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Fotografia: Bernardo Casanova
Publicado a: 18/02/2022

A apresentação oficial.

benji price: “O ígneo sou eu a olhar para mim enquanto músico”

Fotografia: Bernardo Casanova
Publicado a: 18/02/2022

Em 2017, benji price aparecia no meio da neblina com uma espada, no sentido figurado, na mão. “40 oz. freestyle“, a primeira vez que o ouvíamos, era confrontativa, um desafio desbragado a todos os que na altura causavam ondas maiores a partir do rap português. Nesse primeiro embate, e numa questão de meses, auto-intitulou-se “Zidane Lusitano” ou “Kendrick da tuga” quando chamado ao microfone, apresentando-se sempre com a fome de quem tinha estado muito à espera de uma oportunidade para reclamar o lugar que achava ser o seu.

Nos anos que se seguiram, João Ferreira foi o pilar (discreto) do sucesso da Think Music, servindo de produtor e engenheiro de som para muitos dos artistas da editora. Também foi sendo chamado para trabalhos fora — Ana Malhoa, Agir e Diogo Piçarra são nomes menos óbvios que requisitaram os seus serviços. E ainda teve tempo para esgrimir argumentos em verso com quem questionava a validade da sua equipa e das suas canetas.

Em 2020, SYSTEM, álbum colaborativo que criou ao lado de ProfJam, encerrou um dos capítulos mais marcantes do passado recente hip hop nacional, mas também serviu para comprovar aquilo que mostrou desde o primeiro momento em que apareceu: havia ali um rapper prendado e com perfil identitário vincado, um produtor com toque de Midas, um esteta capaz de compreender diferentes linguagens e torná-las em canções. O trabalho com xtinto elevou-o a outros patamares, consolidando uma ideia de que não só existiam rimas infinitas em si como também tinha dom para refrões — e, mais uma vez, fê-lo com mestria ao lado de Prodígio e Mizzy Miles em “God Mode“, por exemplo.

Numa longa conversa que também incluiu um faixa-a-faixa, benji falou sobre tudo um pouco: desde a construção deste ígneo, o seu primeiro longa-duração a solo, ao lado daqueles que o ajudaram a chegar aqui, à questão de publicar as suas letras ou, até, a inclusão involuntária naquele que foi o beef mais mediático dos últimos anos.



Começas na sombra, nos bastidores, na sub-cave da coisa, completamente confortável com ver as pessoas à tua volta a captar a atenção, apesar do teu contributo para que isso acontecesse tenha sido determinante, e depois, por alguma circunstância — eventualmente por necessidade própria, tu dirás, foste assomando ao holofote e mostrando que também eras capaz de lidar com essa exposição. O primeiro momento de fôlego em que tu demonstras as tuas capacidades numa longa-metragem e não apenas numa curta é no SYSTEM, mas ainda assim com uma parceria. E agora, benji price na capa, the only name above the title. O que é diferente agora e o que é que aconteceu na tua carreira para tu sentires que este era o momento para chegares a este estado das coisas?

Resumidamente, o que acontece é: eu, em primeira instância, senti que já não tinha muitos sítios para onde ir enquanto produtor, do ponto-de-vista do sucesso — eu já fiz as platinas, os ouros e os milhões e essas coisas todas, e colaborei com bué gente. Isso soa profundamente arrogante, mas é o que é. Já fiz isso. Obviamente gostava de continuar a fazer, mas já não me traz nada de novo.

Isso validou-me durante muito tempo… não me validou muito, mas ia-me validando porque isto de ser músico também é um bocado estar eternamente insatisfeito com o que está a acontecer. Mas ia-me validando, e chega a um ponto em que isso já não me valida mais. E eu penso, “o que é que posso fazer a seguir? Não sei”. Ainda por cima com o passar do tempo eu só queria fazer mais música e queria ter mais controlo sobre a música que fazia. Já estava a chegar a um sítio em que eu começava a trabalhar com um artista e ao fim de 30 minutos apetecia-me dizer, “opá, vai-te embora que eu faço a faixa”. E não vem de um sítio de falta de capacidade do outro, sou eu que começo a ficar tão entusiasmado que me apetece assumir o controlo. Aí, o único passo lógico seria: “eu tenho mesmo de começar a fazer música”. Em nome próprio. Isso tem de ser uma cena, já não pode ser uma nota de rodapé, uma cena profundamente só ostentativa do género: “olha, eu rimo bué. Fim. Agora vou ficar aqui mais não sei quanto tempo”.

Não é uma manifestação de ego. 

Não. Chegou a um ponto em que eu queria fazer isto. O SYSTEM, como eu já tinha dito quando ele saiu, foi uma coisa acidental. Por acaso calhou, foi um filho da circunstância. Foi a pandemia, foi essas coisas todas, não vale a pena estar aqui a papaguear as razões novamente. Mas assim que conclui o SYSTEM, eu volto para o sítio onde estava antes dele, que é, “apetece-me fazer música”. E agora como já não tenho aqui um ProfJam com quem eu ainda sinta muita necessidade de fazer música — e eu e o Mário divertimo-nos muito a fazer música juntos –, isto está fixe por enquanto, ou seja, enquanto cantores, não necessariamente do ponto-de-vista de produção — isso quererei fazer sempre. Se ele me disser, “olha, manda lá um beat“, eu vou fazer. Apetecia-nos muito fazer música nessa altura. Fechando isso, eu continuo com sede de “pá, eu quero fazer alguma cena, quero fazer um álbum, vou fazer um álbum, é mesmo isso que eu vou fazer”. E eu tenho de fazer um álbum só para experimentar fazer um álbum. É isso. Este álbum, e acho que isso se nota, sou eu a tentar a fazer um álbum. A aprender a fazer um álbum. Ter de dar-te 40 minutos de música só minha. 

Então, explica-nos o que é que é na tua cabeça é um álbum? Que objectivo era esse que te propuseste a alcançar? 

Cada vez mais é uma zona extremamente cinzenta e lamacenta. Sempre foi assim, mas agora é cada vez mais evidente. Um álbum é o que tu quiseres. Claro que nos anos 70 havia cenas de prog rock… um álbum eram três faixas e cada uma tinha 15 minutos. Agora, as pessoas parece que, devido ao digital, já conseguem ter um output tão grande de produção que têm necessidade de lançar coisas em bloco. Ou seja, têm de lançar um LP. 

Mas um álbum não pode ser apenas um conjunto com mais de 10 faixas. Ou seja, não é o número de faixas que define se uma coisa é um álbum ou não.

Mas, na sua essência, é isso. Se tu fores à matriz, um álbum é um agregado de faixas ou um agregado de minutos. 

No entanto, o hip hop encontrou uma escapatória para isso chamando a esse conjunto de faixas mixtapes, playlists, projectos… fugindo sempre da palavra “álbum”.

Porque, ao mesmo tempo, todo este background histórico parece que confere uma certa imponência à palavra “álbum”. Não, o álbum é uma coisa com uma intenção, e foi conceptualizada, há aqui toda uma visão artística que é suposto estar agregada e que só pode existir desta forma. Por consequência é um álbum. Eu aplicando isto a mim mesmo foi: “como é que eu faço 40 minutos de música que não soe só a uma compilação de coisas…”, mas ao mesmo tempo não sabia fazer, pá.

Tu, no início, referiste que isto pode ser uma suite continua e que as tuas rimas podem ser encadeadas num único texto. 

Exacto, pode ser só um texto extremamente longo.

Tematicamente, há um conceito que tem a ver com uma ideia de deixar cá o legado. 

Exactamente. É muito auto-referencial e curiosamente foi uma coisa que eu já tinha mencionado: o álbum vai-se tornando mais depressivo, se calhar de uma forma mais subtil. 

Pensar sobre a nossa própria existência costuma dar nisso.

Começa ali a existir uma reflexão acerca da futilidade das coisas, que é uma coisa que me interessa muito explorar mais à frente. Mas como eu sei que quero fazer um álbum, e não sei que álbum é esse, mas quero fazer O álbum. Tem de haver aqui um dia de treino. Este álbum é ir aos treinos. Com isto eu não quero minimizar. Eu estou extremamente orgulhoso do que fiz. E isto para mim está um grande álbum. Isto não é uma brincadeira, não é um tutorial, não é uma compilação de “é, olha aí, consigo fazer um monte de músicas”. Não. Eu quis mesmo fazer uma coisa coesa. No entanto, o que eu me apercebi fazendo a coisa é que estou a tentar fazer a coisa. Isto tornou-se muito meta. 

Fazer um álbum sobre fazer um álbum. 

Exacto. Mas, ao mesmo tempo, isto não é uma coisa que esteja lá no texto. Eu não me refiro a isto textualmente. A minha preocupação é: como é que eu transmito às pessoas esse feeling? O feeling que eu tive, que é “estou aqui a tentar fazer qualquer coisa, eu não sei bem o que é que eu estou para aqui a fazer”. Eu sei o que é que estou a fazer, mas não sei bem o que é que estou a fazer. Estou à toa e não estou à toa. Então, daí é que me surge a ideia dos voices e da viagem de metro, que é um fragmento de tempo hipotético. Este álbum, como tu o ouves, não existe literalmente assim. Ou seja, eu não estava a tocar o álbum e a ouvir esses voices antes. No entanto, é representativo de muitas viagens que já aconteceram. Os áudios são todos verdadeiros. 

Ninguém fez acting

Ninguém fez acting, foram mesmo sacados do telemóvel. 

É documental, não é ficcional. 

Exacto. Ou seja, a viagem em si é ficcional mas é suposto representar algo. E a maneira que eu consegui fazer isso foi misturando as duas ideias: eu quero que tu ouças o álbum como eu o ouvi muito tempo, que foi a ir de um sítio para o outro, e com interrupções, mas ao mesmo tempo quero que tu sintas mesmo o real disso. Não queria fazer ali um momento… que é tipo, sei lá, o Sippinpurpp a mandar-me um voice a dizer, “yo, mano, tive aqui a ouvir a tua cena, chorei bué, álbum incrível, top 10 all time“. Mão queria que fosse uma cena dessas, nem que fosse bué dramática nem o que quer que seja. Tanto que esses áudios que tu ouves são áudios desinteressantes, ninguém está a dizer nada de substancial, é isso tipo de coisas. O único que acabou por ser mais sério é o áudio final, porque aí à mesma a quarta parede assumida de eu dizer: “quantas vezes é que já ouviste isso?” Aí é a quebra final. Foi a melhor solução que me ocorreu. Pensei muito como capturar a essência disto e foi a melhor maneira. 



Tem piada estares a falar disso porque de repente muda a perspectiva do próprio disco. Íamos perguntar, por exemplo, porque é que as participações eram de pessoas tão próximas de ti, achámos que ias ser mais arrojado por uma razão: se calhar és um dos melhores A&Rs em Portugal e ninguém sabe. A Think Music é a evidência disso e quase ninguém percebe que houve alguém que escolheu aquelas pessoas a dedo. Por isso, havia uma expectativas de mais nomes desconhecidos, mas agora percebe-se o porquê de não ser assim. 

Se eu tivesse de descrever este álbum sou eu a olhar para mim mesmo enquanto músico. Ou seja, eu acho que isto vai ser o primeiro e último álbum do benji price. Eu já percebi como é que isto se faz. Já lá cheguei, agora quero mudar a minha voz. Quero ir para outra coisa. Cantar. 

Vai ser o unplugged

E não quer dizer que eu vá abdicar disso para sempre, continuarei sempre a fazer faixas desta forma extremamente hiperbólica de mim mesmo, isso existirá sempre de alguma forma ou de outra, aquele tema em que eu estou a dizer, “pá, eu sou o maior desta porcaria, ninguém rima mais do que eu”. Essas banalidades todas. 

Nota-se ao longo das faixas que foste lançando que foste ficando mais confiante porque começaste… a primeira faixa que nós ouvimos tua estavas com muito processamento na voz. 

Imagina, não que recaia muito nisso do ponto-de-vista de mistura, falando de uma questão mais técnica, mas eu gosto bué do conceito de adulterar a minha voz.

Como recurso artístico não como defesa. 

Sim, como recurso artístico. Só que eu comecei o álbum a fazer muito isso e acabei o álbum bué a não fazer isso. Não é a falar, obviamente, mas é muito mais conversativo na sua natureza. Para mim, isto já está. Adoro isto que fiz, isto é a melhor versão de benji price o rapper… não é a melhor versão mas é a melhor versão que eu consegui fazer até agora e já não estou a pensar nada nisto, agora quero fazer outra cena, não sei que cena é que será, nem sei bem como é que irei abordar, mas já está, este capítulo já está encerrado.

A cronologia da coisa é: tu no SYSTEM és apresentado a um artista de um ponto-de-vista mais massificado, tu és apresentado a um chavalo que é o benji price, que está com o ProfJam, oxalá tenhas gostado. “Ok, este gajo rima”. E eu a essas massas digo: “ok, curtiste, né? Então, toma lá um álbum desse gajo. Diverte-te”. Agora já tenho um repertório maior. Mas é como já mencionei noutras circunstâncias: eu em seis anos de carreira se fiz quarenta faixas foi muito. 

Pois, também havia essa pergunta: fizeste muitas canções e foste cortando ou foi tudo à conta?

Fiz, ficou. Acho que houve ali uma ideia ou duas que não desenvolvi, que pensei, “ah, isto é interessante”, mas depois fica para outra altura, logo veremos o que é que acontece com isso. Se me dissesses assim, “bro, cospe-me lá aí um som, uma cena que nunca tenha saído”. Eu tenho uma letra. E essa letra está num som. 

Então falemos do reverso dessa medalha que é a música. O que é que há de diferente musicalmente aqui, esquecendo as partes dos versos neste disco?

Acho que é o mais ambicioso…

Usaste durante a explicação dos temas uma palavra: harmonia. E isso já implica um pensamento musical muito avançado.

Eu as outras coisas que fui fazendo como as fazia para outrem tinha sempre de manter isto num formato que podia ser o mais automático e instantâneo impossível. Se for fazer uma faixa para o Fínix MG, que é uma pessoa cuja música assenta acima de tudo na sua palavra, eu se calhar não vou estar aqui… e isto não é menosprezando o gajo, de todo, ele é um dos meus rappers favoritos de sempre… mas se calhar não vou estar com grandes preocupações disso. Agora de repente pude só fazer eu e pensei, “ah, deixa-me lá fazer isto de uma forma que para mim seja interessante”. Uma abordagem mais teórica. E como é que eu consigo empacotar isto para que o público não repare? Tanto que no álbum, à excepção de uma, as faixas começam onde as outras acabam harmonicamente, de alguma maneira. Está lá sub-entendido no acorde…

Ou seja, é mesmo a ideia de uma suite. E a produção é toda in the box ou tens muita colaboração externa de músicos… o que é que estamos ali a falar?

Temos o SPLINTER, o Caspi, o Mizzy Miles, o Loner (que fez o “Tribunal” comigo). O álbum não é tão in the box como parece. Tem lá muita guitarra real, tem lá muita bateria que é real e depois reprogramada, há coisas que eu fui buscar do meu baterista, que é o Alex Bastos, que também co-produziu dois temas deste projecto. E que também, com esperança, irá tocar comigo ao vivo. Então, ele não é tão in the box quanto parece se calhar. E mesmo o que eu fiz com a máquina foi a tentar mimicar cenas analógicas. Eu fartei-me de utilizar Junos, Jupiters e Moogs, mas usei emuladores. Há uma companhia muito célebre que é a Arturia — eles fazem reproduções muito fidedignas desses sintetizadores. Obviamente há lá uma faixa ou duas que são do stock e é feito intencionalmente, mas muito do álbum tem coisas analógicas e o que não é é um fac-símile, sou eu a tentar que aquilo soe analógico. 

Isto significa que ao fim do dia tu não queres que sejam apenas MCs ou aspirantes a MCs a tirar notas quando te escutam, mas também produtores, não é?

Exactamente. E curiosamente é uma coisa que com o passar do tempo cada vez mais pessoas me vêm falar acerca disso.

“Como é que fizeste aquilo?”

É um bocado isso. Não é como é que fizeste, é como é que pensaste naquilo. E eu fico assim, “pá, obrigado, isso é o melhor elogio que me podes fazer”. Ainda há pouco tempo eu estava a fazer os arranjos do álbum para isto depois ser tocado ao vivo com os meus colegas músicos que irão tocar comigo e o SPLINTER, que produziu muito do álbum, veio falar comigo a dizer, “mano, eu agora estou aqui a desconstruir isto e tem bué coisas muita espertas, pá, que nem estava a pensar nisto na altura”. E não é como se ele não fosse um músico com formação. Eu acho que a malta que produz está tão habituada a não pensar nisso que quando faz zoom out de repente é tipo, “isto está lá, eu se calhar também consigo fazer isto desta forma”. E digo uma coisa: cada vez mais vês produtores que têm algum tipo de background real, palpável. Ou tocaram coisas, ou andaram no conservatório, ou o quer que seja. Isto não é para desvalorizar ninguém, claro que não. O Keso tem, parafraseando, uma barra muito célebre que se não estou em erro está relacionada com ele não saber distinguir um fá sustenido de um dó. 

O Zeca Afonso também não sabia. E assobiava tudo o que compunha. E, no entanto, cá estamos nós.

Não há problema nenhum com isso. Mas é interessante que agora mais pessoas em Portugal se calhar com um bocadinho mais de formação, utilizando essa palavra de uma forma muito vaga, comecem a gravitar para o reino do hip hop. Isto nos states já acontece desde quase do início. Houve sempre músicos de jazz envolvidos, tu vais ver uma entrevista do Pharrell em 2000 e ele vai estar a dizer: “pá, eu gosto bué deste beat que fiz para o JAY-Z porque estou a tocar bué acordes de nonas e então isto soa-me bué intenso”.



Aproveitando que falamos em produtores: como é que eles entraram neste disco? O Mizzy já explicaste que aconteceu quando estavas a fazer a “God Mode”. 

Foi o único caso paralelo. As outras coisas vêem de um sítio de eu queria não me limitar à minha própria imaginação, neste caso. Eu nunca fui um gajo que colaborasse muito de uma forma bué directa. Sempre tive muito dedo em tudo o que fiz, mas não eram propriamente co-produções. É mais tu tens uma ideia base e eu vou tentar refinar isto ao máximo e farei o que for preciso. O SYSTEM é praticamente todo produzido por mim. Tens ali a ajuda do Loner e do Lazuli, que esses beats foram feitos a meias, e já foi num preâmbulo deste processo, mas neste aqui eu pensei, “em vez de me estar a frustrar bué, a pôr a carga toda em cima de mim, vou mas é falar com pessoas que respeito, que adoro o trabalho delas, não sei porque é que não estou a fazer nada com elas”. E, basicamente, ajudaram-me a fazer músicas. É claro que a iniciativa partiu sempre de mim porque o álbum é meu mas tiveram papéis absolutamente determinantes em como é que isto soa. Este álbum sem o SPLINTER, o Cryptic, o Loner, o Alex e o EU.CLIDES não era a mesma coisa. 

A cena do EU.CLIDES é mais uma de A&R. 

Ele surge um bocado nessa lógica de A&R. Quando eu falei com ele, ele estava muito escondidinho. Ele tinha feito o “Ira Para QuÊ?” e acho que tinha mais uma coisa. Tenho a sensação que ele tinha mais algo na rua. Mas isto é pré o EP e o Festival da Canção e essas cenas todas. Então, eu falei com o gajo logo nessa altura e disse-lhe assim, “mano, tenho aqui uma faixa que adorava que a acabasses, mais tarde vou falar contigo, ’tá-se bem?” E ele disse, “bora, claro que sim”. A partir do momento em que finalmente consegui chegar a essa versão da “Girassóis” mandei-lhe, ele devolveu-me e eu disse “pronto, incrível”. Em 10 segundos conseguiste mostrar que tens um timbre vocal mais bonito que eu — e muito característico. E ele é um ganda músico. Então, para mim, claro que tinha que estar no meu projecto. 

No entanto, só para também fazer este reparo: eu não queria que isto fosse um projecto produzido por outras pessoas. Eu precisava de manter-me com uma visão e eu só queria colaborações que eu sentisse que potenciassem essa cena. Por isso é que a música do Mizzy Miles é extremamente anómala, eu é que por acaso senti que fazia sentido. Que se ajustava. Eu acho que nunca serei de fazer um álbum nesses termos. Só se um dia me der na cabeça fazer uma mixtape. Mas acho que não era mesmo capaz. Não há nada de errado nisso, mas é da minha personalidade. Não era capaz de fazer um álbum que é, ‘ok, agora vou aqui buscar um beat ou dois ao Lhast, agora vou buscar aqui um beat ou dois ao Charlie”, que obviamente são óptimos produtores. Não quer dizer que não os convide a colaborar comigo mais à frente. Que eu diga assim, “olha, tens aí alguma coisa para adicionar esta ideia em concreto?” Para mim [ceder tudo a outras pessoas] soar-me-ia sempre a um cadáver esquisito. 

Mas o hip hop actualmente é muito isso. Os creative camps em que de repente olhas para as fichas técnicas dos discos americanos e vês 15 nomes nos créditos de uma faixa. 

Eu estou a sentir que para aí se ruma [em Portugal]. Isto parece que vai acontecer. Mas, acima de tudo, tem a ver com constrangimentos de indústria. Acho que, aqui falando de uma forma bué franca, não há dinheiro suficiente para rodar essas pessoas. Eu nunca quereria que alguém não recebesse pelo seu trabalho. Não posso chamar quatro músicos e dizer-lhes “agora ardeu”. 

Quando uma canção gera cinco milhões é fácil dividir por 10. 

Exactamente. Aí está tudo ok. Agora quando estamos a falar de uma indústria em que fazendo um single de platina é metade de um ano de salários mínimos. É verdade. É um facto. Se tu meteres isto em contexto… é muito difícil fazer um single de platina!

Mudando o rumo da conversa: passas muitas horas no Genius a corrigir as tuas letras que lá estão ou não?

Nunca. Eu fiz isso…

Mas já te riste ao ler aquilo ou não?

Não, não. 

Tu costumas meter as letras na descrição ou não?

Eu meto no comentário, mas também costumo mandar para a malta do Genius porque eles começaram a pedir.

A Genius paga direitos das letras em Portugal?

Nada. Cá em Portugal aquilo é uma Wikipédia. 

Eu já fui ao Genius uma ou duas vezes e anotei. Houve uma única vez que eu fiz uma correção. Em que eu tive de ir lá e disse mesmo, “mano, não é mesmo isto, eu não quero que isto de repente seja algo. Não, não é isso, eu preciso de meter aqui um travão nesta conversa”. Foi a única circcustância em que isso aconteceu, mas já me aconteceu atrás das cortinas… por exemplo, e isto aqui é a coisa mais arrogante que eu sou capaz de dizer: a minha letra do “Girassóis” teria sido a primeira letra de Portugal a estar completamente anotada no Genius se não existisse uma música de um rapper muito underground que está toda anotada porque, suspeito eu, terá sido ele ou um tropa. Eu fico a pensar assim, “pá, esta música tem 500 views, tem uma letra enorme e isto está tudo anotado. Se isto não é ele, é alguém que o conhece”. Não vem da ideia do que o Genius quer, que é uma contribuição de muitas pessoas. Fiquei aziado. Eu não sou uma pessoa que azie com facilidade, por acaso há muito pouca coisa que me transtorne. Mas, nesse caso, quando me disseram isso, eu fiquei tipo: “que é isto?”

Por falar no Genius e nas letras, porque é obviamente algo em que tu depositas muita energia criativa, como tu dizes são 40 letras em 6 anos ou qualquer coisa do género. Vês-te um dia a ter isso em papel? Um livro que reúna esses textos?

Eu via-me a fazer isso de um ponto-de-vista de arquivo, com algum valor estético, ou seja, ter isso para ter isso. Ser um item de coleccionador. Eu frustra-me que tenha de pôr as letras onde quer que seja. Se pudesse não fazer essa concessão que faço porque sinto que me é benéfico, eu não punha as letras. Eu faço muita coisa que aquilo é suposto ser uma barra estritamente auditiva. Eu acredito que o hip hop na sua essência é isso. O hip hop não é para ser lido. Hip hop pode ser lido, certo, podes ler, e é fixe e ajuda-te, mas na sua génese é música. Então, eu quando faço as minhas letras eu penso-as dessa forma. Por exemplo, só agora porque é a primeira que me vem à cabeça, mas que exemplifica isto. “Em todo o concelho ‘tão-me a querer eleito/Eu ouço-os chamar-me perfeito”. Aqui o trocadilho simples é o “prefeito” do cargo eleitoral com o “perfeito” das pessoas que querem-me num lugar de poder porque acham que sou incrível. A barra em si é simples, não é das minhas melhores, de todo, mas conclui o meu verso dessa maneira e acho que é uma barra engraçada. Mas, se tu condicionares isto a um texto, eu tenho de fazer a tendência, pá. E isso frustra-me bué. O que é que eu escrevo? Perfeito ou prefeito? É porque depois eu já estou a assumir que há uma interpretação. Eu sinto que ao facilitar as pessoas a ler algo tu estás a tirar um charme incrível daquilo, que é a pessoa deliberar o que estás a dizer. “Mas ele está a dizer perfeito ou prefeito?” É que ainda por cima soa igual, praticamente. 

E como é que tu disseste?

Eu comi aquilo o máximo. Eu tenho muitas destas coisas na minha música e frustra-me bué. Eu sei que é uma parte essencial e durmo bem à noite e ’tá-se bem e é fixe e ajuda as pessoas a compreenderem melhor as músicas e porque mesmo se calhar textualmente são bonitas de ser lidas. 

Tens que fazer esse exercício no próximo para perceber se resulta ou não.

Se eu alguma vez me transformar num músico extremamente popular…

Mas depois tens problemas com o Genius que vão meter tudo errado.

Já pensei em fazer mesmo um bê-á-bá e meter tipo um parênteses. Fazer tipo “prefeito (prefeito)” para ser óbvio, mas eu sinto que isso é condescendente.  



Olha, tradução para o espectáculo ao vivo. Está definido ou ainda estás a pensar na coisa?

Dito com a maior franqueza do mundo é: eu não sou o maior fã de cantar ao vivo…

Os Beatles também não eram. 

Eu não sou grande fã. Com isto não quero dizer que não venham aos meus concertos. Venham a todos, claro, e eu quando vou lá divirto-me e gosto e tudo mais. Mas pelo formato um bocado mais inerente ao rap, que é meteres um beat e cantares por cima, para mim, enquanto performer, é enfadonho. Não quer dizer que eu não o possa fazer, e não me consiga divertir, mas não me consigo imaginar a fazer isso noite atrás de noite atrás de noite. Porquê? Porque a versão do álbum vai ser melhor. A versão do álbum está ali as vezes que eu quiser. É a versão perfeita, máxima, daquilo que eu intencionava. Ao vivo estou ali a pensar, “tenho que respirar, estou aqui com uma comichão no cotovelo, isso está-me a distrair, depois já estou todo suado, estou bué desconfortável, estou aqui a beber água e parece que nada ajuda”. Especialmente eu, vindo de um background de música de grupo, quero tocar isto com banda. Assim é divertido. Então o que é que vamos fazer? Vamos ignorar tudo o que eu fiz no álbum, vamos reduzir isto à sua teoria, ou seja, vamos só respeitar as progressões e as ideias do que lá está e agora vamos reinterpretar isto tudo. A versão que vocês virem ao vivo, se tudo correr, será drasticamente diferente da versão do álbum. 

Vamos falar da Think Music? Gostávamos de, on the record, perceber o que é que se passou e porque é que uma coisa tão incrível para a música portuguesa acabou. 

Primeiro, eu, o Mário [Cotrim] e o Nélson [Monteiro] somos pessoas que acreditamos que as coisas podem começar e acabar. Isso é importante ficar estabelecido. Isto vem de um sítio de: nós tínhamos simultaneamente uma preocupação logística e uma preocupação editorial. Nós tínhamos muitos artistas e o trabalho era muito difícil de editar, era muita coisa. E nós também queríamos favorecer os nossos artistas individualmente. Eu, idealmente, não teria o Lon3r Johny a lançar um álbum na mesma semana que o Sippinpurpp. Até porque, internamente, eles sentiriam que estariam em competição um com o outro, que seriam concorrentes. Mesmo dando-se bem e desejando o melhor um do outro, ia-se criar ali… de repente ia ser uma competição, qual é que é o melhor álbum… e eram colegas de equipa. Ou seja, isso era preocupação editorial. A preocupação logística vem do sítio de: os artistas estão a crescer muito, há muita gente na estrada, há muitas necessidades, isto é algo que move muito dinheiro, requere muita gente a trabalhar, quando eu digo muito dinheiro não é no sentido de sermos multimilionários, não é de todo, mas há muita gente que tem de ser paga e tem de ser paga de uma forma justa e apropriada. Não pode ser a pagar tostões às pessoas, isso não é correcto. Quando nós conciliamos as duas coisas que é, “pá, a nossa equipa precisa de expandir, expandir e expandir”. E ela já estava muito extensa. Nós em determinados momentos tivemos três concertos a acontecer na mesma noite e estávamos quase com 40 pessoas na estrada. Uma editora independente. Gerida por músicos. Nem é por alguém dedicado a fazer isto. Então, pá, nós começámos a temer também o deslize. Nunca deslizámos, mas sentíamos que se calhar mais à frente poderíamos ficar sobrecarregados. Então, quando tu juntas as duas coisas… ainda por cima com a pandemia. Esse contexto é mesmo muito importante: ainda havia uma necessidade maior de fazer as coisas bem porque há tão pouco para fazer. Não é como se nós estivéssemos a fazer bué shows, e isso dá para ganhar bué dinheiro, então se correu uma coisa mal aqui ou acolá tudo bem. Mas como isso reduziu, podia ser um problema. Então, nós fizemos uma introspecção profunda e foi: “nós adoramos este projecto, este projecto é o nosso bebé, isto é incrível, toda a gente que aqui está quer estar aqui, veste a camisola, isto é interessante”. Mesmo as pessoas que abandonaram o projecto… não o abandonaram do ponto-de-vista de estarem chateados.

Tivemos simplesmente de ser pragmáticos e dizer: “nós estamos no nosso apogeu, a Think Music nunca esteve tão bem, vamos aqui explodir em grande, vamos sair mesmo rock’n’roll. A Think Music ’tá no seu pico de forma, vai acabar no seu pico de forma, não vamos deixar isto definhar”. E sentimo-nos muito em paz com esse assunto. E explicámos isso aos restantes membros da equipa, toda a gente entendeu, ninguém ficou chateado e, pronto, seguimos os nossos caminhos. Como podem constatar maior parte das pessoas continuam ligadas umas às outras, de uma maneira ou de outra. Isto não quer dizer que eu agora não possa passar três anos sem fazer música com o Sippinpurpp. Mas não houve nenhum drama daqueles da MTV Behind The Music, não havia ninguém a partir quartos de hotéis. 

Pareceu, de fora, que havia muita gente a crescer muito, ao mesmo tempo, e começou a ficar demasiado para um estrutura que era pequena. 

A questão era: efectivamente ainda não era demasiado. Mas estávamos a ver isso no horizonte. E em plena boa fé com os nossos artistas decidimos, “malta, olha vamos acabar aqui o projecto. Estamos todos bué bem do ponto-de-vista da percepção pública. Se calhar agora começa a arrastar e depois nós não temos mobilização, então eventualmente, no contexto em que isto aconteceu, se calhar vai ser pior servido que outro, seja porque motivo for”.

Não achas que teria sido uma boa mensagem para fora haver um feature do Prof no teu álbum. 

Uh, o Prof está lá num momento minúsculo. Para mim não seria porque o SYSTEM, ainda não-anunciado, foi o bye bye da Think Music. Ou seja, foi: nós vamos concluir este caminho com dois dos fundadores. E o álbum só não é também com o Nélson porque ele não faz som. Senão provavelmente teria sido um álbum a “trielas”, ali uma Santa Trindade. Nós quando lançámos o álbum já sabíamos que era o último álbum da Think Music e conferimos-lhe essa importância. 

Significa, então, que não vamos voltar a ouvir-vos na mesma faixa…?

Ah, vamos, 100%. Nós queremos fazer um SYSTEM 2, eventualmente. Se os nossos caminhos nos permitirão isso, logo veremos. Porque, pá, para fazeres um projecto destes tem de coincidir muita coisa. As pessoas têm que estar com a mesma disponibilidade, o que é muito difícil. 

E os patrões da Universal e da Sony vão ter que ir almoçar juntos...

Lá está, é uma questão sensível. Mas nós esperamos que o consigamos fazer. Vou-te dar este exemplo: eu não tenho nenhuma música com o Sippinpurpp. Eu nunca rimei uma música com o Sippinpurpp. Já fizemos tanta música juntos. Ainda de uma forma mais surpreendente: eu não tenho nenhuma música com o Fínix MG. E nós já fizemos tanta música juntos. Simplesmente não calhou. Mas irá calhar.

Eu pensei muito nisso: “será que eu incluo uma faixa com o Prof para mostrar às pessoas que está tudo bem?” Mas isso foi um pensamento errado. E pensei assim: “mas eu tenho de mostrar isso porquê? Nós acabámos de fazer um álbum juntos para que é que vou fazer agora mais uma faixa contigo quando ainda tenho outras que não saíram. Para quê estar a chatear-te com isso. Eu sei que tu agora também estás noutro processo criativo”. Fazer uma música num álbum é uma coisa que também exige disponibilidade. Se calhar é uma coisa que não passa muito para o público: colaborações muitas vezes são uma coisa que estão extremamente à mercê da disponibilidade do outro. Imagina: eu acabei de te convidar para uma faixa que eu acredito que será um lançamento incrível e eu quero muito que tu faças essa faixa, e tu também queres entrar na faixa, mas por acaso não estás inspirado. E se calhar demoras dois ou três meses a recuperar essa inspiração e a acabar outras coisas que estás a fazer. E eu estou do género: “eu preciso de lançar esta música, eu quero lançar esta música”. O que é que acontece? Espero por ti? Mas tu não estás a fazer nada de errado. Estás a querer manter-te ao nível que tu precisas de estar. Às vezes acontece porque deu para fazer acontecer. Nem sempre dá para fazer acontecer. Seja porque motivo for. E essa é a natureza das coisas. Mas oxalá fiquemos vivos muitos anos e que financeiramente também tenhamos a capacidade de continuar a fazer música para cumprirmos essas coisas todas. Para podermos riscar da lista cada uma delas, devagarinho.

Para mim fazer um som com o 9 Miller foi intencional mas foi um bocado puxado a ferros. Tivemos de fazer aquilo acontecer porque queríamos. Mas se eu lhe tivesse mandado uma mensagem duas semanas depois, ele se calhar já estava a fazer o projecto que ele está a fazer agora. Se calhar já não tinha tempo. E o Miller e eu conhecemo-nos há muitos anos. O Miller está incluído neste álbum porque para mim tem significado emocional. O 9 Miller foi a primeira pessoa que quis trabalhar comigo fora da Think Music. E isso para mim, nessa altura em que aconteceu na minha carreira, significou muito. 

Pois, ele esteve como vosso convidado no showcase da Think Music no Sudoeste.

Exactamente. E isso aí foi o espoletar dessa sensação de “bora fazer qualquer coisa”. Tanto que uma coisa que se calhar nem nunca disse isto publicamente nem ele… quando ele e o Piruka tiveram aquela desavença que entretanto já foi resolvida… quando ele lançou o “Golpe Baixo”, fui eu que o gravei. O gajo ligou-me a dizer, “olha, vou fazer aquela cena do Piruka que eu já te falei, dá para passar aí no estúdio?” E eu, “ya, não estou a fazer nada”. E já foi a segunda instância em que eu estive envolvido neste beef. Eu fui o quarto elemento do beef deles que passei completamente nos pingos da chuva. Porquê? O Holly Hood faz um story na altura, “quem é está disponível para filmar um vídeo?” E eu mandei-lhe mensagem: “Eu estou, bora lá”. Ainda fazia vídeos na altura. Vou lá ter com o gajo ao Catujal e eu nunca tinha ouvido o som. O som era o “Cala a Boca”. Eu estive a filmar o vídeo todo do “Cala a Boca” e não estava a ouvir o que é que ele estava a dizer. Eu estava concentrado. E só depois quando eu estou a editar o vídeo é que eu começo a reparar no texto. Eu ligo-lhe e digo assim, “ó David, ajuda-me lá aqui a perceber se eu estou a interpretar isto da forma correcta”. Quando eu chego a esta realização, já lá estava, já dei o meu contributo. Nada contra o Piruka, dou-me bem com ele, desejo-lhe todo o sucesso do mundo. Curiosamente, o Piruka era o outro gajo que estava no primeiro concerto do xtinto. Foi o Piruka e o xtinto. Isto é mesmo um penico. Portugal é mesmo um penico. 


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