefasto Agente Laranja, um casamento entre dois perigosos herbicidas que teve como principal objectivo desfolhar a floresta vietnamita. Cerca de 4,8 milhões de pessoas foram expostas ao Agente Laranja, responsável por malformações congénitas, cancros e problemas neurológicos ao longo de três gerações. Por ter sido intensamente acompanhada pela comunicação social, que levou até aos olhos do mundo os cenários de devastação e imagens quase em directo de confrontos e execuções, esta foi uma guerra mal aceite no seio da opinião pública, resultando em várias manifestações e pedidos de retirada das tropas norte-americanas do território asiático.

Mas o drama da guerra do Vietname não se ficou apenas pelo que aconteceu no terreno e estendeu-se às famílias dos soldados enviados pelos Estados Unidos para defender a facção sul, que tinha como principal missão derrubar o norte comunista. Em “Vietname”, o artista Jimmy Cliff explora o drama de uma mãe que espera pelo regresso do soldado que um dia embarcou numa viagem sem regresso marcado. “Orange Crush”, dos R.E.M, “Saigon Bride”, de Joan Baez, “Search and Destroy, dos The Stooges, “We Gotta Get Out of This Place”, dos The Animals, “What’s Going On”, de Marvin Gaye, e “Goodnight Saigon”, de Billy Joel, são outras canções que encontraram inspiração no confronto que carimbou irremediavelmente os anos 60 e 70.

De todas as músicas sobre a Guerra do Vietname que ouvi até hoje, houve uma que me marcou particularmente: “Uncommon Valor: a Vietnam Story”, dos Jedi Mind Tricks, colectivo de hip hop da Filadélfia, Pensilvânia, constituído pelo rapper Vinnie Paz e pelo produtor Stoupe the Enemy of Mandkind – o grupo chegou a integrar um terceiro membro, Jus Allah (1998-2001, 2006-2013), e conta ainda, desde 1997, com a ajuda de DJ Kwestion, nos gira-discos. Tornado público em 2006, como parte do álbum Servants in Heaven, Kings in Hell, “Uncommon Valor: a Vietnam Story” é um intenso e envolvente storytelling que mergulha a fundo no drama da também conhecida como Guerra de Resistência Contra a América.

Na canção, Vinnie Paz veste a pele de um soldado que abraça reticentemente uma luta contra um inimigo que nem ele próprio consegue definir, uma ameaça fantasma que o leva a matar pessoas inocentes, frente-a-frente, cara-a-cara, impulsionado pelo capricho de um governo que, como o próprio revela na carta que recebe de sua mãe, “não se preocupa” com a sua vida e a dos seus colegas. Paz fala ainda sobre o medo de estar no terreno, a constante banda sonora de explosões e bombardeamentos, as saudades de casa e da sua família e, claro, mais importante que tudo, o receio de não voltar vivo à sua pátria, sentimentos estes que pautaram esta tão traumática guerra e que poderão facilmente ser testemunhados em relatos na primeira pessoa e comprovados em películas como Apocalipse Now, De Francis Ford Coppola, e Nascido Para Matar, de Stanley Kubrick.

“Uncommon Valor: A Vietnam Story” conta ainda com a participação de R.A. The Rugged Man, rapper de Nova Iorque que já trabalhou com artistas como Mobb Deep, Wu-Tang Clan e Kool G Rap. Na sua contribuição, R.A. aloja-se na mente e no corpo de um soldado possuído pela vontade de perseguir, matar, pilhar e violar em nome de um ideal militar que, mais do que defender a bandeira, assenta numa necessidade quase vital de dizimar indiscriminadamente. Ao longo dos seus versos, cuspidos na cadência de uma nervosa e letal metralhadora, R.A. traça o percurso de John A. Thorburn e da sua corporação até ao momento em que são surpreendidos por uma guerrilha de Vietcongs. A narrativa desenvolve-se até ao momento em que acorda numa cama de hospital, vivo. O que Thorburn não sabe, no preciso momento em que abre os olhos, é que nem ele nem a sua família se encontram livres de perigo, altura em que percebemos também o porquê da narração de R.A. soar tão forte e autêntica: trata-se, na verdade, da história do seu pai.

A participação de R.A. The Rugged Man em “Uncommon Valor: A Vietnam Story” ergue-se como uma espécie de património das histórias rimadas. Em 2006, o site HipHopDX classificou o versos do rapper de Nova Iorque como sendo os melhores desse ano. Palavras para quê? O melhor mesmo é ouvir.

 


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