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Fotografia: Renato Cruz Santos
Publicado a: 17/11/2020

Ainda mais palpável.

Bonfim: “Somos como dois putos a brincar num laboratório de química em busca do desconhecido!”

Fotografia: Renato Cruz Santos
Publicado a: 17/11/2020

Alguns meses depois do seu lançamento digital, An Extended Play Record of Assembled Sounds for Different Kinds of Moods, o EP que assinala a estreia dos Bonfim, está disponível em vinil (com edição limitada a 300 cópias).

Acompanhados por Kiko, PZ e Sérgio Alves (aka Azar Azar), Hugo Passos e Pedro Tenreiro deram-nos sons para ouvir consoante as nossas diferentes variações de moods — uma prenda recebida de braços abertos em tempos de clausura e incerteza.

O autor da rubrica Poder Soul voltou a responder-nos e mostrou o seu jogo: falou sobre pensar a comunicação de música orientada para a pista de dança, a “fase entusiástica” que aí vem ou os samples que, juntamente com o seu parceiro de aventura, foi resgatar para servir de base aos seis temas deste projecto.



Quando falámos, em Dezembro do ano passado, por alturas da estreia no SoundCloud do projecto Bonfim, o mundo era um lugar bem diferente. Quase um ano depois, achas que este An Extended Play Record of Assembled Sounds for Different Kinds of Moods ganhou novos significados?

Sinceramente, acho que não. Tornou-se mais difícil fazer a chamada club promotion, porque os DJs estão parados, o que significa que o disco não pode chegar às pistas de dança reais e as virtuais — via podcast ou livestream — não são a mesma coisa e estão ultra-inflaccionadas. Por outro lado, o facto dos mais conceituados DJs, que são, simultaneamente, produtores de culto não terem trabalho, levou-os a concentrar as suas energias em estúdio, a gravar novos discos, e o espaço nas lojas especializadas para coisas novas tornou-se mais reduzido. Ainda assim, uma semana depois do lançamento, o balanço é muito positivo, com metade da edição vendida e um enorme apoio nacional. Talvez o facto de ser um disco de alguma forma intemporal, de cobrir um largo espectro de ambientes e BPMs e de tocar em rádios não mainstream, que fidelizam e formam opinião, esteja a ajudar…

Os músicos e produtores não deveriam estar todos a fazer folk pastoral ou música ambiental ou música para filmes distópicos nesta altura? Faz sentido ainda apontar às pistas de dança? E acreditas que as pistas, tais como as conhecíamos, e os respectivos clubes, claro, algum dia regressarão?

Não posso falar pelos outros, mas naquilo que nos diz respeito, estas limitações parecem estar a incentivar-nos a fazer exactamente o contrário. Estamos a trabalhar em dois beats que fazem parte da mesma “fornada” do EP, e que são declaradamente apontados às pistas de dança e começamos a fazer umas bases menos depuradas, mais intuitivas e menos cortadas – meio re-edit, meio mash-up, com overdubs – que não têm outro destino que não os clubes mais suados. Diz-se que o fruto proibido é o mais apetecido! Em relação ao futuro, acho que quando isto passar, se irá seguir uma fase entusiástica. Quando somos privados daquilo que faz parte da nossa normalidade, aprendemos a dar-lhe o seu devido valor. Foi o que aconteceu na minha geração e na sua relação com a liberdade conquistada no 25 de Abril. O mundo que se tinha si recuperado parecia ter o valor da própria vida!

O som dos Bonfim vive muito do sampling, claro, e na nossa primeira entrevista falámos sobre isso. Mas gostava que desmontasses um pouco mais o processo: há um tipo de discos, de uma época particular, que gostes mais de samplar? O que é que buscas nesses discos: apenas grooves ou algo mais de espiritual até que se possa esconder nessas espiras?

Este EP reflecte muito os discos que fui acumulando em quase 40 anos de carreira de DJ. Como tal a presença de samples de discos soul, disco, jazz funk ou de library music, a maioria gravados nos anos 70, é inequívoca. Mas isso é cruzado com outras origens. O tempo voa e, de repente, dei-me conta que os anos 90 foram há duas décadas, que “pescar” num disco de hip hop, de techno, de house ou até de drum + bass, não é muito diferente dos Stetasonic terem recorrido ao Donald Byrd para compor o “Talkin’ all that Jazz” ou o Q-Tip ter usado o “Smillin’ Billy Suite Pt.II” dos Heath Brothers para o “One love” do Nas. E foi o que fizemos, sem qualquer pudor. Em relação àquilo que procuramos, não será nada de muito específico. Sons, frases, ambientes que nos inspirem, que nos sugiram qualquer coisa… uns levam-nos longe, outros a becos sem saída…

Ainda sobre o sampling: fazes sessões de escuta de propósito para encontrar samples ou vais deixando discos de lado quando os ouves ou até quando os tocas enquanto DJ pensando algo como “um dia destes vou ter que samplar esta parte”. És organizado, manténs algum tipo de lista de discos que poderão merecer atenção sampladélica no futuro?

Sou completamente desorganizado e a noção de que isto ou aquilo é “samplável” surge sempre de forma imprevista, quando estou a ouvir os meus discos ou a preparar a mala para o próximo gig. Como acho que não me vou esquecer, não registo essa sensação em nenhum lado e, muitas vezes, depois esqueço-me da sua origem! O Hugo está sempre a dizer-me para tomar notas, para escrever, mas burro velho não aprende línguas! Às vezes escrevo nas capas interiores coisas do tipo “A3 sample”, “B2 beats”, “C1 clap”, mas é muito raro… Ainda assim, fica sempre alguma coisa!

Agora que o disco saiu em vinil, como é que o sentes? Já o tocaste no teu sistema caseiro, obviamente, já lhe testaste o som em mais algum contexto? Este tipo de música ganha algo, em termos sónicos, quando é impressa neste suporte?

Sinto-me realizado! Ter o objecto na mão parece conferir-lhe outra solenidade. Está bonito. O design do Marco Oliveira foi bem tratado, quer a nível da impressão, quer ao nível da qualidade do papel. E depois há o som. Já seria, naturalmente, mais quente, mais dinâmico (este formato garante isso, seja em que género for), mas o facto de termos investido num corte — ou seja num mastering feito a pensar no vinil — feito pelo Jason Goz, um homem com uma sensibilidade especial para música mais “bassy” e que assina muitos discos de gente como Burial, Kode 9, Skream ou Flying Lotus, entre outros, ajudou a que o disco ganhasse outra dimensão.

O Sérgio Alves, o Kiko e o PZ são os convidados deste disco. Podes falar-nos de cada um deles em particular, porque os foram buscar?

O Kiko é um cantor do outro mundo. Sensível, versátil, generoso e com um domínio absoluto do instrumento que é a voz. Além disso, o facto de ter crescido nos Estados Unidos, além de lhe ter dado um sotaque imaculado, deu-lhe uma compreensão imediata e intuitiva de todas as expressões da sua música popular, do jazz ao folk, passando pela soul. Depois, sabendo que os nossos gostos e interesses não são sempre coincidentes, está sempre disposto ao risco e consegue resultados surpreendentes em contextos que à partida não serão naturais para ele. 

O Sérgio é um teclista de excepção. Não porque seja um prodígio técnico, embora esteja a um nível elevado, mas porque capta aquilo que procuramos com muita facilidade e interesse. Começou a passar discos muito novo e partilha connosco grande partes das nossas referências estéticas e isso torna tudo muito fluído. Se começar a ser mais focado no seu próprio trabalho vai-nos dar muitas coisas boas. Algumas estão quase a chegar aí, nas estrias do tão desejado vinil!

O PZ é um mago da electrónica. A suas bases instrumentais são, muitas vezes, relegadas para segundo plano nos seus discos. O seu humor e as suas letras desconcertantes sobrepõem-se, mas a sua evolução, maturidade e autonomia a nível instrumental são absolutamente excepcionais. E quando se tem amigos com este talento todo, dispostos a dar uma perninha, seria um crime não aproveitar.

Gostava também que nos guiasses através de uma sessão típica de Bonfim: como é que funciona a dinâmica criativa que tens com o Hugo? Tudo começa nos samples que levas para cada sessão?

Somos como dois putos a brincar num laboratório de química em busca do desconhecido! Só que corremos menos riscos. Se correr mal, vai para o lixo. Quando “explode”, vai para um disco. Agora a sério, começamos por nos juntar na minha sala e a explorar os discos que estão nas estantes. Falamos pouco, tirando os meus disparates habituais (que nunca têm a ver com aquilo que estamos a fazer…). Sempre que encontramos ou apresentamos um ao outro matéria prima promissora, trocamos um olhar e começa a MPC a funcionar. Temos muita afinidade em termos de gosto e o Hugo é muito meticuloso. Corta cada sample à “unha”, nota por nota o que nos permite chegar a possibilidades infindáveis que, quando começamos a explorar, nos dão um imenso prazer e acabam em muita brincadeira, como a forma como ele goza com minha desengoçada expressão corporal, quando estou a experimentar uma qualquer programação rítmica, sem a quantização activada ou com os compassos desmultiplicados em 64 — chama-lhe o “Swing Tenreiro”! Uma vez guardadas as bases é tempo de as digerir lentamente, mas sem complicar. Muitas são liminarmente excluídas, outras ficam a marinar e outras avançam. Destas, umas têm pernas para andar de forma completamente autónoma, como o “Apresentação” e o “Bonfim”, outras inspiram canções, como o “U know U can (dance)” e o “Dilitantte”, outras pedem colaborações mais intensas, como o “Alfa Romeo” e o “Big Ben Boy”, onde o Sérgio se torna numa espécie de membro honorário do Bonfim, abrindo-se caminhos que nem nós controlamos. O “Big Ben Boy”, que é uma das faixas que me foi conquistando cada vez mais, naquela sua fusão improvável de electro-funk com uma TB acid house e uns drones techno que, de repente, vira “Bitches Brew”, nasceu de um sample que acabou por ser descartado apesar de ter suscitado toda a sua construção. Depois de tudo registado, junto-me com o Hugo para trabalhar as estruturas e os arranjos finais dos temas, que tivemos a felicidade de puder enviar para o Zé Nando Pimenta, que os potenciou ao máximo com as suas misturas.

Começa a identificar-se uma nova geração que mantendo os pés firmemente plantados nos clubes, em termos estéticos e obviamente metafóricos, claro, não deixam de ter no jazz uma das suas mais fortes referências e o Sérgio Alves enquadra-se perfeitamente nesse cenário. Essa ligação, entre o jazz e a dança, foi algo que sempre te interessou, desde pelo menos que samplaste contrabaixos para Mr. Spock. Continuas, imagino, muito atento a esses cruzamentos. Quem tens seguido nesse campo, tanto em Portugal como lá fora?

Sabes que a minha ligação com o jazz remonta aos anos 80. A coisas como os Working Week, os Weekend, os Style Council, o “Absolute Begginers”, os Rip Rig + Panic, os Maximum Joy ou os Pig Bag e a Y, de Disc O’Dell, responsável pelo meu primeiro contacto com o génio de Sun Ra. As visitas ao Wag, quando ia a Londres, por sugestão do Gonçalo, mais conhecido por Luciano Barbosa, e, mais tarde ao Dingwalls, onde ouvi DJs como o Gilles Peterson ou o brilhante Baz Fe Jazz, a quem comprei um par de discos, quando resolveu converter-se a jeová, deixar de passar música e vender toda a sua coleção. Depois, no tempo de chamado Acid Jazz, fui um dos seus mais militantes activistas, entre nós, ao lado do Paulo Rodrigo, do Pedro Passos, do Johnny. Tudo isto muito antes de me aventurar nos territórios do, então, chamado nu jazz com Mr. Spock, ou de conhecer o Hugo, com quem, além da paixão pelo hip hop, partilhava o respeito pelo papel tutelar de figuras chave da fusão como o Herbie Hancock, o Roy Ayers ou os Mizell Brothers, entre outros. A verdade é que o jazz, como centro das atenções, tem ido e vindo, até porque o hype tem uma lógica de porta giratória que ora acolhe, ora “expulsa” as várias linguagens da música popular conforme as tendências vigentes, mas a sua presença na música moderna, desenhada para as pistas de dança, tem sido constante, quer seja enfatizada ou não. Há tanto jazz nos discos do Kirk de Giorgio ou do Morgan Geist dos 90, como nos do Lonnie Liston Smith ou do Weldon Irvine dos 70. É claro que existem umas fases mais criativas e mais estimulantes do que outras e é isso que se tem passado nos últimos anos e que se reflecte nos meus consumos, como se pode ver balaços anuais que faço para Antena 3, desde 2017, onde estão obras de nomes como Ruby Rushton, Makaya MacCraven, Ill Considered, Binker + Moses, Angel Bat Dawid, Damon Locks Black Monument Ensemble, EABS, Jaimie Branch, Junius Paul, Kokoroko, The Nat Birchall Quartet, etc. O facto de existir uma geração de músicos que cresceu a ouvir desde hip hop e house a drum + bass e broken beat e de fazer questão de fazer reflectir essa herança nas suas criações é decisivo, como é a crescente multiculturalidade vivida nas grandes cidades, tornando o consumo de Fela Kuti ou de Mulato Astatke tão natural como o de James Brown ou de John Coltrane ou a “descoberta” da faceta mais fusionista e espiritual do afrocentrismo dos 70, e do cada vez maior reconhecimento da importância de selos, outrora vistos com desconfiança pelo meio mais ortodoxo, como a Strata East, a Tribe ou a Black Jazz, entre outros. Mas já seria assim quando os 4 Hero editaram o Two pages, mostrando o quanto Charles Stepney havia sido importante na sua formação, o em projectos de Carlos Niño, como Build na Ark, onde juntou uma nova geração de músicos a nomes como Phil Ranelin ou Dwigh Trible, só que, nesses momentos, não se enfatizou tanto a palavra jazz. A coisa andou sempre aí, a germinar, mesmo sem que dessemos conta — não é por acaso que as ligações da International Anthem Recording Co. com a Thrill Jockey, uma das grandes referência do post-rock dos 90, são tão evidentes. As sessões colaborativas de Chicago, que levam esta cidade a ser, na minha opinião, o mais estimulante polo da criação Jazz contemporânea, certamente que não começaram ontem. Por outro lado, confesso que o excesso de atenção de que goza o género e as exigências de mercado a que isso está a conduzir, pode, a exemplo do que se passou várias vezes, levar à sua cristalização, e todo esta sensação de descoberta dar lugar a uma certa previsibilidade. Acho até que já existem alguns sintomas… Entre nós, vivemos uma fase muito dinâmica, cheia de jovens músicos e compositores de enorme talento, que também fazem reflectir as suas origens nas suas criações, embora seja completamente distintas daquelas que se exprimem em Londres ou em Chicago. E aí, perdoa-me a presunção e bairrismo, neste momento o Porto dá cartas. O trabalho da associação Porta Jazz, por exemplo: é notável o enorme leque de gente cheia de talento que se cruza neste âmbito e, para mim, um tripeiro de gema, é motivo de muito orgulho, ao ponto de lhes ter proposto uma parceira, para que possam “chegar” ao vinil e que gostava que pudesse arrancar com uma colectânea que faça o balanço daquilo que fazem, desde 2013, curada por mim. Espero que aceitem e que a ideia tenha pernas para andar!

Ainda há dias revelaste um sample num passatempo que fizeste no teu mural de Facebook. Podes avançar pelo menos mais um de par de pistas que nos encaminhem para alguma da música que samplaram nos Bonfim? Alguma coisa portuguesa?

Começando pelo fim: não há nada português, não porque que tenhamos qualquer preconceito em relação à música nacional, mas porque, em vinil, para além da meia-dúzia (em vinil!!!) que editei na Nortesul e na Kami’Khazz, não são muitos os discos que tenho. GNR, Repórter Estrábico, Pop d’el Arte, Cosmic City Blues e pouco mais… Mais pistas: há library alemã no “U know U can (dance), jazz funk/easy listening britânico, misturado com leftfield electronica dos 90 em “Bonfim”, um épico disco, daqueles que ocupam lados inteiros de LP, no “Alfa Romeo”… vamos ver se, mais tarde ou mais cedo, são detectados!

Não vais demorar mais 15 anos para fazer um novo disco, espero: já há planos para mais volumes de Bonfim?

Desta vez acho que não! Já não tenho que ver outros artistas e os seus discos como a minha prioridade a nível profissional, e o que isso me tira em estabilidade financeira, dá-me em liberdade pessoal… Existirão coisas novas já no próximo ano. Não serão LPs, nem EPs, às tantas até nem terão capas… mas um par ou um trio de 7 ou 12 polegadas há-de sair, quase de certeza. Sempre com tiragens muito reduzidas, de forma a se tornarem futuros objectos de colecção!


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