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Fotografia: Alexander Richter
Publicado a: 06/12/2023

Um reforço de Leonardo Pereira aos discos de hip hop que ficaram pelo caminho.

Burburinho: Novembro 2023

Fotografia: Alexander Richter
Publicado a: 06/12/2023

Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do r&b, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo, através das visões gélidas do trap ou do drill.


[Onry Ozzborn] BlvckBeachBoi

Onry Ozzborn tem liderado um dos pelotões do hip hop abstrato, alternativo e esotérico da idade contemporânea já desde 1997. O rapper de New Mexico inclusive desistiu da sua carreira académico-desportiva para se focar apenas na sua música, tendo formado o coletivo Oldominion pouco depois desse escape da Universidade do Arizona. Já lá vão 13 discos, sem contar com as edições desse primeiro coletivo, dos Grayskul (um duo com o rapper JFK Ninjaface), e dos Dark Time Sunshine (um outro duo com o produtor Zavala), 26 anos de carreira e 44 anos de hip hop nas costas.

BlvckBeachBoi é o seu retorno a longas-durações depois de uma pausa de 5 anos e, apesar do hiato, Onry está na sua forma habitual. Oferece uma quantidade de flows incrível para um projeto que ultrapassa os 40 minutos, em beats elaboradas e densas — não necessariamente nas texturas, mas na ambiência que projetam. As barras, os trocadilhos, o storytelling, tudo parece imaculado e adulto. A ideia que passa é que Onry quer que o seu ouvinte o estude e que a gratificação não seja imediata, que as barras não sejam só um pedaço de escrita avulsa e que sejam todas parte de uma ilustração do seu mundo. Ao mesmo tempo, a mão-cheia de refrões maravilhosamente orelhudos no projeto mostra uma sensibilidade para que a lírica críptica e os instrumentais mais sombrios não assolem o projeto completamente.

A ideia de ter OGs deste género de hip hop a apresentar o disco no início ou no final de cada faixa também é maravilhosa: Murs, Rob Sonic, Homeboy Sandman, Sadistik, e mais, põem um ponto final em algumas faixas, apresentando-se a si próprios e a mencionarem, como se fosse um programa de rádio, para ninguém esquecer, que estamos a ouvir o BlvckBeachBoi.


 

[Wiki & Tony Seltzer] 14k Figaro

Com os pés bem assentes na terra, Wiki vai rodeando os temas a que nos tem habituado, mas parece que o nosso narrador usou 2023 para se reerguer completamente, tendo aprendido a aceitar todas as suas vertentes, a usá-las para se tornar maior — como o próprio afirmou na nossa entrevista, às vezes é só preciso encontrar um bocadinho de valor em nós próprios, mesmo depois de tudo o que fizemos e apesar de todos os conflitos em que lutámos.

Num hábito liricista um pouco diferente do que é costume ouvir no género, Wiki não se abstém de se criticar pesadamente e persistentemente a si próprio; vai oscilando entre uma autoglorificação, gabando-se de ser um self-made man e de ter superado todas as fasquias que lhe foram impostas e entre uma autocomiseração afiada, sabendo como ninguém os seus próprios pontos fracos. É um contraste extremamente cativante.

Rimando em batidas de Tony Seltzer, que compôs uma mão-cheia de instrumentais geniais, confirmamos o que já sabíamos: esta colaboração funciona (já marcaram golos em 2017, no No Mountains in Manhattan, e em 2019, com Oofie). O beat switch de “Fried Ice Cream”, em que synths etéreos fazem lembrar um qualquer trap da nova escola e se tornam num flip de “Candy Shop” é um dos highlights do ano. Aliás, todas as beat switches do disco são brilhantes. Nós estamos com atenção, Tony.

O fundador dos Ratking já é uma instituição em Nova Iorque, e a este ponto não só no underground — o respeito está lá e é geral. Se um olhar sobre a discografia retornava um brilho incólume, este disco veio adicionar mais um volume de qualidade na carreira dele.


[Blockhead] The Aux

A era dos álbuns de produtor chegou e nós apreciamos todos os momentos que vivemos nela. Blockhead já cá anda desde o início do milénio e finalmente parece-nos que está a chegar a um nível superior de aclamação — apesar de andar a colaborar com pesos-pesados dos mundos mais abstratos do hip hop como Aesop Rock, billy woods, Murs e Open Mike Eagle há cerca de 20 anos, o passado mais recente parece estar a revigorar a sua prática artística.

Resumidamente e sem estragar todas as surpresas, porque vale mesmo a pena explorar esta coletânea maravilhosa de abordagens ao hip hop, tanto instrumental como liricamente: o disco começa com os sopros cacofónicos de “AAU Tournaments” que só billy woods e Navy Blue conseguiriam navegar; Aesop Rock governa um labirinto de samples vocais idiossincráticas em “Mississipi”; “Mastering How to Land”, com The Koreatown Oddity e Open Mike Eagle, abre um capítulo mais minimalista, menos texturado, mas igualmente polido; Bruiser Wolf puxa da carta nostálgico-romântica e o piano e a percussão acompanham o sentimento emocional do MC perfeitamente em “Papi Seeds”; o convidado mais “fora” do disco, RXKNephew, adapta a sua flow meio supersónica, meio quebrada a um hip hop mais lento em “Pink Lemonade” e chega-se à frente na competição para melhor faixa do disco, surpreendentemente (ou não?); e a experiência termina com “Now That’s I Call A Posse Cut Vol. 56”, uma odisseia contada nas vozes de Danny Brown, Bruiser Wolf, billy woods e Despot, 5 minutos de mestres a dissertarem da maneira que melhor sabem.

Este disco soa mais a coletânea do que álbum, como se fosse um livro de poemas que vai agregando várias fases do mesmo poeta, que se vai exprimindo por correntes e ideologias diferentes à medida que vai crescendo. Estamos perante um dos produtores mais presentes nos círculos de hip hop alternativo, que sempre optou por nunca se cercar a si próprio com uma etiqueta, adaptando-se e recriando-se à medida que o tempo foi passando. Passem o The Aux aos vossos amigos.


[RXKNephew & Harry Fraud] LIFE AFTER NEPH

A personagem já é conhecida, mas a lenda ainda está por concluir. RXKNephew — também conhecido por Rx Nephew, DrugRix Nephew, Slitherman, Neph, Brisko Slice, Mr. Been Ballin ou ainda Too Tuff Tony — começa a correr a partir de Rochester, Nova Iorque, no final da década passada, e ainda não parou de o fazer, tal como um Forrest Gump do hip hop. E tem corrido corta-mato, maratonas, meias-maratonas — leia-se rimando em boom bap, trap ou horrorcore — sem qualquer réstia de medo pela percussão ou pela melodia.

Neste LIFE AFTER NEPH, junta-se a Harry Fraud, um dos mais proeminentes produtores do momento, para explorar a sua veia de boom bap puro e duro durante meia horinha. Não que isso o limite — consegue continuar a adotar qualquer tipo de persona em qualquer tipo de batida; a pujança no timbre, o orgulho na voz e o braggadocious quase nonsense são exibidos sempre com a mesma vontade de entreter e de se gabar. Se o nova-iorquino consegue ser abrasivo a certos pontos da sua carreira (e indiscutivelmente será um dos seus pontos mais cativantes para uma audiência), também consegue diminuir esta aridez e adotar frequências menos conflituosas, mantendo a sua aura, de qualquer modo, incólume.

Se quiserem estar a par do que vai acontecer no hip hop daqui a uns tempos, comecem a acompanhar RXKNephew agora. Pioneiro será sempre um adjetivo bem usado aqui.


[Lord Apex] The Good Fight

Lord Apex continua na sua senda de ser o melhor na sua linha nos próximos cinco anos. Apostaríamos que talvez lá chegue antes. The Good Fight é o seu 6º álbum e o seu 17º projeto desde 2013, ano da edição de Gxlden Era, ainda como Tino Apex, quando tinha 17 anos. Desde aí, tem parecido que o céu é o limite para este MC baseado em Londres. As colaborações com nomes mais sonantes vão aparecendo desde 2016, ano em que a sua “Spliff in the Morning” é lançada, a faixa mais popular do inglês; vai agregando singles no final da década passada que atingem uma certa viralidade e em 2020 chega a ir em tour com Yasiin Bey. Talvez as tais afirmações que proclamou em entrevista ao Rimas e Batidas não sejam rebuscadas.

The Good Fight é, por si próprio, um troféu para o rapper e uma boa afirmação do estado da sua carreira. Afasta-se da fórmula de ter um produtor para todas as faixas do disco (algo que já fez antes, não deixando de ser algo menos comum para ele), convida uma trupe de convidados de alto gabarito. Não que isso o iniba de assumir ser o escritor mais impactante em todas as faixas; é inteligente e já tem um ritmo e uma cadência própria na palma da mão e sabe que a sua voz é memorável. Consegue adoptar uma variedade de timbres apropriados a cada tema, seja comemorativo (“Blessings”), introspetivo (“Stay Prayed Up”), nostálgico (“Back Outside”), braggadocious (“Smokers Lounge”), ou apaixonado (“In Your Heart”).

Voltando aos convidados rapidamente — e frisando novamente que, apesar do calibre destes nomes, o foco principal na audição do álbum foi sempre retido pelo seu primário autor — é uma proeza pôr todos estes músicos no disco. Abre logo com uma produção de Madlib, que é imediatamente algo que nos deixa com a atenção captada. Duas faixas a seguir, ouvimos a pura vaidade de Freddie Gibbs. Pouco depois, BONES é seguido de Eyedress em faixas consecutivas, MAVI deixa a sua pesada marca no disco e, quase no final, Greentea Peng traz os seus doces vocais. Só na corte de um lorde.

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