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Ilustração: Riça
Publicado a: 31/07/2019

Do hip hop para qualquer lado: Crónicas de um HipHopcondríaco é da autoria de Manuel Rodrigues.

Crónicas de um HipHopcondríaco #26: Adeus, chef

Ilustração: Riça
Publicado a: 31/07/2019

E, de repente, o mundo ficou mais pobre. Ras G abandonou-nos há dias (ainda não se sabem ao certo quais as causas da morte), deixando para trás uma discografia brilhante e ímpar, quase sempre ligada ao cosmos e influenciada pela obra e personalidade de gigantes como Sun Ra e George Clinton – em conversa com a Merry Jane, no ano passado, o artista chega a afirmar que estes são os seus anciãos e ancestrais da criação. “Nós comemos a fruta e fumamos a erva dos mesmos campos da grande criação negra. Acima de tudo, eu sinto que o que eu faço é simplesmente um continuum actualizado das suas grandes demonstrações neste planeta”.

Oriundo de Los Angeles, Gregory Shorter Jr, nome real, lançou trabalhos através de selos como a Brainfeeder e a Leaving Records, assinados simplesmente como Ras G ou como Ras G & The Afrikan Space Program. Foram muitos os artistas e editoras a reagirem à morte prematura do produtor norte-americano (tinha apenas 39 anos), de Flying Lotus a Thundercat, com os quais chegou inclusive a trabalhar, e da Stones Throw à Black Focus Records.

Ainda cheguei a escrever um par de parágrafos sobre Stargate Music, o 11º álbum do artista pela Leaving Records, para o meu blogue, Ritmoterapia. A notícia do desaparecimento do artista fez-me recuar a esse magnífico disco de 2008. Trata-se de uma obra conceptual, centrada no aparelho reprodutor feminino, mais precisamente no útero. Ao contrário do que possa parecer numa análise mais imediata e superficial, não existe no trabalho de Ras G qualquer intenção de vulgarizar o órgão sexual mas sim homenageá-lo, como o faz o quadro The Origin of the World, de Gustave Courbet, cujo título resume bem a ideia que se esconde por trás da pintura de óleo sobre tela, ou o tema “Nappy Dugout”, dos Funkadelic, ambos importantes referências para Stargate Music. “O útero é o grande portal da Humanidade”, explica o músico em comunicado oficial. “Eu juntei estes fragmentos de som e apresentei-os como um reflexo do ciclo de vida dos seres neste planeta”.

E é de facto um ciclo. Stargate Music inicia-se com “Primordial Water Formations 1”, uma introdução carregada de apontamentos de sintetizadores e efeitos especiais que nos trazem à memória uma sonda em processo de reconhecimento, em busca da vida; “Water Broken (The Opening Of The Stargate)” representa, como o próprio nome indica e à boleia de um ritmo ligeiramente mais acelerado que o anterior, a abertura do portal para preparar a chegada ao mundo, que acontece logo de seguida em “The Arrival”, onde se ouvem palmas e uma vocalização em tom de celebração, ao mesmo tempo que os sintetizadores e a bateria simulam um batimento cardíaco. “Quest to Find Anu Stargate”, “Intimate Reconnections 1st Invite (Ankh)”, “Is it Lust or Love” e “Infinite Possibilities” evocam todo o processo de desejo e sedução à boleia de batidas sensuais – sempre acompanhadas do cariz psicadélico e quase espacial dos sintetizadores – e efeitos polvilhados sobre confortáveis camas harmónicas, quase tão cómodas quanto o leito em que dois corpos efervescentes se poderão deitar. São muitas as pulsões vitais mas ainda mais a pulsão sexual. A líbido aqui é eximiamente retratada.

“Heaven is between her legs… (Iniciate the Return)” representa o regresso ao interior da vagina, onde tudo começa. A batida marca a cadência sexual, enquanto uma voz encena aquilo que poderá ser o acto em si, com as devidas pausas pelo meio, e a comunicação entre casal. Segue-se “The Great Return (racing seed)”, cujo nome não deixa margem para dúvidas: é a grande corrida do espermatozóide em direcção ao óvulo, também ela muito bem descrita com recurso a tempos e contratempos que espelham a urgência da chegada. À medida que a meta se acerca, surgem na mistura alguns sintetizadores que transmitem uma ideia de profundidade e aproximação. “Primordial Water Formations 2” regressa, por fim, à toada que abre o disco, encerrando assim o ciclo da mesma forma que este se iniciou.

Sobre o álbum e ainda para a Merry Jane, Ras G partilha: “eu fiz uns quantos temas no decorrer da minha carreira que articulam a mesma linguagem de Stargate Music, como ‘G Spot Connection’, do álbum Back On The Planet… mas em Stargate senti que precisava de servir uma refeição isolada do cardápio dos últimos anos. É uma prova de que apesar de cozinhar queijo grelhado todos os dias, ainda consigo fazer aquela comida de domingo carregada de alma”, conclui.

Só é pena que este cozinheiro nos tenha abandonando com tanto prato ainda por confeccionar. Não deveria ser permitido estes artistas fugirem do nosso planeta desta forma, tão cedo, com tanto para dar. Reconforta-me pensar que Gregory está neste preciso momento em parte incerta do universo a preparar saborosos pratos juntamente com o também extraterrestre Sun Ra.

Ras in Peace.


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