Chance The Rapper
Coloring Book
18,9 / Digital
[TEXTO] Rui Miguel Abreu
“I don’t make songs for free, I make them for freedom“, Chance The Rapper
O tempo é a coisa mais transparente e, ao mesmo tempo, mais opaca de sempre: não nos relacionamos todos com o tempo da mesma maneira – há quem o aceite, que se recuse a vê-lo passar, quem tente adiantar-se-lhe procurando ultrapassá-lo na curva, quem o ignore e tente situar-se fora dele, como se tal fosse possível. Há de tudo, enfim. Centremo-nos agora no hip hop e no seu próprio tempo. A questão do tempo no hip hop foi sempre central: temos a old school, a new school, a true school; temos a golden age, temos o back in the day… É natural que o tempo, e neste caso o tempo da memória, seja tão importante num género que se construiu a si mesmo, isolado do mundo e da indústria, num primeiro momento pelo menos, isolado até da própria prática musical convencional. Para uma cultura assim, a ideia de preservar o tempo, rodeando de âmbar algumas lendas, é algo de natural, compreensível e até, em certa medida, desejável: nenhum futuro se constrói sobre um passado em escombros. Mas o tempo mais importante do hip hop foi sempre o tempo presente. O hip hop é, por excelência a música do “agora”, música do “aqui”. E só resiste a isso quem acredita que afinal de contas não precisamos de mais nada a não ser das tais figuras envoltas em âmbar porque elas já nos deram tudo o que precisamos e nada mais merece a pena ser inventado.
Publiquei por aqui mesmo um artigo a apontar o próximo dia 16 de Julho como um dia de excepção e, desejavelmente, como um ponto de viragem no que à programação dos mais importantes festivais diz respeito. Na discussão que se ergueu em torno desse artigo no facebook, distinguiu-se uma mais vigorosa opinião de alguém que acusou Kendrick Lamar de ser um “fantoche” da indústria (qual indústria?, apetece perguntar…) contrapondo depois uma ideia em que se valorizavam as tais figuras preservadas em redomas de âmbar (ou eternizadas em hologramas…) – Wu-Tang Clan, Tupac… – em total oposição ao que o presente, ao que o “aqui” e o “agora” têm para oferecer. Esses arautos da desgraça, do “já tudo foi feito”, esquecem-se de uma coisa fundamental: o ar que respiramos é o de 2016, a vida que vivemos é a de um presente com circunstâncias dramaticamente diferentes das de 1996 ou 1986: guerras diferentes a serem travadas, caras diferentes na televisão – diabos, televisão diferente, ponto! -, políticos diferentes, tecnologias diferentes, maneiras de jogar – tudo: futebol, basquetebol, bolsa de valores… – diferentes…
Se eu me limitar a ouvir verdades de 1996 vou passar ao lado de tudo o que o presente tem para me oferecer. Se eu me limitar a olhar para retratos de 1986 não vou reconhecer nenhuma das pessoas que se cruzam comigo na rua, no metro, na escola ou no escritório. Eu respiro em 2016. Adoro e respeito a história, passo a vida em museus ou com os olhos imersos nas páginas da história, escrevo estas linhas numa sala recheada com milhares de discos desse imenso passado que me fascina. Mas em momento algum me esqueço que lá fora é 2016. E que daqui a nada tenho que sair…
Vem tudo isto a propósito de Coloring Book de Chance The Rapper. Permitam-me que comece pelo título: o que significa? Leio este título como uma metáfora sobre o tempo, precisamente. Entendo-o como Chance The Rapper a dizer-nos que a vida que todos vivemos pode começar por ser um livro que nos é oferecido, ou até imposto – o país em que nascemos, a cultura que nos forma, as circunstâncias socio-económicas, religiosas e espirituais, políticas, ambientais, etc, que nos moldam… -, mas todos temos pelo menos a hipótse de o colorir, de o preencher consoante os nossos desejos e possibilidades. Não está tudo determinado. A vida não é uma prisão. Lá fora é 2016. Todos respiramos e a vida é um livro aberto pronto a ser colorido…
Ainda antes da música, a teimosia independente de Chance The Rapper. Claro que há quem discuta os contornos da independência de Chano – tal como há quem questione a validade do discurso de K-Dot argumentando que falar sobre raça é uma mera estratégia de marketing (“falar de raça vende”…) – mas apontar a ligação à Apple como uma mancha no currículo particular deste novo filho de pródigo de Chicago é não compreender – lá está… – que lá fora é 2016: “Chance The Rapper não é um rapper independente porque o seu disco sai na Apple, mas eu posso sobre isso emitir uma opinião independente escrevendo este texto aqui no meu Macbook”…Hum?…
Coloring Book é o terceiro registo de Chance The Rapper em nome próprio depois de 10 Day e Acid Rap (adicionem-lhe o projecto Surf com o Social Experiment de Donnie Trumpet ou os Free Based Freestyles com Lil B). Nenhum desses projectos mereceu edição física oficial, nenhum teve uma edição convencional com o suporte de uma editora tradicional. Usando o DatPiff ou, agora, a Apple Music, Chance está a navegar o presente, a perceber como pode fazer aquilo que toda a gente que veio antes de si, incluindo os tais monumentos de âmbar/hologramas, sempre procurou fazer: levar a sua música até às pessoas que a querem ouvir. Em tempos isso pode ter significado criar alianças com figuras como Russell Simmons ou Suge Knight, assinar acordos com gigantes como a Sony ou a Universal, mandar fábricar rodelas pretas ou prateadas e fazê-las chegar a cadeias de lojas multinacionais como a Virgin ou a HMV, para depois escutar os objectos em casa em aparelhagens fabricadas no Japão. Mas Chance The Rapper respira em 2016 e sabe que o mundo é diferente. Tem o livro à sua frente, mas quer colori-lo à sua maneira. Sony, Universal, EMI, Spotify, DatPiff, Apple Music: continua a ser preciso navegar para chegar a algum lado. A diferença (e esta palavra, “diferença”, é tão importante…) é que agora é possível chegar um pouco mais rapidamente onde importa: aos ouvidos das pessoas. As tais que vivem em 2016, que respiram, trabalham, amam e sofrem em 2016. E boa parte delas tem telefones com uma maçã estampada atrás… Chano resume tudo muito bem em “Mixtape”, tema em que questiona “how can they call themselves bosses / when they got so many bosses” concluindo de forma muito assertiva “but now i call the shots”. É ele que decide, é ele que pinta o livro. Independente, pois.
Mais uma coisa, há um ano, a propósito de Surf, escrevia-se por aqui sobre o que poderiam ser os próximos passos de Chance:
Chance está obviamente a estudar as suas opções, a aguardar os desenvolvimentos da indústria, a tentar perceber qual a melhor maneira de fazer a sua música chegar às pessoas. Até aqui têm sido as mixtapes, mais descomprometidas conceptualmente, e agora Surf, uma edição gratuita sem nenhum tipo de pressão comercial. Mas distribuída através do iTunes… Chance The Rapper está, certamente, a apontar alto. Quase que dá para apostar que o seu próximo trabalho em nome próprio terá algum tipo de ligação à recém lançada Beats Music, a plataforma multi-funcções da Apple que promete revolucionar o mundo da música.
Apetece escrever “eu bem vos disse”. Passemos, então, à música, puxando por mais uma ideia bem explícita no texto que assinei sobre o álbum da Social Experiment:
“Surf soa por vezes como uma produção de palco da Broadway a que se assiste de olhos fechados”.
Quando se apresentou Coloring Book pela primeira vez aqui no Rimas e Batidas, abordou-se o fascínio que Chance sente por Hamilton, o fenómeno da Broadway que está a mudar o universo dos musicais tanto quanto Stephen Curry parece estar a mudar o seu jogo. E essa ideia tão antiga de contar histórias com música é de facto central em Coloring Book e em toda a obra de Chance The Rapper. Que o seu principal modelo não sejam necessariamente as “cyphers” da esquina, antes os musicais da Broadway é o que reveste a sua arte de tanta originalidade. Coloring Book tem arranjos ambiciosos, tem metais e cordas, tem diferentes andamentos, tem coros por todo o lado, múltiplas personagens. Tem gospel e jazz e ideias decalcadas do Great American Songbook, de Irving Berlin e Cole Porter aos manos Gershwin ou à dupla Rodgers & Hammerstein. Não é brincadeira.
É sintomático que logo o primeiro tema – o “Ultralight Beam” de Coloring Book (em que Chance devolve o gesto de Kanye em Pablo convidando-o para a subida de pano do seu disco – “This ain’t no intro, this is the entrée”) -, “All We Got”, cruze uma solene secção de metais com os “claps” e o “kick” de uma 808: isto é Chano a estabelecer as fronteiras, a mostrar-nos a moldura do seu novo trabalho. E o que se segue depois é extraordinário, ambicioso e – já vos tinha alertado para a importância desta palavra – pleno de “diferença”: Chance The Rapper quer colorir o seu livro à sua maneira e não está propriamente interessado em limitar-se a modelos pré-existentes embora, como é claro, não os renegue. Além da música, que é sempre luxuriante, densa, complexa, com arranjos corais e orquestrais que denotam uma seriedade e ambição consideráveis, há todo um festival de fogo de artifício vocal de Chano que estende o arsenal convencional do MC de âmbar incluindo cadências do universo da spoken word (como Kendrick…), evocando os Last Poets no processo, mas também a teatralidade de artistas como Lin-Manuel Miranda, a estrela de Hamilton com quem Chano dividiu a capa da mais recente Complex: Chance já não está simplesmente a brincar com a física da sintaxe, a cruzar rimas e a intercalar sílabas com a destreza de um atleta olímpico, a alternar flows e a provar que é capaz de rappar em múltiplas cadências. Chance também quer rappar emoções e pela sua voz passam uma série de diferentes tonalidades, como se estivesse num palco e diferentes cenas exigissem raiva ou paixão, tristeza, desilusão, revolta, submissão, ternura ou qualquer outra disposição emocional que nos ajude a compreender e a entrar dentro da história. Ver Hamilton ao lado de Quentin Tarantino surtiu efeitos, decididamente.
A maior parte dos temas de Coloring Book tem assinatura de produção dos Social Experiment de Donnie Trumpet, com nomes mais conhecidos como o agora omnipresente Kaytranada (que assina um muito dançável “All Night”), Cam O’bi (que já tinha deixado a sua marca em Acid Rap) ou Lido, o norueguês que já trabalhou com BANKS ou The Weeknd, a registarem igualmente presença. Mas há uma série de nomes mais obscuros, como GARREN, Brasstracks, CBMIX ou Rascal que indicam que Chano olhou para Coloring Book como um encenador olha para uma nova peça que quer levar para o palco: procurando o actor certo para cada papel, o técnico excato para cada função, mesmo que isso implique mergulhar fundo nos labirintos do Soundcloud para descobrir produtores escondidos em Aachen, Alemanha (caso de Rascal…). O que mostra que Chano evitou as “traps” (“pun intended”) do presente e procurou ir para lá de Metro Boomin’ e dos principais protagonistas do momento para construir uma paisagem sonora singular e, mais importante, pessoal. O livro está escrito, mas é Chano que decide como pintá-lo, certo?
Muito bem, já se percebeu como são os cenários sonoros desta peça e quanto ao elenco e ao libretto? Com um trabalho em que ao nível das participações vocais se contam Kanye West, Lil Wayne e 2 Chainz, Jeremih e Francis & The Lights, Young Thug e Lil Yachty, Saba, Justin Bieber e Towkio, Knox Fortune, Jay Electronica, Future, T-Pain e Kirk Franklin, Noname e Ty Dolla $ign não se pode propriamente usar o termo “mixtape” tal como era entendido até aqui: um objecto artístico de menor ambição, mais imperfeito, mais imediato e menos ponderado. “Am I the only nigga still care about mixtapes?”, pergunta Chance. Talvez não seja o único, mas é certamente o que mais trabalho investe nelas. E, curiosamente ou talvez não, apesar do peso óbvio de tantos dos nomes convocados, a verdade é que em momento algum Chance é ofuscado porque o pensamento por trás de cada participação não foi necessariamente comercial, antes artístico: o melhor actor para cada papel. Todos importantes para que se conte a história, mas nenhum que nos faça esquecer quem é o protagonista.
Os primeiros registos de Chance eram pequenos sketches focados em episódios muito concretos da sua vida: o liceu e a sua suspensão em 10 Day, a vida mais desregrada e envolta em fumo de cigarros pós-escola em Acid Rap, mas algo muda muito claramente em Coloring Book, o primeiro disco que Chance faz já com a condição de pai bem presente: “we don’t do the same drugs no more”, garante Chancelor em “Same Drugs”, um tema que não aborda necessariamente o abandono das drogas, mas antes a passagem do tempo, o crescimento, a idade adulta – “don’t you miss the days, stranger? / don’t you miss the days? / don’t you miss the danger?”. Há de facto uma história aqui, um palco, cenários, uma direcção de actores, toneladas de emoção. E essa história passa muito por uma elevação espiritual, um encontro com Deus, anunciado logo no tema que marca o arranque de Coloring Book, “All We Got”: “this for the kids of the king of all kings”, “I get my word from the sermon”. O tom gospel é acentuado em “Blessings”, tema em que Jamila Woods canta, sobre piano, “I’m gonna praise Him, praise Him til I’m gone” e depois Chance, sobre uma base jazzy, apresenta a sua missão: “I don’t make songs for free, I make them for freedom / Don’t believe in kings, believe in the kingdom”. Chance está no púlpito, no palco, e o seu discurso é de elevação. Não há outro rapper a falar assim, exceptuando talvez a maior referência de Chance, Kanye West, mas em Yeezy a espiritualidade surge de mãos dadas com uma saudável (espero…) dose de loucura. Já aqui há um nítido espírito de missão: “Clean up the streets so my daughter can have somewhere to play”, explica Chance em “Angels”: já não é apenas o seu livro que Chance quer colorir, mas o mundo. A música, concede o rapper noutro tema, pode ser tudo o que tem, mas a música, acredita ele também, pode mudar o mundo. E é acerca de mudança, de fazer diferença, que este disco trata: “I got the power I could poke Lucifer with crucifix” diz Chance em “Finish Line / Drown”.
Este é, portanto, um disco deste tempo e não vale a pena recuar mais do que até College Dropout para encontrar modelos para Chance: tal como Kanye cantou e rimou sobre o seu presente, também Chance tem os pés fincados neste seu tempo e os olhos focados no futuro que se desenrola à sua frente. E uma vontade declarada, assumida sem truques, de fazer diferente, de forçar a mudança, a transformação. Coloring Book é um disco gigante e nobre, vai marcar 2016 como To Pimp a Butterfly marcou 2015. Como Kendrick, Chance tem a seu favor uma feroz individualidade, um discurso singular e uma noção aguda do tempo que existe lá fora. Neste momento é 2016. E há um livro para colorir.