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Ilustração: Riça
Publicado a: 20/05/2020

Do hip hop para qualquer lado: Crónicas de um HipHopcondríaco é da autoria de Manuel Rodrigues.

Crónicas de um HipHopcondríaco #46: Canis lupus familiaris

Ilustração: Riça
Publicado a: 20/05/2020

“A música pop tornou-se numa paródia de si própria nos anos oitenta e os Nirvana apareceram como forma de devolver a crueza. X foi o equivalente dos Nirvana no universo hip hop e a antítese da direcção mais pop que o rap estava a tomar na altura. A era dos ‘fatos brilhantes’ teve o seu impacto, mas milhões de pessoas ansiavam por algo mais real e X foi o único que teve a coragem de as levar lá”. As palavras são de Dame Grease, produtor de DMX, e poderão ser encontradas na recta final do artigo The Secret History Of DMX’s ‘It’s Dark and Hell Is Hot’, publicado no Okayplayer em 2018, ano em que o álbum de estreia do rapper completou o seu vigésimo aniversário.

São sempre interessantes estes artigos que mergulham nas águas mais secretas dos álbuns lançados há uma dezena ou vintena de anos. É quase como se adicionassem uma página extra à história de, neste caso, uma obra que só por si deixou uma importante marca na cronologia. Vou ser já sincero: nunca fui grande fã de DMX. Nem nunca me dei ao trabalho de me embrenhar a sério na sua obra. Talvez por ter preferido centrar a minha atenção no património de artistas como 2Pac, Biggie, Snoop Dogg, Dr. Dre, Jay-Z, NAS e Wu-Tang Clan. Talvez por nunca ter ido muito à bola com o timbre de Earl Simmons e com o seu conteúdo lírico. Talvez porque não estava simplesmente para aí virado. Contudo, lembro-me bem, os álbuns It’s Dark and Hell Is Hot e Flesh of My Flesh, Blood of My Blood bateram imenso na minha escola, ao ponto de ter enjoado de ouvir “Ruff Ryders’ Anthem” — soube recentemente, através do já citado artigo, que DMX se mostrou desde início bastante reticente com o instrumental da autoria de Swizz Beatz. “Meu, isto soa a tema de rock ’n’ roll”, ter-lhe-á dito o rapper. “Eu preciso de algo que soe a hip hop. Não vou fazer isto. Não é suficientemente do bairro”. Não obstante a insistência por parte do produtor, DMX só aceitara rimar sobre o beat depois de convencido pelos irmãos Darrin e Joaquin Dean, os proprietários da Ruff Ryders.

Faz algum sentido o paralelismo que Dame Grease estabelece na frase citada no início deste texto. Numa década em que a cultura perdera dois dos seus principais símbolos, 2Pac e Biggie, e na qual, no seu entender, o hip hop havia tomado uma direcção mais pop, DMX erguera-se em contramão, arrastando legiões consigo. It’s Dark And Hell Is Hot vendeu mais de cinco milhões de cópias e alcançou o patamar de disco de platina. Meses depois, Flesh of My Flesh, Blood of My Blood tornava-se multi-platina e instituía DMX como o primeiro rapper de sempre a coleccionar dois álbuns platinados no mesmo ano. No ano seguinte, Earl Simmons actuava no festival Woodstock perante uma plateia de 400 mil pessoas que não se inibiu de formar mosh pits e de cantar as letras do músico norte-americano. Um verdadeiro salto do zero para a ribalta.



Há duas curiosidades interessantes em torno de It’s Dark and Hell Is Hot. Primeiro, o episódio que levou Lyor Cohen, da Def Jam, a ligar a Phil Collins para o informar da vontade de DMX rimar sobre um sample de “In the Air Tonight”, que precisaria ser “limpo” (de instrumentos ou vozes, como forma de facilitar o corte e costura). Collins, que até à data nunca fizera tal coisa por um rapper, ouviu a letra que DMX preparara para depositar na música e ficou de tal forma impressionado que tratou de abrir a primeira excepção na matéria. Assim nasceu “I Can Feel It”, uma das derradeiras faixas do disco. Segundo, a conversa entre X e Deus que pauta “The Convo” e que serviria de impulso para “For Sale? (Interlude)”, de Kendrick Lamar, presente em To Pimp a Butterfly. Não obstante a diferença na abordagem, as fundações do prodígio de Compton remontam a esse clássico de 1998.

DMX tinha como particularidade conseguir imitar — e bem, diga-se de justiça — o rosnar e o ladrar dos cães, algo que pontua algumas das suas mais emblemáticas faixas. Na sua vida de rua, algures entre os roubos e a venda de droga como sustento, isto ainda na adolescência, DMX terá construído fortes laços com cães vadios, alimentando-os e garantindo-lhes a sobrevivência. Desde então que a ligação com o animal de estimação se tornou numa bandeira, chegando a levar pitbulls para as suas sessões de estúdio — nessa altura, o artista transformava os espaços em autênticas réplicas do exterior, com barbearias de bairro e malta a fumar erva. “Encarnámos as ruas”, diz-nos Grease. É essa relação com o mundo canino que Joaquin Dean, também conhecido como Waah, evoca quando recorda a sessão de gravação de “Get At Me Dog”, na qual DMX chegou mesmo a roer ossos para cães antes de simular os latidos, como forma de entrar na personagem e criar uma energia singular na música. “Garanto, ele transformou-se verdadeiramente num cão”, assegura Waah.

Nos seus momentos de raiva, Kurt Cobain desatava a partir guitarras, como nos relatam vários vídeos das actuações dos Nirvana. DMX preferia reproduzir o som de um cão raivoso. Diferentes formas de dar uso às suas “cordas”, sem dúvida alguma.


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