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Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 15/03/2024

Com Lisboa no centro da equação.

Branko sobre SOMA: “Este disco é a abertura da minha próxima década”

Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 15/03/2024

No princípio era a jam, reunião de músicos num estúdio bem maior do que o costume. Todos diferentes nas linguagens, histórias e percursos, e todos unidos pelas malhas traçadas, sobrepostas e multicolores em que se tem construído a diversidade cultural de Lisboa e o som particular que a reflete, personifica e projeta. No centro desta assembleia sonora encontra-se Branko, um dos mais inventivos e influentes nomes da música portuguesa contemporânea, que decidiu somar pessoas, muitas pessoas, em torno de um processo criativo livre, partilhado e imprevisível. O mote foram um conjunto de bases instrumentais desenhadas para que os músicos convidados nelas se aventurassem, descobrindo coletivamente como dar luz, cor e emoções a um corpo de canções que, mais tarde, haveriam de ser polidas e preenchidas de outras vozes, motivos e inquietações. 

Dessas horas de experimentação nasceu SOMA, um disco cor de laranja, quente e voluptuoso, mas não menos nostálgico, reflexivo e inquieto. Ao quarto álbum, Branko apresenta-se mais acompanhado que nunca, embora a diversidade dos contributos não tenha colocado em causa a coerência, o equilíbrio e a identidade desta nova criação. Afinal, o produtor traz na bagagem mais de duas décadas de trabalho e a consistência de um percurso onde se afirmaram ideias muito vincadas sobre música e não só. Trata-se, uma vez mais, de um gesto de reconhecimento do som de Lisboa, embora aqui ele se exprima e celebre não tanto pelas criações eletrónicas, mas no seu cruzamento com o contributo de alguns dos músicos mais importantes desta geração, a começar por João Gomes, cúmplice fundamental desta jornada.

Recorrendo ao som acústico, SOMA não foge das coordenadas sonoras com que Branko foi descobrindo o seu próprio caminho, embora aqui emerja um som de texturas mais orgânicas, que tanto lembra o caminho que se abriu há vinte anos, com os 1-UIK Project, como projeta e amplia as possibilidades da próxima década do músico. Este será, por isso, o primeiro álbum do resto da vida de Branko, um criador generoso para quem a música só existe na relação íntima com quem a escuta, com quem dela se apropria e com quem com ela se emociona. Boa viagem.



Em ATLAS a ideia de viagem é algo muito importante. Em NOSSO a viagem continua, apesar de Lisboa ser um ponto de partida e de chegada. Em OBG vemos um regresso ao país, uma redescoberta das suas paisagens, mas também um exercício e um gesto de esperança e gratidão. O que é que SOMA representa neste momento da vida e na obra que tens vindo a construir?

Sinto que é um regresso total a uma construção musical mais social e um momento de celebração disso mesmo. O momento mais conceptual para mim foi o início da construção do disco, em que organizei três sessões em estúdio, no Namouche, convidando vários músicos para uma espécie de jam sessions. A ideia passou por voltar a juntar as pessoas para gravar em conjunto. Sempre levei até ao fim a ideia de que consigo fazer discos onde quer que seja só com um laptop e um par de headphones. Aqui foi o contrário e precisei de pessoas e de ir atrás dessa energia para conseguir ter uma outra visão da música. Para mim é quase um exercício de reinterpretação do som de Lisboa que, se calhar, na minha vida, esteve sempre muito marcado pela música eletrónica, mas que está também nestes músicos, figuras super importantes que me acompanharam, como o João Gomes, o General D, os músicos dos Fogo Fogo, ou mesmo uma pessoa como o Iúri Oliveira, que tem uma perceção que vem tanto de projetos como Criatura, como até do fado. Conscientemente ou não, todos eles têm algo subtil que vai moldar aquilo que é o som de Lisboa na forma como tocam, escrevem ou cantam. A ideia era mesmo juntar as pessoas no estúdio, sem ninguém ter ouvido nada, montar uma banda específica para cada dia, e pôr as pessoas a tocar em conjunto, com o seu subconsciente, sem estarem a pensar muito no que tinham ou não de fazer. É quase um exercício mental, tentando usar o instinto e o subconsciente, e colocar isso em música, para depois eu trabalhar essa matéria-prima. 

Na intro do álbum, e ao contrário do que acontece nos anteriores, ouve-se logo a tua voz: “Estão todos prontos? Podemos gravar?” É quase um anúncio de que haverá muita gente e muita informação no som que vamos ouvir. De onde veio essa vontade de somar tantas pessoas e ideias ao projeto? É também daí que vem o título SOMA?

Sem dúvida. Eu sou muito de reagir às coisas anteriores e de trabalhar no inverso daquilo que fiz antes. No final das contas, isto tem de ser emocionante para mim enquanto criador e produtor. Neste disco há quase uma necessidade de reação ao isolamento do OBG, para agora somar uma série de ideias e pessoas. Era algo que tinha vontade de fazer há algum tempo e foi surpreendente quando, no final deste processo, começo a olhar para as autorias das músicas. Por exemplo, o tema “Mood 111” tem 12 autores, acho que é um recorde. Isso aconteceu porque na criação estiveram os músicos das jam sessions, mais as pessoas que estiveram na escrita da letra. O June [Freedom] escreveu parte da letra, mas também chamou a Ellah Barbosa. A parte do Dino também foi escrita em colaboração com o Kalaf, e no meio do processo comecei a cantar o “Cre Sabe”, dos Quatro Plus, o grupo do Nelson Freitas. Fomos pedir autorização para usar um excerto dessa letra e ainda entrou o grupo todo como coautores da letra [risos]. 

Mais uma soma [risos]. 

Exato [risos]. A realidade é que eu nunca tinha feito um disco que fosse tão cheio de layers, tão construído, em que cada momento fosse tanto o seu próprio momento. 

Costumas começar os álbuns com uma ideia, um conceito, uma viagem. Neste caso, quando é que começa este álbum? É com a própria ideia de juntar os músicos em estúdio para tocar em conjunto? 

Sim, esse é mesmo o ponto de partida. A nível cronológico eu tinha estado no Brasil, em dezembro de 2022, e tinha gravado com os Tuyo o tema “Leve” e com a BIAB o “Nuvem”. Entretanto, naquela fase meio aborrecida do ano, entre o Natal, o fim-de-ano e as primeiras semanas do ano, acabei por me fechar no estúdio a trabalhar. Entre o fim de dezembro e início de janeiro, acabei por fazer um conjunto de instrumentais que eram coisas ainda muito rudimentares, eram mais ideias e loops do que instrumentais, porque sabia que iam receber muita informação dos músicos. 

Foram essas as bases que apresentaste aos músicos nos três dias estúdio?

Exatamente. O teclista foi sempre o João Gomes. Depois, nos dois primeiros dois dias esteve um baixista diferente, um guitarrista diferente, um percussionista e baterista diferentes. No último dia estiveram só solistas. O pessoal das bandas gravou todo em simultâneo e no final foram só os solistas, como o Diogo Duque no trompete e flauta, a Jéssica Pina no trompete ou a Ola Mekelburg que gravou vozes e melodias. 

Estive a contar e são 27 pessoas a assinar a escrita das músicas, todas muito diferentes, e sem contar com os letristas e os vocalistas. Foi um desafio conseguires manter uma visão de conjunto? 

São 27? Lindo! É verdade, são pessoas distintas, não discordo, mas houve uma sintonia muito grande nas gravações e foi tudo super fluído. O pessoal seguiu em conjunto, tocou e a música foi acontecendo. Há um fio condutor que acaba por unir todas as pessoas, que não é o género musical, mas o facto de todas elas estarem em Lisboa e fazerem parte desta massa muscular da música que se faz em Lisboa. Estes músicos estão habituados a tocar uns com os outros, com pessoas de origens diferentes, de sítios diferentes, são muito versáteis, flexíveis e muito bons naquilo que fazem. 

É Lisboa o que unifica este gesto? O som de Lisboa? A vivência cultural que Lisboa representa?

Exatamente. Lisboa, enquanto epicentro de cultura, acaba por se tornar o catalisador musical que proporciona uma facilidade de comunicação de linguagens e identidades musicais. 

Estamos a falar de um exercício de enorme liberdade, em que os músicos experimentam de forma instintiva e improvisada. Como é que depois fizeste a seleção para a construção de um álbum que tem de ter alguma coerência e algum sentido de equilíbrio? 

Confesso que trabalhei mais naquilo que ouvi e que gostei e não estive tão preocupado em ter uma sonoridade específica, ou algum pattern rítmico específico. Para mim a canção tinha de ser a heroína do final da história. O mais interessante foi trabalhar a 100 % para a canção e perceber, por exemplo, em 20 e tal minutos de gravação de estúdio, quais os elementos que melhor serviam a canção. 

Cada canção começou a fazer o seu caminho?

Com os anos que levo de música, sinto que posso confiar no meu gosto para me guiar. O trabalho é ouvires. Da mesma maneira que os músicos tocaram aquilo que lhes veio à cabeça, eu também trabalhei a produção com aquilo que me chamou mais à atenção. É um exercício muito honesto. É quase como voltar a 2004, aos 1-UIK Project, em que tinha muito estas referências e onde tocávamos com músicos como o guitarrista André Fernandes. O concerto de apresentação do grupo foi no Hot Clube e era um gesto quase ilegal para nós, que não sabíamos tocar nem cantar, mas fomos tocar no Hot Clube [risos]. Mas houve uma total abertura por parte do pessoal do espaço e foi incrível. Eu sinto que este trabalho dá quase a volta até esse momento pré-Buraka e a essas texturas mais orgânicas. Era algo que fazia nessa altura, de que estava a sentir falta. O exercício aqui foi tentar ir atrás dessa ideia de humanizar o beat. Se os músicos traziam um groove de guitarra e baixo que funcionava bem, mesmo que esse groove não estivesse exatamente no sítio certo, eu ajudava os meus elementos rítmicos para baterem certo com esse groove. Como, aliás, já fazia o J Dilla e grande parte da escola do hip hop. 

O facto de o som ser tocado por instrumentos ao vivo traz uma sonoridade diferente à tua música? 

Claro. Traz uma textura completamente diferente e mais orgânica, mesmo que alguns instrumentos mais marcantes, como os trompetes, sejam pós-produzidos para ir atrás de um som que seja menos óbvio. 

Apesar de teres juntado várias pessoas em estúdio, as viagens também fizeram parte deste álbum, nomeadamente Londres, o Rio de Janeiro e São Paulo. Porquê esta necessidade de trazer também o Brasil e Londres?

Eu tenho trabalhado muito com colaborações. No NOSSO, em particular, parti de instrumentais em que se sentia Lisboa, para ir para fora procurar pessoas que não estavam necessariamente ligadas ao que estava a acontecer em Lisboa. Neste disco tentei fazer o exercício de ir atrás de pessoas que, apesar de estarem a construir as suas carreira em locais diferentes, já tivessem uma noção deste universo. Trabalhar com a Carla Prata foi muito interessante porque não tive de lhe explicar tudo. Queria apenas que entendesse o som e que fizesse a voz que ela quisesse fazer e como fizesse sentido para ela. Não fui eu que pus a Carla Prata a cantar num beat como o “Found My Way”, que é meio upbeat, foi ela que escolheu e desenvolveu a canção. O June Freedom foi a mesma coisa. Ele é de origem cabo-verdiana, mas que está nos Estados Unidos a construir a sua carreira. O June escolheu o beat, eu gravei com ele e só depois é que entrou o Dino. Falando, por exemplo, do Bryte, ele não tem raízes em nenhum país em que se fale português, mas está muito dentro desta ideia de global club culture, participou no disco do Pedro da Linha, tem completa noção daquilo a que soa Lisboa e trouxe também essa sua interpretação deste som. 

E no caso do Brasil?

Acaba por ser a mesma coisa. São pessoas que já têm uma noção do meu trabalho e já havia uma relação prévia com esta música. Já queria trabalhar há muito tempo com os Tuyo e fiquei super feliz com a sessão. Com a BIAB foi uma supressa. Ela gravou aquele A COLORS SHOW com o “Pedra do Sal”, eu adorei e entrei em contacto com ela. Ela disse que o “Tudo Certo” foi das músicas que mais ouviu em 2020 e foi óbvio que tínhamos de trabalhar. Talvez a pessoa que não encaixa tanto nesta abordagem seja a Teresa Salgueiro. No caso dela é uma narrativa mais paralela, e mais próxima de algumas coisas do OBG em que trabalhei com uma reinterpretação ou uma releitura de algumas mais tradicionais portuguesas, indo buscar também um pouco daquilo que fiz com a Ana Moura e com o Conan Osiris em “Vinte Vinte”.  

Este disco vive das sessões coletivas de estúdio, do trabalho em casa em que limaste todo esse material, mas também destas viagens e encontros. Dirias que é um disco mais de casa, de estúdio ou de viagem?

Eu diria que é um disco mais de estúdio. Eu nunca precisei de um estúdio como o Namouche para gravar. Nunca tinha chegado à conclusão, mas é verdade, acho que este é um exercício de estúdio, é o meu primeiro disco verdadeiramente de estúdio, em que cada tema tem mais de 100 pistas. 

Na sonoridade do disco encontramos linguagens distintas, com referências ao kuduro, à kizomba, ao tarraxo, ao afrohouse, à rasteirinha, à música tradicional portuguesa reinterpretada. Essa diversidade sonora foi um ponto de partida ou um ponto de chegada? 

Foi um ponto de partida. Esses estilos já estão presentes noutras fases do meu trabalho e são algumas da linguagens onde tenho desenvolvido a minha perspetiva e a minha visão. Quando me sento a fazer música tento pensar primeiro num conceito, depois executá-lo, mas sei que essa execução vai sempre tender para alguns desses universos. Mesmo a nível de BPMs, acabo quase sempre a trabalhar ou perto dos 90 ou perto dos 120. Podendo fazer coisas diferentes, e este disco acaba por disparar para BPMs diferentes, acho que já encontrei as minhas zonas de conforto em termos de produção e em termos de escolhas de notas ou de timbres. Com os anos de trabalho cheguei a um mood board estilístico a que acabo quase sempre por regressar.



Queria ir agora a alguns motivos das letras. Também foram escritas por várias pessoas, certo?

Sim. Quando colaboro com vocalistas, normalmente a escrita da letra é assumida por eles. Trabalho quase sempre com pessoas ou que escrevem sozinhas, ou que têm pessoas com quem escrevem. Mas acaba sempre por haver parcerias ou discussões sobre possíveis direções. 

Ouvindo as músicas identifiquei quatro linhas temáticas e poéticas: um apelo à boda enquanto fuga hedonista do trabalho (“Mood 111”) ou em nome da paixão (“Agenda”); uma aposta na leveza do amor (“Leve”, “Slide” ou “Nuvem”); a importância dos processos de cura, superação e regeneração (“Fortuna”, “Found My Way”, “Cinza”); e a possibilidade de voar, que está na intro e na outro. Estas são temáticas que foram importante para a construção da narrativa álbum?

Sem dúvida. Existem conversas pré-composição para perceber algumas coisas, mas tentei que fosse tudo muito orgânico. A Teresa Salgueiro, por exemplo, já tinha uma ideia, um poema e uma base de letra escrita. No caso do Dino tenho esta relação em que podermos estar a discutir, a falar de várias coisas, depois ligamos ao Kalaf e ele traz mais coisas para a conversa. Sinto que todos os temas de que falaste são quatro grandes grupos de temas que abordo na minha música desde o ATLAS. Não sei se tem a ver com as pessoas envolvidas, se é isso que já me atrai na pessoa no tipo de escrita da pessoa, ou se é também pelo que acontece na sessão. Eu sou muito fã de escrever com as pessoas na sala, de ter essa dinâmica de escrita em que estamos a batalhar, a puxar uns pelos outros. Acho que chegamos a sítios musicais muito desafiantes. 

Na música “Soma”, que também dá título ao álbum, recorres a um sample do Saramago em que ele diz: “Um livro que não está lido é um livro que não existe. Existe como possibilidade. É só a leitura que dá realidade a esse livro. É qualquer coisa que é uma espécie de comunicação íntima entre o autor do texto e o espectador”. Com a música é a mesma coisa? Uma música só existe quando é escutada e na relação íntima com quem a escuta?

Totalmente. Eu adoraria que a frase dele fosse sobre música porque eu sinto mesmo isso em relação à música. Eu acho que é a escuta, a relação com as pessoas, e as emoções que a música causa, que vão tornar a música real. Revejo-me totalmente nisso. É incrível quando, com a tua música, consegues ter uma conversa direta com um momento emocional das pessoas.

Outra música de que queria falar é a “Slide”, em que juntaste o estilo “rasteirinha”, do Rio de Janeiro, com um universo mais soulful ou próximo do afroswing, que também se escuta a partir de Londres. Como é que surge a ideia de juntar esses dois universos?

A rasteirinha é uma espécie de variação de baile funk. Na verdade, a rasteirinha estará para o baile funk, como o tarraxo está para o kuduro. Quando ouvi o exercício do tarraxo, da tarraxinha, percebi que muitos produtores de kuduro pegavam num beat a 140 BPMs, ajustavam duas ou três coisas, e exportavam para uma nova versão a 90 ou a 95 BPMs. O beat era o mesmo, mas podia ser tocado em alturas e moods diferentes da noite. Foi marcante para mim perceber que a mesma música podia ter dois andamentos e duas perspetivas completamente diferentes. Quando ouvi a rasteirinha percebi que podia existir essa mesma relação, mas com o baile funk. O tarraxo está ligado também à kizomba e a outros géneros mais melódicos, com canções e construções mais pop, mas com a rasteirinha sinto que foi algo que ficou por concretizar, o género ficou por realizar. Há muito tempo que tinha o desejo de criar algum tipo de construção musical que usasse essa espinha dorsal da rasteirinha, enquanto sub-sub-género do baile funk, conjugando-a com uma sonoridade que usasse teclas, notas e harmonias. Ainda não tinha tido essa oportunidade e acabou por acontecer agora com estes músicos. Para o Jay Prince, que é inglês, talvez a música lhe tenha soado próxima do jazz britânico, meio swing e dançável, e ele quis logo trabalhar aquele tema. Foi daquelas sessões de estúdio em que numa tarde ele escreveu e gravou tudo. 

Queria ir também à palavra “voar”, que parece ser uma palavra importante na narrativa do álbum. Nós crescemos com os nossos pais, com a escola ou com a televisão a dizerem constantemente que o mais importante é “ter os pés assentes na terra”. 

Exato [risos].

Mas viver com os pés assentes na terra é o mais fácil. Difícil é voar, partir, encontrar nas nuvens um sítio onde não há polícia, mas sim lugar para a imaginação. Porque é que esta palavra foi importante para ti e porque é que a colocaste a abrir e a fechar o álbum?

Eu tentei usar essa intro e essa outro quase como nas histórias fantásticas. Se reparares, nessas histórias, o início da narrativa começa com uma parte real e só depois é que entra o fantástico. Essa transição é como se fossem os tais pozinhos de perlimpimpim: “Daqui para a frente, deixa-te levar, deixa-te voar.” Sinto que a abertura do disco é o abrir desse portal para este sítio imaginário que foram estas jam sessions e todo este processo criativo. Depois, no fim, fecha-se o portal, quase como se esta SOMA fosse o seu próprio planeta. A intro e a outro são um bocado a viagem de chegada e a viagem de saída. Tens essa ideia de “voar”, mas depois tens duas palavras associadas. 

Exato. O título da intro é “Voar/Sal” e o da outro é “Voar/Balanço”. 

Sim. O palavra sal vem do instrumental, que originalmente já tinha esse nome, e porque o primeiro tema do primeiro álbum de 1-UIK Project, o Strategies and Survival, era um spoken word do Kalaf que se chamava “Sal e Cinzas”. Quis ir buscar esse primeiro tema de um disco que saiu em 2004.

Mais uma vez, uma ida lá atrás. 

Sim. Estava a mesmo a ir buscar essa referência. E depois fez ainda mais sentido porque a Teresa Salgueiro trouxe a canção “Cinzas”. Nesse momento fiquei mesmo com a certeza de que precisava de pôr o “Sal” para abrir a mesma porta que se abriu em 2004. Depois, no final, a outro chama-se “Voar/Balanço”. Esse balanço foi uma palavra a que cheguei depois da Sara Tavares ter partido, porque era uma palavra que sempre associei a ela e quis marcar a sua presença também neste disco. 

Na música “Fortuna” juntas duas gerações e tens com a participação de duas vocalistas muito jovens, a Yeri e a Yeni, a cantar com um veterano da palavra que é o Carlão. Pela forma como o encontro se deu, tanto na letra como nas vozes, parece que eles já se conheciam. 

Não se conheciam, mas bateu super certo. Eu comecei a seguir o trabalho da Yeri e da Yeni, trocámos algumas mensagens e elas disseram-me que tinham gravado uma ideia de voz em cima de um beat meu chamado “Lost Arps”. Mandaram-me essa ideia de voz, achei logo incrível e disse-lhes que estava a acabar um disco e que de certeza haveria um tema para encaixar a ideia. Pareceu-me que a textura vocal delas tinha, ao mesmo tempo, tanto de moderno, como de nostálgico, e pensei logo nesse instrumental que acabou por virar o “Fortuna”. 

E como é que apareceu o Carlão? A entrada dele acabou por dar um certo equilíbrio ao tema. 

Se há artista contemporâneo que esteve mais presente na minha vida foi o Carlão, seja enquanto fã, colaborador ou produtor. A ideia de o chamar foi porque ouvi a história delas e senti falta de um contrapeso. E o Carlão veio logo com aquele dica: “Dizem que o tempo cura…” É a última coisa que queres ouvir quando estás triste, não é? Ele agarrou na letra delas, aprofundou ainda mais o tema e ficou perfeito até no equilíbrio das vozes. É talvez o tema do álbum que mais continuo a ouvir. 

Já há muitos anos que não tocas acompanhado de outros músicos em palco. Como é que este álbum vai ser apresentado ao vivo?

Falámos aqui tanto de músicos, de música orgânica e tocada, desta ideia de humanizar o beat, que acho que depois deste disco fazia todo o sentido chamar algumas pessoas que participaram no processo para fazerem comigo o disco ao vivo e para fazerem comigo uma revisão daquilo que são os três discos anteriores. Isto para mim é importante, porque acho que completei um ciclo de quase dez anos de trabalho enquanto Branko. No ATLAS ainda não era um artista, era um side project da minha vida, porque ainda tinha os Buraka Som Sistema. Depois destes dez anos quis voltar a ter esta ambição de ter um disco cheio de energia humana, cheio de pessoas, e tentar trazer isso para palco. Este disco acaba por ser a abertura da minha próxima década.

Os concertos terão um formato fixo com a Ola Mekelburg e o Danilo Lopes ou terão um formato variável em que podes ter outros convidados? 

Há uma estrutura fixa, com a Ola e o Danilo, mas em que vamos poder somar. Acho que vai ser um formato interessante, porque o imprevisível vai ganhar um espaço maior nestas apresentações e acho que vai muito emocionante. Sinto que depois de começarmos a tocar, o concerto vai ganhar cada vez mais um ponto de conforto e aí vamos podemos juntar mais pessoas. 

Tu tens vindo a conquistar novos espaços e novos horários para a música eletrónica e de dança, que não tem de estar circunscrita aos clubes e ao horário das quatro da manhã. Este álbum pode percorrer diferentes tipos de salas pelo país? 

Se calhar até mais que qualquer disco anterior, seja pela musicalidade ou pela performance que vai estar a acontecer no palco. Tenho mesmo essa visão porque há salas lindíssimas no país e onde se conseguem fazer coisas muito bonitas com a luz, o vídeo e com músicos a tocar. Uma coisa incrível nos teatros é que chegas de manhã, e em vez de fazer aquele soundcheck de uma hora, consegues montar, decidir como queres a ciclorama, vês as diferentes opções e possibilidades. Passas tempo a limar pormenores e, quando vês tudo a acontecer, parece que o concerto ganha toda uma nova aura. O espaço também constrói os temas e a escuta. A partir de agora, ninguém me tira desse mundo. 

Queria acabar com algo que creio que nos preocupa a todas e todos. O país cultural onde nasceram os Buraka não é o mesmo que temos hoje e há feitos incríveis que se alcançaram nos últimos anos em termos de visibilidade e diversidade social e cultural. Ao mesmo tempo, vivemos esta circunstância de termos, nos 50 anos do 25 de Abril, uma extrema-direita com discurso completamente oposto a essa abertura a conquistar mais de um milhão de votos com base em discursos que andámos há anos a tentar combater e que infelizmente persistem. Que contributo achas pode dar a música e os artistas para enfrentar este cenário tão difícil? 

É muito óbvio que em Portugal a cultura nunca esteve num estado tão interessante como está agora, e ao mesmo tempo, no lado oposto, está o estado político e social do país. Digo isto refletindo sobre a situação política, mas também sobre a situação social e de Lisboa. Esta é uma cidade que tem de ser um berço cultural, que tem de preservar essa sua função que é muito importante. É exatamente essa sua identidade, como berço de diversidade cultural, que chama as pessoas. Acabarem com espaços como a Casa Independente, por exemplo, para fazer hotéis de luxo, é uma coisa complexa e difícil de perceber. Há aqui muitos lados. Tens esse capitalismo desenfreado, que tem estado muito presente no pós-pandemia, tens o lado político também, e tens o lado cultural. A cultura está num ponto, e o social e o político estão, paradoxalmente, no ponto exatamente inverso. 

Porque é que a cultura não conseguiu traduzir-se em mudanças sociais e políticas mais profundas?

Acho que a cultura acaba por ser a voz do que está a acontecer, da realidade, mas acho que há outras coisas que se sobrepõem. Eu acho que a música teve uma voz forte e veio dar voz a muita coisa que já estava a acontecer no background e que não era tão visível. Mas por outro lado, também havia muitas outras coisas que estavam a acontecer noutro background, que se calhar não eram tão visíveis dentro da nossa bolha, e que agora de repente têm uma cara. No meio de todos os males, a única coisa que vejo como positiva é que agora conseguimos ter um número, conseguimos perceber o que é esta massa política e o que é que ela representa a nível demográfico. Até agora estávamos a viver num mundo em que tinhas o online, os comentários, as perseguições online, como as coisas que aconteceram, por exemplo, ao Dino, quando falou no quão bélico era o hino nacional. Essas reações eram esmagadoras, e tu ficavas: “Será que é o país todo a pensar assim ou são só meia dúzia de pessoas com mil bots?” Agora é mais claro e isso deveria dar-nos a todos uma nova postura, para tentarmos ser melhores.


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