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Fotografia: Carlos Manuel Martins & Diogo Costa
Publicado a: 14/08/2024

A utopia que é "viver a aldeia".

Bons Sons ’24: um festival que é mais do que um sonho lindo

Fotografia: Carlos Manuel Martins & Diogo Costa
Publicado a: 14/08/2024

Acordei esta segunda-feira (12 de Agosto) e lembro-me de estar a sonhar. Era um “sonho lindo”, como cantava o já saudoso Fausto, tão lindo que parecia mesmo só isso — um sonho.

Sonhei que estava perdido num oásis em formato de aldeia onde todos éramos irmãos, onde se botava água na vinha, se cantavam canções de embalar, onde se mudavam os tempos e se mudavam as vontades. 

Nunca tinha ido nem a Cem Soldos nem ao Bons Sons. Estranho, não é? Para um gajo que passou grande parte dos últimos anos a escrever sobre música feita em Portugal, nunca ter ido ao Bons Sons sempre me pareceu estranho. Não era só a mim. “Como assim, nunca vieste aos Bons Sons?”, ouvi várias vezes entre quinta-feira (8) e domingo (11). De facto, era verdade. Ainda bem que o deixou de ser.

Sempre tive algum receio de ir ao Bons Sons, para ser sincero. Ouvia dizer maravilhas do festival — do ambiente, dos concertos, das vibes —, mas sempre me questionei o quão efetivamente reais seriam esses elogios. Seria o Bons Sons uma utopia como me descreviam? Ou seria só uma “margem com tendência para deslumbrar”, como clamam os Glockenwise? Questionamentos se calhar parvos, mas importantes.

Não há dúvida que o Bons Sons opera num ritmo diferente dos restantes festivais de verão em Portugal. Num ano marcado por inúmeros cancelamentos, por preços cada vez mais estapafúrdios (apesar do Bons Sons 2024 não se escapar a essa crítica também) e desgaste do público perante toda esta “hipersaturação” festivaleira, o Bons Sons revelou-se uma verdadeira anomalia neste verão. Além de ter esgotado todos os passes gerais e grande parte dos bilhetes diários, o Bons Sons continua a provar, se quisermos discutir isto a partir de uma perspetiva puramente mercantilista (não sou adepto disso!), que a música feita em Portugal, em todos os seus feitios e formas, vende. 

Porém, há que relembrar que o Bons Sons tirou um ano de hiato em 2023 devido a obras de requalificação no centro da aldeia que o acolhe. O Bons Sons de 2024 não é o mesmo festival de 2022, nem será com certeza o mesmo festival que era antes da pandemia. Afinal, este festival que “mudou a aldeia” de Cem Soldos começou em 2006, primeiramente como bienal, e só depois a partir de 2014 é que “viver a aldeia” se transformou numa tradição anual. E até que ponto o festival não beneficiou desse hiato? Havia expectativa em ver como seria o regresso à aldeia, afinal. O que teria mudado em Cem Soldos? Seria o ambiente o mesmo? O calor ribatejano seria igual ou pior? O Café da Tonita ainda serviria gelados?

Sinceramente, não sei responder a estas perguntas. O que sei do Bons Sons antes de 2024 eram as histórias que me contavam, os cartazes que me faziam sonhar. Não consigo comparar a minha experiência deste ano com aquela que se viveu nos anos anteriores, mas consigo falar sobre o que gostei e não gostei do que vivi em Cem Soldos.



O Bons Sons é um festival único. Disso não restam dúvidas. É um festival onde “em cada esquina, um amigo”. Onde amores do presente, do passado e, com sorte, do futuro, se encontram. Onde não existem sobreposições de horários e é possível desfrutar de praticamente todos os concertos e espetáculos. Onde a música paira por tudo o que é sítio. O público, aqui, faz parte do festival. Não está em Cem Soldos apenas para ganhar brindes. Quando se escreve viver a aldeia, não é a pensar com o intuito de replicar chavões do tempo da outra senhora sobre a simplicidade construída a partir do “tradicionalismo, do ruralismo e do espiritualismo”, como enuncia Luís Trindade em O Estranho Caso do Nacionalismo Português. Escreve-se “viver a aldeia” a pensar em como este público exterior a Cem Soldos acrescenta às histórias escritas nesta localidade da região de Tomar. 

Um bom exemplo disto é o trabalho desenvolvido no palco programado pelo projeto A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria. No último dia do festival, o Coro da Cura, com a ajuda de Rita Dias, transformou o curral numa celebração onde a tradição dos cantares do passado se manteve viva. Mesmo que o público não estivesse totalmente a par daquelas melodias, rapidamente se juntou ao coro a cada nova canção. No final, coro e público cantaram “Labuta”, cantiga a quem os Criatura deram nova vida através do rearranjo de uma antiga canção popular chamada “Vira de Quatro”. Uma prova, mais uma vez, de algo que o Bons Sons tem trabalhado desde o dia zero do festival. Em Cem Soldos, a revolução não se fez. Faz-se. Este público está aqui para isso.

Outro exemplo é o palco Giacometti. É um palco que providencia uma ambiência intimista e revelou-se capaz de gerar grandes festas, mesmo quando se encontrava demasiado cheio, como foi o caso do concerto de Ana Lua Caiano, ou debaixo de demasiado calor (ou seja, sempre). 

Concertos como o de Femme Falafel (um dos melhores do festival e a primeira de três vezes que Lana Gasparøtti tocou no Bons Sons 2024 – props para ela), MALVA (que bonito que foi), Vaiapraia (um enorme momento de emoção e libertação coletiva), Conferência Inferno (estes “vampiros góticos” foram capazes de vencer o calor que lhes queria derreter os sintetizadores e meter o público a bailar) e até de Velhote do Carmo (surpresa: deu mesmo um bom concerto com bastante mais cantatório que falatório) foram alguns dos mais memoráveis desta edição. Ocorreram todos no Giacometti.

O caso de Ana Lua Caiano no Bons Sons 2024 é interessante. O horário e localização do seu concerto foi tudo menos ideal para que a experiência de todos fosse a melhor. Deu um bom concerto, é certo, mas colocar alguém como Ana Lua a tocar num palco pequeno como o Giacometti às 18h45 era algo que devia ter acontecido em 2022, não em 2024. Tendo em conta que artistas com menos cotação do que a autora de Vou Ficar Neste Quadrado tocaram em horário nobre, como é caso de Edmundo Inácio (concerto ok pelas 22h30 de sábado no palco Zeca Afonso aka palco da colina) ou Expresso Transatlântico (concerto morno pelas 20h também de sábado no mesmo palco), a decisão de programação em torno de Ana Lua Caiano é uma que, francamente, não se entende. 

E por falar em programação, que dizer da forma como o Bons Sons gere o momento atual do hip hop tuga? O concerto de Valete foi bastante superior ao desastre do Super Bock em Stock do ano passado, mas a verdadeira questão não é essa. Porquê colocar o Valete no cartaz de um festival como o Bons Sons quando artistas como Riça, xtinto ou zé menos revelam-se escolhas mais interessantes para este festival? 

O Bons Sons até pode oferecer uma experiência única comparado com os outros festivais, mas momentos como este indicam que, se não houver cuidado, o festival poderá seguir a tendência dos restantes em cair num buraco negro de programação preguiçosa. Menos Valete, mais xtinto, menos Twist Connection, mais Bonança, menos Ganso (outro concerto desapontante desta edição), mais Humana Taranja, menos palco Zeca Afonso (ou, pelo menos, metam uns ecrãs que já ajudariam com as dificuldades de visibilidade), mais palco Variações e Lopes-Graça. Ficam estas dicas para futuro. 



Todavia, estas manchas são facilmente removidas com amaciador por tudo o resto que se viveu em Cem Soldos. Os Unsafe Space Garden, a tocar num slot privilegiado à uma da manhã de sábado, recitaram-nos com a sua “tremenda compreensão” e com o melhor concerto desta edição do Bons Sons. Foi um risco de programação que compensou. A banda de Guimarães hipnotizou o público e terá deixado certamente muita gente confusa, mas o seu universo de rock psicadélico-infantil — que incluiu algumas composições em português a ser lançadas em breve — foi uma verdadeira lufada de ar fresco a um sábado quente onde pouco se aproveitou a nível de concertos.

emmy Curl deu um belíssimo concerto no palco Giacometti em torno do seu mais recente Pastoral, o Coro das Mulheres da Fábrica emocionou com a sua performance no centro da aldeia, e fiquei com FOMO de não ter assistido ao concerto de Fala Povo Fala no palco MPAGDP (mea culpa de ter faltado). Para memória de sábado, fica ainda o concerto desapontante dos Cara de Espelho. Muita parra, pouca uva. 

Sexta-feira, por outro lado, foi um dia forte. Os Solar Corona vieram em formato Elektrische Machine para colocarem o público a dançar ao som do seu krautrock ruidoso. No mesmo dia, Gisela João cantou com emoção abril e os Adiafa (que descobri durante o concerto que abriram para a Shakira em 2003 no Pavilhão Atlântico) deram um belíssimo concerto no palco Lopes-Graça a celebrar os 25 anos do grupo bejense. 

No domingo, ao início da tarde, o diálogo entre a guitarra de Rafael Toral e as paredes da Capela de S. Sebastião foi um dos momentos mais bonitos do festival. Mais à noite, a valente putaria do concerto dos MAQUINA. — que, mais uma vez, deram tudo e receberam tudo por parte do público — foi seguida pela sensibilidade de Teresa Salgueiro. A fadista deu um belo concerto, mesmo que fosse algo complicado vê-la a partir do topo do palco Zeca Afonso. A fechar o festival, antes dos últimos afters, The Legendary Tigerman e a sua banda (destaque para a forma como Sara Badalo domina o palco) protagonizaram um grande concerto. Mesmo que Zeitgeist esteja uns furos abaixo dos outros trabalhos de Paulo Furtado (sorry but not sorry), o espetáculo ao vivo do autor de Naked Blues nunca desaponta. Terminar o concerto no meio do público a cantar “True Love Will Find You in the End” foi um contraste delicado perante a musculatura do restante do concerto. Estas são as facetas do lendário homem-tigre — um animal de palco que também é sensível. 

E onde cabe o concerto de Cláudia Pascoal de sexta-feira na equação do Bons Sons de 2024? Não sei. Só sei que o seu pop teatral e hiperativo não é para mim.

Num ano em que se celebrou os 50 anos do 25 de abril, o Bons Sons de 2024 serviu como utopia da demonstração do que seria possível de atingir caso o ideal coletivo triunfasse verdadeiramente acima do egoísmo individual promovido pelo neoliberalismo dominante. Falta ainda cumprir muito de abril, isso é certo. Falta repensar a importância da libertação africana em abril. Falta que a habitação seja um direito para todos, que a libertação coletiva seja atingida para todos os povos, que os direitos LGBT e das mulheres sejam consagrados na sua totalidade. Falta que o trabalhador derrote o patrão e tome controlo dos seus meios de produção.

O 25 de abril tem de ser celebrado, é certo. Espetáculos como Quis Saber Quem Sou, concerto teatral de Pedro Penim apresentado na quinta-feira em formato “festival”, fazem isso. Levam-me, levam-nos à emoção. Escutar aquelas canções da revolução do Zeca, do Sérgio, do Fausto, do Zé Mário, do GAC… é complicado não chorar. Deixa marca. Escutam-se também canções d’Os Tubarões e refletimos — porque isto não é só sobre viver a aldeia, bebé.

A cantiga, claro está, é uma arma. Mas temos de a apontar numa direção diferente. O Bons Sons assim o demonstra. Para caminharmos juntos em direção a essa utopia que abril prometeu, mas que ainda não se cumpriu, é preciso repensar como podemos fazer o povo ganhar. Como se escreveu na Shifter em abril, “50 anos depois do 25 de abril, não deixemos os gestos aos automatismos, não nos acomodemos à liberdade. E muito menos acreditemos na sua universalidade instituída.”

Nesta segunda-feira, acordei de um sonho lindo com um galo a cantar. Pena ter sido só um sonho, não é? Mas em Cem Soldos, esse galo chamado Bons Sons continuará a cantarolar a bem bonda. Nós temos é o dever de o acompanhar.


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