Na passada sexta-feira, desloquei-me até ao Sabotage, no Cais do Sodré, para ver NERVE. Foi um espectáculo intenso, recheado de visitas ao seu repertório discográfico e rematado, já perto do final, por uma vertiginosa interpretação de “Tríptico”, maratona musical que divide com Il-Brutto, produtor que não só marcou presença no tempo regulamentar da prestação de NERVE como também garantiu o aquecimento para a noite com uma selecção de beats sombrios e carregados de negrume. Um concerto para mais tarde recordar. NERVE foi exímio da entrega de rimas, com um rigor digno de vénia – imaculada a forma como, por exemplo, entregou o dificílimo “Tríptico” – e uma sublinhada preocupação para que a sua voz viajasse por entre os circuitos de filtro de frequências e se aproximasse das versões que conhecemos em álbum. Sem espinhas.
Esta foi, contudo e muito possivelmente, a última vez que Tiago Gonçalves subiu ao pequeno palco do espaço sito no número 16 da Rua de São Paulo. Como é de conhecimento geral, o Sabotage prepara-se para encerrar portas e rumar a novo destino. Em Novembro de 2018, o proprietário do prédio onde se encontram, a empresa UP Down Lisbon Lda, do grupo Mainside Investments, comunicou que o clube teria que deixar o local. Uma notícia do jornal Público em Setembro de 2019 dava conta que essa saída estaria dependente “do início dos trabalhos de transformação do prédio em alojamento turístico”, para os quais ainda estavam na altura pendentes as devidas autorizações – o mesmo grupo era proprietário do Lx Factory, o qual foi vendido ao grupo francês Keys Asset Management, e do prédio onde situava o Bar Oslo, que entretanto também fechou portas. A 17 de Fevereiro, o Sabotage recorreu às redes sociais para comunicar a sua incerteza quando ao novo paradeiro, nestas que são as derradeiras semanas antes do forçado êxodo. “A nossa procura num novo imóvel onde possamos realojar este projecto ainda não foi bem-sucedida e o tempo está a correr contra nós”, revelam. Na origem desta indecisão estará, naturalmente, os preços astronómicos das rendas na capital.
Esta é uma consequência clara da especulação imobiliária de que está a ser alvo Lisboa – outras cidades, como o Porto, estarão a sofrer com a mesma destrutiva epidemia. A elevada procura não só a nível turístico mas também de investidores nacionais e internacionais levou a este insano e descontrolado disparo no valor das rendas e a que muitos estabelecimentos comerciais e de diversão nocturna, dada a impossibilidade de dispensar o capital pretendido, fossem obrigados a encerrar portas – em alguns casos, recebendo ordens de despejo. Bares, discotecas, cafés, restaurantes, mercearias, associações, comércio tradicional e de riqueza histórica e familiar. Os casos multiplicam-se e não parece haver quem saia realmente impune à guilhotina da gentrificação. Falo de espaços públicos, como o Sabotage, mas o exemplo estende-se ao arrendamento particular. Desencantar uma renda em Lisboa que se adeqúe ao salário médio nacional (já nem falo do mínimo, como é óbvio) é utópico, anedótico. O valor de um apartamento há meia dúzia de anos equivale agora ao preço pago por um quarto.
Facilmente se poderá atirar o peso da gentrificação para as costas do turismo e para a hegemonia de plataformas como o Airbnb ou até das restantes alternativas de alojamento turístico. Contudo, não sendo aqui hipócrita, até porque gosto de viajar e, nesse seguimento, ter um leque de opções à minha disposição – além de ter amigos que fazem do Airbnb a sua principal fonte rendimento –, o problema, parece-me a mim, está na selva em que esta actividade se tornou, sem qualquer tipo de freio ou senso comum. E a culpa é de quem governa. Em Portugal, vivemos escravos do turismo, não existe um pingo de ponderação nas decisões tomadas, é tudo feito em prol da boa apresentação do país nos catálogos das empresas de turismo e nos rankings internacionais da área. Queremos ficar bem na fotografia, mas será a imagem de cidades completamente submissas ao turismo o melhor retrato que temos para oferecer de Portugal? Em Berlim, face à escassez de apartamentos para arrendar por longos períodos e o aumento do valor das rendas, entraram em vigor em 2016 leis que proíbem o arrendamento por inteiro de apartamentos e casas através das demais plataformas, estando apenas disponível a reserva de quartos. “Com a ajuda de coimas elevadas”, garante o jornal Independent, “as autoridades alemãs esperam proteger o fornecimento de propriedade e manter o aluguer o mais baixo possível”. Entre outras, estas poderão ser algumas das medidas para salvaguardar a habitação.
Em Fevereiro de 2016, marquei presença nas duas noites de NERVE no Lusitano Clube, em Alfama, uma reportagem que poderão encontrar nos arquivos do Rimas e Batidas. Um ano depois, o espaço encerraria para dar lugar a apartamentos de luxo. Reabriu passados meses com nova localização. Na sexta-feira, reencontrei-me com NERVE, em nova missão de reportagem. O Sabotage prepara-se também ele para fechar portas, ainda sem futuro definido. Uma triste coincidência para o rapper português, de facto. Até quando esta novela lisboeta?
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