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Ilustração: Riça
Publicado a: 22/04/2020

Do hip hop para qualquer lado: Crónicas de um HipHopcondríaco é da autoria de Manuel Rodrigues.

Crónicas de um HipHopcondríaco #44: Sete anos depois…

Ilustração: Riça
Publicado a: 22/04/2020

Os reencontros geram quase sempre surpresas, algumas agradáveis outras nem tanto. Quando nos distanciamos de forma natural ou mesmo forçada de um amigo ou familiar e nos voltamos a cruzar passados uns bons anos, corremos o risco de encontrar uma pessoa diferente — ou de nós próprios termos mudado de tal forma que a pessoa do outro lado terá dificuldade em reconhecer-nos. Também se pode dar o caso de continuar tudo igual mas, muitas vezes, ocorre o inverso. Essa mudança pode acontecer de uma forma superficial (aparência, indumentária, estatura – tudo o que tenha ver com aquilo que salta à vista) ou profunda (comportamento, atitude, ideais políticos, linguagem — tudo o que implique uma radiografia). O mesmo se sucede com os artistas que por uma razão ou outra deixamos de seguir. Quando a curiosidade ou o acaso nos leva de volta a um músico que perdemos na linha temporal por variadíssimas razões, somos por vezes surpreendidos com o trajecto que este tomou ao longo dos anos de afastamento. E isso poderá pender tanto para o lado positivo como para o negativo — também há os casos em que continua tudo igual, inerte, prova de que não houve qualquer alteração no seu código genético. Estas serão, contudo, as circunstâncias mais raras.

Regressemos a Março de 2013, ano em que Gavlyn se estreou em Portugal. O concerto, ao qual tive oportunidade de assistir e sobre o qual escrevi para o extinto Palco Principal, aconteceu no malfadado Ritz Clube, espaço que reabriu em Maio de 2012, depois de 12 anos de portas trancadas, para voltar a encerrá-las definitivamente em Maio de 2013, ou seja, exactamente um ano depois do regresso à actividade (na altura, os proprietários do espaço informaram que a sala de espectáculos fecharia para obras, no seguimento de várias queixas relacionadas com o ruído, mas, desta vez, a reabertura não voltou a acontecer, tendo o edifício sido colocado à venda em 2016 por três milhões de euros). O Ritz Clube era, para quem não se lembra ou nunca teve oportunidade de lá colocar os pés, uma das mais encantadoras casas da capital, com uma fachada deslumbrante (sobressaíam as palavras “Tuna Comercial de Lisboa” com recorte tradicional) e um belíssimo interior de cabaret capaz de deixar qualquer um rendido. Era mágica a escadaria que conduzia à sala propriamente dita mas eram igualmente fascinantes os tons de vermelho que tingiam paredes, cortinas e a própria alma de quem lá entrava.



A actuação de Gavlyn teve um particular simbolismo. Além de ter acontecido a 8 de Março, Dia da Mulher, foi o único espectáculo de hip hop que vi no Ritz Clube, cujo manual de conduta parecia quase sempre procurar expressões mais “aguitarradas”. Na altura, estava completamente vidrado em From The Art, álbum de 2012 que continha o explosivo “What I Do”, um dos mais importantes documentos de identidade da rapper. Foi um concerto intenso, repleto de instrumentais boom bap arremessados por DJ Dubplates e rematados pelo flow coeso e assertivo da anfitriã da noite, que teve direito a casa cheia. From The Art carregava uma alma californiana e tinha na linguagem articulada um espírito bairrista muito próximo dos artistas que na altura idolatrava. Era sample, batida e voz, puro e duro, sem margem de desvio e sem qualquer tipo de trabalho de refinaria. Uma verdadeira bomba das ruas para as ruas. O grande mal de Gavlyn, a meu ver, foi não se ter conseguido reinventar nos álbuns que se seguiram e ter continuado a tocar na mesma tecla que, no meu entender, acabou por se tornar cansativa. O problema não foi obviamente o percurso artístico que decidiu traçar ou insistir, mas sim aquilo que eu procurava como ouvinte. Seguimos caminhos diferentes.

No passado fim-de-semana, já não me lembro por que razão, decidi dar uma vista de olhos no repertório da artista. Eis senão quando me deparo com “Stepping Stones”, um single editado a 17 de Abril e a milhas daquilo que eu conhecera em 2012/2013. Batida house em cama de teclas e pormenores que apontam para a pista de dança? Mimo. O tema foi o gatilho para estudar a matéria em atraso, que se revelou uma surpresa consideravelmente boa. Ao longos destes anos, Gavlyn libertara-se dos cânones mais tradicionais e abraçara um novo conjunto de sonoridades, longe da simples junção de rima e batida. O boom bap continua lá, como é óbvio, mas há outras variáveis na equação. “Distance”, por exemplo, tem o seu quê de grime e UK bass; “Pass That” traz à memória os tempos “Slim Shady” de Marshall Mathers; “Creative Muscle” situa-se algures entre Cardi B e Iggy Azalea; “Needs”, que teve direito a interpretação no famoso A COLORS SHOW, tem alma moderna e adaptada ao ambiente de clubbing; “We On”, tema que conta com mais de seis milhões de visualizações no YouTube, é essencialmente bombo, tarola e cordas mas está também ele muito ligado ao presente; por fim, “Sad Grl”, com vídeo gravado em Londres e a captar a essência musical do undergound da capital britânica. Este é um daqueles casos em que a reconexão com um artista surtiu um agradável resultado. O radar vai estar em alerta para a chegada de um novo álbum.


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