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Fotografia: Joana Domingues
Publicado a: 24/12/2021

No Sítio certo com a proposta certa.

Cíntia: “O que cola isto tudo é o facto de sermos os três muito abertos”

Fotografia: Joana Domingues
Publicado a: 24/12/2021

Tom Maciel, Simão Bárcia e Ricardo Oliveira respondem colectivamente ao nome Cíntia e acabam de se estrear com Sítio, trabalho lançado através do selo Cena Jovem Jazz.pt. Não é coisa de somenos e obriga a que se arranje lugar para o trio e para o seu primeiro registo nas listas que por esta altura reúnem o que de melhor o ano musical nos ofereceu a todos.

Estes músicos, todos muito jovens, cruzaram-se no Hot Clube e criaram o grupo como um exercício académico, para, muito literalmente, mostrarem trabalho no final de um ano lectivo. Mas o tal Sítio que criaram é nítido espaço de liberdade, laboratório de fusão ou de implosão de conceitos de onde saiu uma vibrante possibilidade de futuro. Importante vê-los agora em palco até para se poder comprovar o rasgo que levou o crítico Rui Eduardo Paes a inclui-los, há ano e meio, num artigo assinado aqui mesmo no Rimas e Batidas que dava conta de, e usando as suas palavras, “uma nova geração de músicos portugueses que estão a mudar o cenário do jazz criativo e da música improvisada em Portugal, introduzindo-lhe não só uma bem-vinda lufada de ar fresco como novas sonoridades, novas referências e, acima de tudo, uma energia que abriu já de par em par as portas do futuro”. Foi a energia que Paes identificou nos Cíntia, aliás, que lhes abriu as portas para a entrada no catálogo da Cena Jovem.

Em conversa mantida via Zoom, o teclista Tom Maciel, o guitarrista Simão Bárcia e o baterista Ricardo Oliveira discutem a sua formação académica e a criação de Sítio, álbum que, na coluna Notas Azuis, garantimos ser “mais uma séria adição a um esforço amplo de ampliação das margens do jazz contemporâneo nacional, um exemplo de criativa dispensa dos cânones em favor de uma busca de benignas vias de contaminação do pulsar espontâneo do jazz com ideias captadas noutras paragens”.



Em primeiro lugar, gostava que se apresentassem. Estava à espera de vos encontrar aos três no mesmo espaço mas vejo que estão todos em sítios diferentes. Onde estão e como é que chegaram até aqui [risos]?

[Tom Maciel] Eu estou na minha casa e imagino que cada um deles esteja também na sua respectiva casa.

[Simão Bárcia] Sim.

[Ricardo Oliveira] Ya.

Vivem todos em Lisboa?

[Tom Maciel] Não. Eu vivo em Oeiras. O Ricardo vive em S. João do Estoril e o Simão vive no “coração” de Arroios [risos]. Como chegámos aqui? Nós nos conhecemos no Hot Clube. Estávamos a estudar lá. Essa foi a minha primeira experiência escolar em Portugal. Eu cheguei em 2016, quando terminei o 12º ano em São Paulo. Vivi lá a minha vida toda. Com 18 anos vim com meus pais para cá, um bocado contrariado. Mas não demorou muito a gostar da ideia [risos]. Eu estava sem saber o que queria fazer. Sabia que queria tocar e que queria ser músico. Quando estava no secundário, era algo a que eu não dava tanta prioridade. Tinha outras coisas para fazer. Apesar de já tocar há alguns anos e de ter tido algumas bandas. Quando cheguei cá, alguém me indicou o Hot Clube. Eu cheguei em Fevereiro de 2016 e fiz umas férias aqui até Setembro, quando entrei no curso regular. No Hot conheci o Simão e o Ricardo. Nós fizemos algumas cadeiras juntos e estávamos todos na big band do Hot. Eu e o Simão fizemos parte de um projecto que era uma banda de covers de Snarky Puppy, a convite de um amigo nosso que na altura era muito fã de Snarky Puppy [risos]. Pessoalmente, não era muito a minha cena. Mas lembro-me de estar sedento de projectos e foi fixe porque deu para conhecer muita malta com quem eu hoje toco muito e tal. Foi isso. Eu e o Simão começámos Cíntia com outro baterista, que era o Luís Possolo, um colega nosso, super baterista, que foi estudar para Amsterdão mas que, entretanto, já regressou a Lisboa. Depois dele ter ido estudar para fora, nós passámos por algumas formações diferentes até chegar a esta final. Parece-me que é a definitiva [risos].

[Simão Bárcia] Ya [risos].

[Tom Maciel] O Ricardo entrou em 2018. Não é?

[Ricardo Oliveira] Entrei em 2018.

Tu, Tom, estás com 23 anos?

[Tom Maciel] Eu acabei de fazer 24.

E tu, Simão?

[Simão Bárcia] Eu tenho 23.

E estás no coração de Arroios, é isso?

[Simão Bárcia] Eu moro mesmo em cima da Casa Independente. Mesmo ao lado.

E o teu percurso é parecido com o do Tom? Começa no Hot Clube?

[Simão Bárcia] É parecido, sim. Também sempre tive bandas, mesmo antes do Hot Cube. Eu já tocava guitarra há algum tempo e sempre tive aquela cena de querer ter a minha banda. E tive uma data delas [risos]. Quando começámos Cíntia, eu estava em mais umas três, ao mesmo tempo. Todas elas com diferentes graus de seriedade. Havia coisas que serviam mais para estar numa de experimentar com amigos, o que é fixe. Os Cíntia surgem, se não me engano, no último ano do Hot Clube. Nós temos de fazer um recital para o instrumento, que depois é apresentado ao vivo mesmo no clube. Chegou o último ano e eu decidi que queria escrever originais. Essa era a cena que eu gostava de fazer. Escrevi dois, mostrei ao meu prof e ele disse, “meu, isso é bué fixe”. Lembrei-me do Tom, que eu já conhecia da big band e do tal projecto dos Snarky Puppy, e lembrei-me do Luís Possolo, que estava comigo no combo. Convidei-os aos dois. Eu estava com aquela cena do trio sem baixo. Juntamo-nos e fomos fazer o recital.

O Ricardo acaba por ser a última “contratação”. Que idade tens?

[Ricardo Oliveira] Tenho 23, também.

E também fizeste formação no Hot Clube.

[Ricardo Oliveira] Sim. Estive no Hot Clube e foi lá que os conheci a eles. Depois disso, fiz o Conservatório. Agora estou a tirar a licenciatura na Escola Superior de Música, onde eles já se licenciaram. Ou seja, nós acabámos por seguir praticamente o mesmo percurso. Passámos praticamente pelas mesmas instituições.

Dentro dessas instituições, aconteceu cruzarem-se com algum professor mais marcante?

[Simão Bárcia] Vários.

[Tom Maciel] Para mim, nem foi uma professora que era “minha”. Eu acompanhava as cantoras nas aulas da Maria João. As aulas da Maria João… São fora-da-caixa! Mas as aulas não eram direccionadas para mim e eu ia para lá com um papel mais artístico. Foi bom para o meu desenvolvimento artístico, mais do que aprender técnicas ou assim. Eu estava lá apenas para fazer com que as coisas soassem bem com uma cantora e, ao longo do meu percurso na ESML, acompanhei muitas. Foi muito importante para mim, ter uma aula em que a proposta fosse eu ter um produto que fosse criativo, sem seguir fórmulas. E a Maria João é uma professora que não passa técnica nem tem um método muito erudito. É uma coisa que funciona muito pelo ouvido, a mostrar as referências e a procurar ideias novas. E ela está sempre muito animada para fazer as maluqueiras todas que a malta propõe. Essa professora marcou-me. Mas também tenho o João Paulo [Esteves da Silva], meu professor de piano na ESML. Foi um grande guru. Ele tinha uma proposta mais ou menos idêntica à da Maria João. Desviava-se daquela minha ideia de eu estar à procura de um método. Encontrar professores que não tinham propriamente um método… [Nas aulas] havia os momentos da conversa ou da reflexão sobre que percurso tomar. Por esse motivo, esses foram os dois professores que me marcaram assim.

E tu, Ricardo?

[Ricardo Oliveira] Eu diria que o professor que mais me marcou foi o Bruno Pedroso, também na ESML. Por acaso, o ano em que ele me marcou mais foi quando entrámos em confinamento e eu estava a ter aulas de bateria por videochamada no WhatsApp. O que acabou por marcar mais nesse período foi precisamente o falar sobre as inseguranças todas que às vezes temos enquanto músicos. Falar com alguém que já passou por isto tudo, que já fez a “travessia do deserto”, ajudou-me imenso a mudar a minha perspectiva e a não ser tão paranóico com as pequenas coisas. Portanto, diria que o Bruno Pedroso foi quem mais me abriu a vista.

Faltas tu, Simão.

[Simão Bárcia] Antes de mais, tenho de referir o nome do meu professor de guitarra, Sérgio Pelágio, com quem comecei a ter aulas antes de entrar no Hot. No Hot, ele foi meu professor durante mais de três anos e encorajou-me imenso nas questões da composição. E eu estava no Hot, mas o que eu queria era rock. O rock é mais a minha cena [risos]. Lembro-me de tentar forçar e ele dizer-me “não vale a pena. Se sentes isso, arranja maneira dessa cena sair cá para fora, porque isso é valioso”. Foi super fixe. As últimas aulas que tive com ele eram só experiências. Eu trazia os pedais e ele, “experimenta aí uma cena e vamos ver o que acontece”. Isso foi bué fixe. Na ESML, onde frequentei o curso de composição, houve alguns professores que me marcaram. A professora de formação auditiva, Manon Marques, no segundo ano, foi incrível. Nós entrávamos na sala dela e aquilo era uma aula em que toda a gente estava super-descontraída. Não havia tensão nenhuma. Ao mesmo tempo, era a aula em que toda a gente trabalhava mais. Havia uns quebra-cabeças musicais que nos deixavam com fumo a sair da cabeça. Era fixe para desbloquear certas coisas. Também tive o professor Carlos Caires, que me introduziu no mundo da electrónica. Essa parte acabou por entrar para os Cíntia.



Já li entrevistas com vários músicos americanos que quando se referem ao seu percurso académico mencionam a cadeira de Music Appreciation que normalmente implica pura e simples audição de música, de álbuns inteiros. Vocês cruzaram-se com alguma disciplina desse género?

[Simão Bárcia] Eu diria que sim.

Onde? Na Escola Superior de Música de Lisboa ou no Hot Clube?

[Ricardo Oliveira] Diria que isso aconteceu mais no Hot Clube.

[Simão Bárcia] Sim, foi no Hot Clube.

[Tom Maciel] Foi no Hot. Por acaso, quando me perguntaste qual tinha sido o meu professor marcante, quase disse esse.

[Simão Bárcia] O Afonso Pais?

[Tom Maciel] Não. Tu tiveste com o Afonso Pais, mas eu tive com o Luís Cunha.

[Simão Bárcia] Mas eles são ambos incríveis.

[Tom Maciel] A disciplina era História do Jazz Contemporâneo. Uma passagem para o infinito. Porque o jazz contemporâneo é uma coisa muito vasta e meio que podia ser qualquer coisa. Acho que o mote dessas aulas era exactamente isso. Tinham a duração de, acho, uma hora e meia. Era basicamente sentar na sala maior do Hot — tinha uma acústica engraçada; meio esquisita; não muito boa [risos] — e ouvir discos inteiros. Depois de ouvir os temas propostos, falávamos sobre a música de um ponto-de-vista não muito técnico. Era mais contextualizar historicamente ou politicamente. Falar de quem eram aquelas pessoas que fizeram a música. Logicamente que essa música era muito centrada na América do Norte, mas também se iam buscar muitas referências portuguesas. Lembro-me de que, através dessas aulas, passei a conhecer o jazz português. [Naquela altura] o jazz era muito novo para mim e, por estar a conhecer ambos, passei a admirar tanto o jazz português como o norte-americano quase ao mesmo tempo.

[Simão Bárcia] Eu tive uma experiência um bocadinho diferente, com o Afonso Pais. E muito do jazz que eu ouço agora vem dessas aulas. Escutar lá um disco, adorar esse disco e depois ir para casa ver quem é que o tocou e procurar por outros discos. Lembro-me de serem aulas realmente singulares. Uma vez, ele trouxe um disco do Wayne Shorter daquela altura dos anos 80 em que começaram a aparecer os sintetizadores. Honestamente, acho que se sentiu um ambiente na sala de “isto é horrível e porque é que estamos a ouvir isto?” [risos]. O Afonso Pais disse qualquer coisa como “isto faz parte. Vocês já conhecem a parte mais fixe, mas mas também importa vocês perceberem que isto existiu”. Também havia aulas em que ele chegava e dizia, “hoje vou pôr este disco a tocar mas não há nenhuma explicação”. Ele meteu um disco que eu adorei, do Larry Young, um organista.

O Fuel?

[Simão Bárcia] Não. O Unity. Adoro esse disco. Na última aula de todas, ele decidiu também não dar explicações. “Olhem, eu vou só pôr este disco a tocar. Já falámos imenso ao longo do ano lectivo. Vou pôr a música e vocês vejam lá o que é que acham disto”. Pôs o Out to Lunch!, do Eric Dolphy, que eu já conhecia. Fiquei contente. Já conhecia a música e fiquei só a curtir. O resto da malta estava a gozar com a música e eu fiquei um bocado intrigado com essa reacção. Mas pronto [risos].

Porquê?

[Simão Bárcia] Porque aquilo, para mim, era a melhor coisa que existia.

Não, não. Porque é que tu achas que o resto do pessoal estava a gozar com aquilo?

[Simão Bárcia] Porque era pouco familiar. Para mim, que vinha do rock, aquilo era um bocado estranho e agressivo e eu conseguia ir buscar alguns paralelismos nesses dois aspectos. Eles, que se calhar tinham referências do jazz mais “normal”, tinham percepções diferentes.

E tu, Ricardo? Queres falar-me sobre como funcionaram essas aulas para ti?

[Ricardo Oliveira] Funcionaram, principalmente, para eu estar um bocadinho mais consciente. Levou-me a tentar perceber quais são as várias etapas ou pontos de passagem da música. Passei a não estar só a correr a música do início ao fim sem a analisar. A partir do momento em que tenho material novo ou ouço um disco pela primeira vez, dá-se aquele momento em que tenho uma surpresa e tento perceber quais são os pontos que me chamam mais a atenção. Conseguir escutar discos com esse tipo de foco foi algo que me ajudou imenso.

O Simão tocou aí num ponto que eu acho que é muito importante. Quão canónica é a nossa educação musical? As pessoas são mesmo encorajadas a sair fora das “caixinhas”?

[Ricardo Oliveira] Acho que sim e não. Porque a qualidade do nosso sistema de ensino depende muito da pessoa que está a dar as aulas. Se tiveres aulas com uma pessoa que tem a escola toda e conhece o jazz tanto por dentro como por fora, é provável que essa pessoa esteja mais inclinada a dar-te umas bases sólidas. Mais tarde, quando entras no ensino superior, por exemplo, já consegues apanhar três ou quatro professores que te dizem mesmo, “faz a tua cena e sê honesto naquilo que fazes”.

“E esquece tudo o que aprendeste até aqui”. [risos]

[Ricardo Oliveira] É um bocado isso. Tens o exemplo deste mesmo projecto, que surgiu no Hot, na apresentação final do Simão durante o seu quarto ano lá. No quarto ano, o que eles dizem à malta é “faz a tua cena”. E essa cena não tem de ser a coisa mais canónica de sempre. Fazes aquilo que tu gostas.

[Tom Maciel] Posso acrescentar aqui a minha experiência. Eu entrei na ESML com 21 anos e tinha colegas que tinham 18, acabados de sair do secundário. Eu tive a impressão que muitos caíram ali de para-quedas, apesar de serem óptimos músicos. A minha primeira impressão foi que eles eram pessoas muito menos preparadas do que eu para estar lá. Há um momento do curso em que eu reparo que, se calhar, era muito cedo para elas. E eu via isso pela maneira como elas lidavam com a informação que recebiam através dos professores, o impacto que isso tinha no que elas faziam ou achavam que tinham de fazer. Tive a sorte de entrar na escola já depois de ter passado por outros projectos, de ter tido outros professores, de já ter passado por fases de frustração ou de encontrar um caminho. O programa da ESML é uma coisa muito quadrada. À custa disso, os próprios professores, pelo menos os de instrumento e de combo, usam o programa como ferramenta de avaliação. Se fizeres o programa e souberes aquilo que é preciso, és aprovado. Quando eu estava na ESML, todos os professores que tive estavam dispostos a se desviar desse programa. E acho que os alunos também mostraram interesse em se desviar do programa, porque puderam absorver aquilo que achavam que era importante. É preciso ter alguma capacidade de abstracção e conseguir ignorar algumas coisas. Há coisas que se dizem em aula que não são necessariamente para levar a peito. Sendo mais velho e entrando no curso com uma maior maturidade, és capaz de sair de lá muito mais contente e satisfeito com o que viveste. Apesar de ainda estar a terminar o curso — que era para ter concluído no ano passado mas não consegui por causa da pandemia — posso dizer que vou sair da ESML muito satisfeito e feliz. Mas vejo algumas pessoas a sair de lá um bocado frustradas. Outras nem sequer terminaram o curso. Coincidentemente, acho que essas eram as pessoas mais novas, que entraram lá mal sairam do secundário e estavam à procura de um método ou de alguma resposta. Acho que não há nenhum curso que te dê respostas. Se sentes que as tens, é porque saíste de lá muito formatado. Se achas que tens as respostas, então tem alguma coisa errada [risos]. É a minha opinião. Por isso, relativamente ao curso ser demasiado canónico, é como diz o Ricardo: sim e não. Vai depender também do próprio aluno. Sinto que, ao longo do meu percurso, tanto no Hot como na ESML, fui convidado a pensar fora-da-caixa muitas vezes. Muitas mais do que dentro-da-caixa. Mas também pode ser da forma como eu interpreto as coisas. Eu nunca acho que já entendi tudo ou que encontrei algum método para fazer as coisas. Tenho a tendência de procurar e de tentar ler nas entrelinhas. Tentar perceber o que é que é bom para o meu desenvolvimento. Acho que, às vezes, também temos de ouvir as coisas com alguma ironia. Por exemplo, eu achava muito bom ter aulas com o Bernardo Moreira, o Binau, que na altura tinha 87 anos — agora está com 91 e ainda está a dar aulas. Ele era a pessoa mais conservadora que eu conheci na vida e era maravilhoso ir para as aulas dele. Amava o discurso dele, super irónico. A malta caía em todas as armadilhas que ele mandava. Ele por vezes falava umas coisas muito contraditórias e problemáticas. Para mim, foi muito importante. Ele foi um dos professores que mais me desafiaram a pensar fora-da-caixa, mesmo sendo ele, se calhar, a pessoa mais dentro-da-caixa que vou conhecer na vida. Por isso, sim, os cursos podem ser mais “engessados”, mas o resultado depende muito de como os interpretas. As portas estão sempre abertas para tu conseguires sair das caixas e sentires uma maior flexibilidade.

Há uma coisa que me intriga muito na vossa geração, nas pessoas que estão mais dentro do jazz. Eu fico sempre com a ideia de que o ecossistema composto por quem está a seguir este tipo de formação, este percurso académico, é muito pouco plural, muito branco e muito masculino, ao contrário daquilo que está a acontecer em muitos outros sítios, como em Londres, por exemplo. Ainda há bocado o Tom mencionava que acompanhava as “cantoras” nas suas aulas de canto. Dá a entender que as aulas de voz são exclusivamente frequentadas por mulheres e que não existe nenhum outro papel para uma mulher dentro do universo do jazz. Essa minha percepção é real ou vocês sentem que hoje as coisas são diferentes? Havia afro-descendentes nas vossas turmas? Existiam raparigas instrumentistas?

[Simão Bárcia] Acho que essa percepção é muito real. Vai muito ao encontro da realidade. Instrumentistas raparigas é muito raro de se ver. Não me lembro de ver alguma no Hot. Afro-descendentes sim, mas eram uma minoria. O jazz cá é super académico. Sinto que há pouco jazz que não passe pela academia. Não existe a cena do pessoal simplesmente se juntar para tocar, tanto quanto eu sei.

[Tom Maciel] A minha impressão sobre a pluralidade na academia é péssima. E podemos ir mais longe. Pessoas trans não existem. Há zero representatividade. Nunca vi na ESML. Pessoas negras sim. Há dois anos vieram alguns alunos que eram dos PALOP. Quando eles entraram, lembro-me de ter perguntado aos meus colegas, “nossa, como é que isso não aconteceu há mais tempo?” Porque antes disso, praticamente não existiam pessoas negras na ESML. Era muito raro. Havia mais negros na formação clássica do que no jazz, o que era bem estranho. Mas faz algum sentido, porque acho que, em Portugal, a inserção social através da música é mais cuidada na formação clássica. Eu não fiz parte dessa cena, mas eu vejo as orquestras e parecem-me um bocadinho mais plurais, com mais mulheres instrumentistas e mais pessoas negras. Mas não conheço assim tão bem para poder dizer com toda a certeza. No jazz sinto mesmo essa falha e incomoda-me muito. Esse discurso das cantoras foi algo que me escapou. É um vício no meu discurso que eu tento combater. Há até professores na ESML que quando vêem uma rapariga pensam logo que ela é cantora. Isso acontece porque, infelizmente, a grande parte das vezes estão certos. Na minha turma tive a Eunice, que toca saxofone, e tenho agora uma contrabaixista dos Açores, a Juliana. Mas são poucos casos. Contam-se pelos dedos. Acho que há muito poucos estímulos institucionais que tentem contrariar isso. E isso depois reflecte-se no que vem a seguir, já que as pessoas não têm o hábito de formar bandas com mulheres ou com pessoas negras. Se perguntares na ESML se alguém tem uma banda com uma mulher, não encontras nenhuma. Até mesmo nós próprios. Se me for recordar dos projectos que tive… Eu faço parte d’As Docinhas e acho que essa é o único projecto em que toco ao lado de mulheres instrumentistas. Mesmo assim, a banda tem uma proposta muito queer e a maior parte dos músicos são pessoas não-binárias, por isso o termo “mulher” nem tem tanta representação assim.

Falemos agora do projecto Cíntia. Há um par de anos foi lançada uma antologia dos Pink Floyd, intitulada Why Pink Floyd…? por ser uma pergunta que os jornalistas frequentemente colocavam. É um bocadinho impossível não vos colocar também essa pergunta: Why Cíntia?

[Simão Bárcia] Eu vou ser o mais honesto possível. Não sei se fui eu quem teve a ideia, mas lembro-me de eu, o Tom e o Possolo chegarmos a esse nome e de todos concordarmos. Para mim, Cíntia representa um nome invulgar e não difícil de pronunciar. Acho que é fácil de se decorar. A mim, traz-me à cabeça uma pessoa engraçada e peculiar [risos].

Outra das questões que queria colocar-vos tem a ver com a escolha da formação. Uma banda com tanto groove optar por deixar o baixo de fora acaba por ser um paradoxo. Como é que essa decisão foi tomada? Teve a ver com o gostarem do som assim ou foi, lá está, uma forma que encontraram para se afastarem das normas e pensarem fora-da-caixa?

[Simão Bárcia] Acho que é um misto disso tudo [risos].

[Tom Maciel] A história da ausência do baixo, para mim, é muito clara. A gente começou a ter problemas de encontrar contrabaixistas para tudo. Inclusive, no Hot, eles tinham bolsas para quem fosse tocar contrabaixo. Se quiseres estudar lá contrabaixo, pagas metade das propinas. Entretanto, já abrange baixo eléctrico também. Houve até uma grande campanha para convencer os guitarristas a mudarem para o baixo [risos].

[Simão Bárcia] Eu considerei isso [risos].

[Tom Maciel] Teve bastante malta que o fez, de facto. Hoje temos baixistas que começaram como guitarristas no Hot. Havia essa limitação. Quando começámos o projecto falámos, “ou a gente começa numa quest intensa para encontrar baixista ou a gente faz uma coisa sem baixo, que pode ser muito interessante”. Logo no início, o Simão já estava numa de experimentar sem baixo. Como ele sempre foi um cromo de primeira, foi logo pesquisar por bandas que não tinham baixo e fez uma lista. Ouvimos as referências e tal. O Simão chamou-me à atenção acerca do som do Rhodes, que eu não usava muito até então e que hoje em dia é meio que a base do que eu toco nos Cíntia. As frequências graves eram tão fortes que, ao equalizar aquilo de uma certa forma, o baixo não ia ficar em falta no espectro das frequências. Faltava o baixista, mas o grave estava lá. É um pouco por ai que nós fomos. Entretanto, Cíntia já teve dois baixistas [risos]. Um deles era um amigo nosso que gostava bastante do nosso som e pediu-nos para tocarmos juntos. Ele foi para Amsterdão e nós arranjámos outro baixista. Esse baixista começou a baldar-se muito e nós começámos a fazer muitos ensaios em que era suposto lá estar o baixista, mas ele não estava. De repente, aquilo estava a soar tão bem que nós pensámos, “porquê não voltar à ideia inicial de não ter baixista?” A saga sem baixo foi natural. Simplesmente aconteceu. Mas a gente sempre teve essa curiosidade de como solucionar essa necessidade de ter o grave, que é uma coisa tão importante no groove. Cada vez mais, eu sinto que tocar baixo ou outras coisas graves é a base estrutural e dá um prazer inigualável. No piano, eu sempre tive a intuição de tocar muito e de preencher todos os espaços vazios e fui-me mentalizando de que tinha de tocar menos. Quando estou a tocar baixo, por algum motivo, eu satisfaço-me com pouco. Não é muito comum isso acontecer-me. Na nossa formação actual, sou eu a pessoa que dá os baixos. Às vezes trocamos. Mas, geralmente, sou eu aquela pessoa que está a cuidar das frequências mais baixas através de um synth bass. Sinto-me lisonjeadíssimo porque é algo que gosto tanto de fazer e que ainda por cima é tão elementar na estrutura… Desde o início, quando falámos que não iríamos ter baixo, eu fiquei muito contente porque sabia que poderia ter de ser eu a fazer isso [risos].

[Simão Bárcia] Eu também tinha a cena de pôr o pedal de oitava na guitarra e fazia o baixo às vezes. Mas o sintetizador soa muito melhor.



Já vi esse papel ser representado por um baterista (NR: Marlon Patton, que acompanhou Lonnie Holley em concerto no Theatro Circo, Braga, em 2019), que usava um dos pés para extrair linhas de baixo de um dispositivo que penso que era da Moog

[Ricardo Oliveira] Inclusive o Nate Wood, baterista dos Kneebody, tem um projecto que é o fOUR, em que ele tem literalmente o baixo pendurado, como se tivesse a pegar num bebé, e depois tem também sintetizadores e drum machines. Eu fico a olhar para aquilo e penso “não. Isto não é para mim” [risos]. Já é tão difícil usar quatro membros ao mesmo tempo. Ele está completamente noutra.

Como é que surgiram as composições para o vosso disco? São colectivas? São coisas criadas em estúdio ou na sala de ensaio?

[Simão Bárcia] É muito variado. O processo de composição para este disco foi muito variado. O que é super-fixe. Eu adoro o processo de composição desta banda. É incrível.

[Ricardo Oliveira] E orgânico.

[Simão Bárcia] Acho que algumas das músicas vinham de trás e tinham sido escritas por mim ou pelo Tom. O resto partiu, maioritariamente, de ideias simples, de dois acordes. Também fizemos duas residências na casa da minha avó, no Alentejo, em que trabalhámos as coisas que já tínhamos. Antes de começarmos a trabalhar, começávamos com uma jam para aí de meia hora, que era gravada. Nos dias a seguir íamos ouvindo aquilo e pegando em algumas coisas. “Olha, eu gosto desta parte. Vamos tentar ver se isto dá uma música”. Foi isto. A maior parte das músicas do disco foram à base disto.

[Tom Maciel] Acho que essa foi a grande novidade para nós todos. No início, a nossa proposta era trazermos composições. Muitas das vezes trazíamos as coisas escritas na pauta e tudo.

[Simão Bárcia] Quando largámos a pauta foi incrível.

[Tom Maciel] Completamente. Essa coisa de trazer pautas, para mim, sempre me deixou a pensar se seria esse o caminho certo. Sempre me pareceu muito mais orgânico o fazer as coisas de ouvido, ensinar para o Simão e o Ricardo as linhas deles ou, às vezes, nem trazer nada e esperar que as coisas aconteçam. Antes de tudo, para este álbum nós já tínhamos algum repertório que nunca tínhamos gravado. Tínhamos quatro sons, que foram aqueles que fizemos quando montámos a banda. Para o disco, decidimos que não íamos utilizar nenhuma dessas músicas. Essa decisão foi muito importante para o nosso processo de criação. De repente, nós tínhamos a proposta do Jazz.pt para gravar esse álbum. Sabíamos que em alguma hora isso ía acontecer e que não queríamos gravar nenhum do repertório que a gente tinha. Eram músicas que já tínhamos tocado muitas vezes e se as fossemos gravar em estúdio, elas não iam ter a mesma emoção, até porque algumas delas eram músicas com as quais já nem nos identificávamos tanto. Pensámos “ou a gente muda elas completamente e actualiza elas para o que a gente é hoje em dia ou então não vai fazer sentido”. Quando recebemos essa proposta, do Rui Eduardo Paes, nós não tínhamos repertório pronto para isso. Surgiu essa solução de gravar jams, pelo menos duas de trinta minutos cada, todos os dias. Foi uma coisa sistemática. Foi acordar de manhã e usar aquela frescura criativa para tocar e gravar. Depois ouvíamos o que tínhamos tocado no dia anterior ou até mesmo no próprio dia. Foi um processo quase industrial. Foi tudo muito novo para todos nós. É um processo de composição muito colectivo e circunstancial. Nós apostámos nesse método não apenas como uma forma de compor mas também como forma para chegarmos à sonoridade que a gente queria. A gente queria uma sonoridade que fosse baseada em momentos de improviso. Eu e o Simão sempre tivemos essa cena da improvisação, uma coisa muito mais livre. O Ricardo creio que só começou a explorar mais esse lado connosco. Eu e o Simão íamos a jams de free jazz e fazíamos sessões de improviso. Fomos ao workshop de improvisação livre do Peter Evans — fomos a primeira turma do Som Crescente, que é o nome desse workshop, que teve o Gabriel Ferrandini como convidado, uma pessoa que nós admiramos muito. Nós queríamos essa estética do improviso, mesmo sabendo que era um projecto para o qual não queríamos improvisação livre a 100%. O nosso processo foi tentar encontrar maneiras de chegar a essa sonoridade em músicas compostas e com uma estrutura delineada.

Então, para a dupla sessão de gravação do álbum que aconteceu a 17 e 18 de Abril, já foram com muito material estruturado?

[Simão Bárcia] Super-estruturado.

Mas, ainda assim, houve espaço para improviso no estúdio?

[Tom Maciel] Sim. O próprio espaço para o improviso foi muito ponderado. Foi engraçado. Nós sabíamos quais eram as músicas que queríamos deixar mais em aberto, para descobrir como é que elas poderiam vir a soar, como também tínhamos outras mais estruturadas que queríamos que soassem mesmo assim. Foi, também, pelo bem da nossa tranquilidade. Só tínhamos dois dias de estúdio, então “bora deixar isso mais certeiro para a gente chegar lá e gravar”. Foram tudo escolhas muito conscientes. Somos os três overthinkers.

[Simão Bárcia] Somos um bocado, sim [risos]. Até tínhamos uma música que, no próprio dia ou no dia antes de ir a estúdio, não nos estava a soar nada bem. “Ok, malta, isto não está a bombar. ‘Bora só fazer tudo de seguida”. Acho que era a “Comboio das 5:30”. Tinha ali uma cena…

[Ricardo Oliveira] Tinha uma passagem toda nerd. Aquilo estava a soar mal.

[Simão Bárcia] Decidimos, “vamos só tocar e ver o que acontece”. E pronto, ficou.

Olhando não só para o que se faz dentro de Portugal, mas também para on que está a acontecer lá fora, há alguma cena mais específica na qual vocês se sentem mais em casa ou em que sintam que o vosso som encaixa melhor?

[Simão Bárcia] Mais ou menos. Não sei. A cena fixe dos Cíntia é que nós, desde o primeiro dia, nunca tivemos aquela necessidade de “vamos tentar fazer isto igual a este projecto”. Foi sempre mais numa de nós acomodarmos as nossa preferências do que tentarmos chegar a algum lado através delas. O processo da banda foi sempre um bocado esse. E nós os três temos referências super-dispares. Não há aquela cena – nem mesmo numa faixa individual — nós os três estarmos com a mesma referência. Esta é a minha percepção da coisa.

E individualmente, o que é que compõe as vossas respectivas dietas musicais? Quando não estão a trabalhar nem a caminho de um concerto, qual é a música que vocês vão escutar?

[Simão Bárcia] Bué de cenas [risos]. Ando a ouvir várias coisas. Mas, neste momento, estou obcecado com os Earth, Wind & Fire [risos]. Ando super-obcecado com isso. Há um disco deles, o That’s the Way of the World, que eu considero incrível de uma ponta à outra. É uma viagem de 35 minutos incrível. Eu vou dar aulas a uma escolinha e a minha viagem é feita na companhia desse disco. O disco acaba quando eu chego lá e é muito bom. Também ando a ouvir um produtor de música coreano, que é o Mid-Air Thief. É uma cena com uma grande misturada. Tem guitarras acústicas, beats, bateria a sério, baixo, voz, sintetizadores… Uma grande extravaganza.

[Tom Maciel] O que é uma bateria “a sério”? [risos]

[Ricardo Oliveira] Eu congelei quando ouvi isso. Será um outro instrumento?

[Simão Bárcia] O que eu quero dizer é que tem um baterista a tocar em vez de uma drum machine. Ando a curtir imenso disso. Depois, uma outra coisa que não tem nada a ver, é que de vez em quando gosto de ir ouvir cenas tipo Ravel. Gosto do Ravel e do Ligeti. Gosto de tudo do Ligeti. Gostava só de acrescentar uma coisa que eu acho interessante. Já pensei nisto várias vezes, sempre que surge aquela questão das referências, de quais são as bandas que nós os três gostamos. Há uma é super-consensual, que é Queens of the Stone Age.

[Tom Maciel] É verdade [risos].

[Ricardo Oliveira] Inclusive o Tom e o Simão tiveram um projecto de covers de Queens of the Stone Age. Como é que se chamava?

[Tom Maciel] Quim Onde Estão Eles.

[Ricardo Oliveira] Exactamente [risos]. Era incrível.

[Simão Bárcia] Outra coisa da qual eu acho que gostamos os três são os Kneebody. Assim de repente, cenas que eu considero consensuais entre os todos são esses dois nomes.

E as não consensuais?

[Ricardo Oliveira] Acho que não há nada que não seja consensual dentro deste grupo.

[Simão Bárcia] Também acho que não

[Ricardo Oliveira] A verdade é que o que acaba por ser o que cola isto tudo é o facto de sermos os três muito abertos. Estamos sempre receptivos. Podemos estar num ensaio às 11 da manhã e a primeira coisa que fazemos enquanto estamos a montar as coisas é mostrar alguma coisa que descobrimos noutro dia para ver se os outros curtem. É muito por aí. É mais um crescimento mútuo do que a presença ou não de alguma consensualidade.

[Tom Maciel] Quando viajamos por Portugal no carro do Simão, que só tem leitor de CDs e não nos permite perdermo-nos no Spotify, a gente converge numas loucuras. Que CDs temos nós? Temos uma colecção do Charles Mingus, depois trocamos para Gorillaz, passa por Sara Serpa… A gente vai curtindo. Pessoalmente, eu estou numa fase muito electrónica. Há produtores que eu adoro, como por exemplo a Arca, que acabou de lançar cinco discos de uma vez só. Grande maluqueira. A SOPHIE também, que infelizmente morreu no ano passado. Acho que o irmão dela vai lançar umas músicas que encontrou. Tenho colado bastante nessa pesquisa por música electrónica. Eu tenho muitos amigos DJs e a gente acaba por trocar muita “figurinha”, muitos cromos. Eles estão a pensar no próximo set que vão tocar e mostram-me coisas. Eu vou atrás, mas sem pensar numa forma assim tão funcional. É só porque eu gosto muito, mesmo. Há também o funk brasileiro, que tem ido para lugares muito loucos, já com coisas muito experimentais. É um electrofunk com sons muito esquisitos. Tem até uma galera a fazer esse som que nem é do Brasil. Eu me divirto a identificar elementos do funk em músicas que nem são funk, porque claramente aquela pessoa ouve funk. Essa parte, para mim, é muito emocional. Ver essa conquista por parte de uma música tão periférica e tão favelada, que está em todo o lado. Noutro dia fui a Lyon visitar o meu irmão e fomos a uma festa em que tava tocando funk. Aqui em Portugal, saio na rua e as pessoas estão tocando funk. Fico emocionado. Mesmo que não seja pelo factor musical — e eu gosto muito daquilo, musicalmente — tem pelo menos um factor político e social muito importante. É mesmo um acto revolucionário dos produtores que estão na favela fazendo música e têm todo o mundo ouvindo.

Devo dizer-vos que fiquei algo surpreendido pelo vosso disco ter saído com o carimbo da Cena Jovem Jazz.pt, apenas tendo em conta os dois discos anteriores que eles tinham editado. Acho que a vossa música é algo que aponta numa outra direcção. Desse lado mais, e à falta de melhor termo, tradicional ou clássico da cena jazz portuguesa, como é que as pessoas têm recebido a vossa proposta musical? Como é que esses músicos mais velhos do circuito jazz mais reconhecido têm reagido ao vosso álbum?

[Tom Maciel] Eu acho que eles não escutaram. Simplesmente ignoraram completamente [risos].

[Ricardo Oliveira] Sim. Eu não me lembro de ter recebido nenhum feedback.

[Tom Maciel] Mas essa cena da Jazz.pt foi incrível para nós. Foi um grande estímulo para a gente compor. A gente fica muito honrado por ter sido escolhidos. Mas, no início, pensámos, “a gente vai gravar um disco mais virado para o jazz?” Era uma insegurança minha. Porque os caras se chamam de Jazz.pt. O que é que esperam de nós? Ao mesmo tempo, tivemos muita confiança no Rui, que foi a pessoa que chamou a atenção da Jazz.pt para nós. Ele viu um concerto nosso num pequeno festival. Ele tinha ido lá para ver uma outra banda, mas acabou por ver também o nosso concerto e adorou ao ponto de nos escolher. Ao confiar no Rui, tentei não ficar tão preocupado com o porquê de eles terem chamado a gente. Simplesmente pensámos, “ok, nós existimos e eles gostam do que andamos a fazer”. É engraçado, porque muitas vezes nos anunciam como jazz e acabam por nos colocar em situações de jazz. O público, muitas das vezes, se surpreende. Acho que, até agora, sempre pela positiva. A malta gosta e fica surpresa. Riem-se, porque as nossas músicas também têm um caracter cómico e, nos concertos, a gente faz questão de evidenciar isso. Também temos algumas mensagens, tipo a da “Vitamina de Abacate”, que tem o discurso do Malafaia, um grande presidente da bancada evangélica e que tem um grande poder político no Brasil. É uma coisa super podre e cheia de coisas horríveis, com muito dinheiro envolvido. É uma máfia mesmo. E isso acaba por surpreender as pessoas por motivos que elas nem esperam. Os mais cromos do jazz não disseram nada até agora. Acho que realmente não lhes chegou. Daí eu sinto que estou num lugar… Eu não sei o quanto as pessoas estão a escutar música com a curiosidade de encontrar coisas novas. Eu realmente não sei se as pessoas vão atrás de um som como o dos Cíntia. Assim que o disco saiu, eu mandei-o para um monte de pessoas que eu admiro e que eu queria que ouvissem, como alguns professores meus. Até agora, o feedback foi sempre muito positivo mas nunca muito aprofundado. Então não sei o que as pessoas acham disso, dentro de um ambiente mais jazzístico.

Sentem algum tipo de afinidade por algumas destas novas bandas que estão a surgir por aí? Tenho tocado algumas delas no meu programa, como os OCENPSIEA, Mazarin, YAKUZA, whosputo, etc. Sentem-se tão distantes desta nova onda como do jazz clássico ou conseguem detectar por aí algumas afinidades?

[Simão Bárcia] Acho que há algumas afinidades.

Antes de mais, devo dizer-vos que eu noto essas afinidades. Mas, se calhar, essas afinidades têm mais a ver com uma questão de atitude do que propriamente ao nível da sonoridade.

[Simão Bárcia] O primeiro artigo que saiu sobre o nosso single falava sobre essas bandas e eu, “espera aí, que tenho de ouvir isto com atenção”. Fui ouvir os Mazarin e achei que aquilo era uma coisa mais virada para a dança e que não tem aquela cena que nós fazemos muito, de mudar completamente a meio da música. E é uma coisa mais groovie, mais chill. Depois, eles têm uma playlist que se chama “Mazarin Likes This”. Estive a ver e “eu ouço e conheço isto tudo!” Fiquei um bocado… Pensei que, se calhar, ouvimos as mesmas coisas, mas a interpretação vai dar a sítios diferentes. A cena que eu conheço melhor e que me sinto à vontade para poder dizer que é a minha cena é o rock. Acho que Cíntia tem muito rock e essas bandas, tanto quanto sei, não têm tanto quanto nós.

Neste momento, já têm concertos planeados?

[Tom Maciel] Temos algumas datas em Fevereiro para fora de Lisboa. Temos Viseu, Coimbra, Figueira da Foz…

[Simão Bárcia] Aveiro.


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