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Fotografia: Paulo Segadães
Publicado a: 09/04/2024

Tudo misturado numa Batedeira musical.

Bateu Matou: “É necessário voltar a dar importância a este espírito coletivo e comunitário”

Fotografia: Paulo Segadães
Publicado a: 09/04/2024

Batedeira é o mais recente álbum de Bateu Matou, banda composta pelo trio de bateristas Quim Albergaria, Ivo Costa e RIOT. Após uma estreia em 2021 com Chegou, o seu primeiro longa-duração em tom colaborativo que contou com uma panóplia de convidados — Papillon, Héber Marques, Pité, Blaya, Favela Lacroix, Toty Sa’Med, Irma e Scúru Fitchadu —, Batedeira é o resultado de um processo de maturação daquilo que é a identidade sonora de Bateu Matou enquanto grupo.

Acelerada, misturada e alegre, Batedeira é uma confluência de linguagens sonoras que vão desde o funaná, semba, baile funk, drill ou house. Como canta Raissa em “Cada x + Perto”: “Não sou coordenada, eu sou o mapa todo”. E é por isso que, refletindo a pluralidade de sons e realidades daquele que é o universo português e lisboeta mais em concreto, podemos ouvir batidas que têm raízes desde a Índia ao Brasil, Cabo-Verde ou Angola, sendo tudo isso ao mesmo tempo sem cartilha nem grandes complexidades.

Foi no estúdio da banda, em Marvila, que falámos com Quim Albergaria e RIOT sobre o processo de construção deste álbum, as possibilidades que a música de dança têm enquanto força motriz de criação de sentido de comunidade, a afirmação da multiculturalidade de Lisboa e a forma como estas linguagens de mistura e cruzamento de sonoridades com diversas origens têm evoluído ao longo do tempo.  



Vieram de um primeiro álbum que era muito colaborativo e com muitas sinergias vindas de fora até chegarem a um lugar de maior consolidação da vossa identidade enquanto grupo. Como foi esse processo?

[Quim Albergaria] Foi absolutamente intencional. Foi dos primeiros pontos que a gente pôs em papel, na agenda de: “‘Bora desta vez fazer qualquer coisa que seja nosso primeiro e soe a Bateu Matou.” O que era uma direção completamente diferente do primeiro álbum, em que nós, produtores, estávamos a criar as melhores situações para os nossos convidados se entrosarem no que era uma ideia nossa do som. Começámos quase à antiga, quase à Camões, pelo meio da história. O primeiro disco poderia ter sido o disco que era: “Ah, agora os Bateu Matou a fazer música para outros”. Este disco é onde a gente diz: “Espera aí, mas as pessoas têm que perceber, e nós temos que perceber, qual é o som de Bateu Matou.” E essa foi a primeira premissa para fazer este disco. 

Também há colaborações neste disco, mas com uma presença mais forte durante o álbum, sobretudo a Raissa e o Pité. Como é que surgiram estas colaborações?

[RIOT] A Raissa e o Miguel são colaboradores já com cartão da casa. Quando fizemos o primeiro álbum tínhamos a consciência de que não podíamos ir com aqueles convidados todos para a estrada. Precisávamos de uma rapariga para fazer as vezes das convidadas ao vivo e a cores, e um rapaz para fazer o mesmo. Foi muito rapidamente decidido entre nós que a equipa live seríamos nós os três mais duas pessoas à frente, uma mulher e um homem para colmatar o facto de a Blaya ou o Héber não poderem ir a trinta concertos, por exemplo. Então a nossa relação começou muito cedo. Para já, a minha e a do meu irmão começou há muito tempo, porque é meu irmão. Falei com o Miguel, falámos com a Raissa. Encontrámos a Raissa através do Ivo. Temos vindo a trabalhar com eles desde então, e esse crescimento na estrada com o primeiro álbum foi-se criando ao longo dos anos em que tocámos juntos, e fez muito sentido passar para o estúdio com originais com eles. São os dois convidados que vês mais no disco, porque são praticamente da família Bateu Matou. Os outros convidados, por exemplo o Del Groove, é um convidado totalmente inesperado tanto para ele como para nós, porque o Del foi convidado para ir gravar ao estúdio o “Rala-côco”, e o Del é baterista, toca com o Ivandro, entre muitos outros artistas, e ele pensava que…

[QA] Trouxe baquetas e tudo…

[R] Pensava que vinha gravar bateria, mas ele vinha gravar voz, porque precisávamos de alguém com uma identidade que fizesse cantar aquilo que tínhamos para cantar. E acho que é esse um bocadinho o caminho de Bateu Matou. O nosso grupo de trabalho primeiro, mas quando sentimos que precisamos de esticar um bocadinho para fora a nossa área de conforto, a gente percebe quem são os nossos amigos à nossa volta que nos podem ajudar.

[QA] Ya, as canções é que vão pedindo colaborações. No primeiro disco era um bocadinho ao contrário. Por exemplo, o “Povo” é uma coisa que a gente começa a fazer com o Héber. O “Subi Subi”, é uma ideia nossa que depois precisa de uma voz e vamos ter com a Irma. Estas canções foram: “Ok, a canção é Bateu Matou, mas a gente pode cantar em concani.” Não sabemos e nem temos legitimidade para fazer, então: “‘Bora falar com a Rubi Machado”. Era fixe alguém com uma voz, um espírito e legitimidade baile funk mesmo roots. Quem é que nós conhecemos, ou quem é que está disponível para fazer? Pá, o Del era fixe. Depois percebes que o Del tem mesmo legitimidade, tem mesmo raízes no funk de São Paulo, e que trouxe uma interpretação bueda fixe. Essa lógica muda para o disco novo. É: “Isto cabe em Bateu Matou, é um som que a gente quer fazer, tem a haver com o espírito e atitude que temos agora.” Podemos ser autónomos para criar todas as soluções dentro de casa

O tocar ao vivo é uma parte importante do vosso trabalho. Como é que foi a relação andarem a apresentar o último álbum para agora chegarem ao estúdio e quererem consolidar o som? De que forma é que as duas coisas se retroalimentaram, e como é que a vossa presença em palco vos fez perceber o que queriam enquanto produto artístico?

[QA] O beat. Mais bateria. Mais o punch de três bateristas em palco. Trazer isso para estúdio. Há qualquer coisa de contagiante a um nível sub-racional de tu ouvires tambores. Isso mexe com as pessoas. A gente notou isso, e mexe connosco. Nesse sentido, era fixe nesta fase de afirmar o que é o som de Bateu Matou, que isso fosse uma parte importante. O punch dos tambores ao vivo era uma coisa que nós queríamos que se sentisse na gravação. Depois, havia momentos no concerto do Chegou, onde os BPMs passavam dos 130, e a gente percebeu que aquilo era bué natural para nós. Era fixe que esta energia nova que a gente quer exprimir fosse desta zona do concerto do Chegou. Não das coisas mais lentas, mas que tivesse mais andamento, atitude, e energia — portanto, mais tambores.

[R] Ao tocar ao vivo também ganhas calo enquanto amigos. Por muito que eu conheça o Quim e o Ivo, e já conheço há muitos anos, enquanto companheiros de banda nós começámos no COVID. Começámos com o rabo sentado em estúdio, muitas vezes cada um em sua casa. É um começo um bocadinho atípico, então a estrada trouxe-nos o: “Olha, este gajo vai sempre ali, nesta parte ele faz aquele break. Ei, aqui falho sempre”. A direção do álbum foi nós a começarmos a sentir que isto somos nós. Esta vivacidade e estes BPMs a puxar para cima é o que nós somos e aquilo que sentimos falta. Nós somos tanta coisa. Ouvimos literalmente desde thrash metal até música clássica. O que eu acho que sentimos é que a tuga está numa fase em que precisa de alegria, de upbeat. Há pouco upbeat na tuga, é tudo muito choro, e nós sentimos muito essa falta. E com três bateristas, acabava por sair naturalmente o ritmo a puxar.

Numa entrevista que deram, havia uma boa descrição daquilo que é este álbum, que “é mais duas da manhã”.

[QA] Yes.

Estavas a falar da questão do upbeat, e a última música do álbum, “Meu People (nossa Keta)”, fala um pouco do que dizias: “E quando o mundo stressa, a gente dança, Mercúrio regressa, a gente avança”. Esta ideia de alegria, de empoleirar mesmo quando há coisas más a acontecer. Vocês chamam à vossa música, música de baile. Qual é o significado que dão a esta palavra e qual julgam ser o poder transformador da dança, das pessoas estarem na pista a abanar o corpo, e de que forma é que isso pode mudar as suas vidas e os processos sociais pelo quais estamos a passar?

[R] Ao longo da minha vida sempre tive projetos de dança. Comecei no rock, como muita gente também. O Quim foi ainda mais longe do que eu no rock. Havia uma altura em que estava no rock e já estava na música de dança. Ao início achava que era só música para dançar. Hoje em dia consigo garantir que é essencial para a sanidade mental das pessoas dançar e estar na pista. Seja uma pista às três da tarde, uma matiné, na rua, onde for. A música de dança já está a ser levada mais a sério nos últimos 10, 15 anos. A relação com a música eletrónica, vá. Já se começa a pegar em alguns projetos e não lhes chamar música eletrónica, o que é bom. É música. Hoje em dia tudo tem eletrónica. É muito complicado encontrares um projeto de rock que não tenha alguma eletrónica. Acho que já estamos melhor nisso. Mas ao longo dos anos, apercebi-me que música de dança é mesmo terapia. É tão preciso como ouvir música clássica no carro numa viagem comprida, ou como ouvires pimba na aldeia da avó para te rires com os teus amigos. A música tem esse poder curativo, e a música de dança tem um forte poder curativo, principalmente numa altura com tantas coisas más a acontecer e tantas incertezas, dançar traz-te aquela hormona feliz, e isso é capaz de te ajudar a tomar decisões mais corretas na vida. Em Portugal, não há grandes projetos de música de dança como se calhar havia há 15 anos atrás. DJs é uma coisa, mas projetos de bandas não há assim tanto. Nós temos algumas experiências de estrada, de às vezes estarmos a tocar à tarde na Madeira, e aquilo faz todo o sentido. E faz exatamente o mesmo sentido às 02h30 da manhã. Porque as pessoas estavam a precisar daquela energia. 

[QA] Tenho só uma coisa a acrescentar a isso, que é o lado comunitário. É uma experiência que não isola, junta. Por mais que alguém esteja na pista de olhos fechados a sentir bué aquilo, os BPMs dos corações das pessoas sincronizam-se, e esse lado comunitário não só é bueda forte, como é super saudável e, hoje em dia, é mega necessário. Este nosso discurso do baile é para, enquanto banda, tentarmos reunir à volta daquilo que estamos a fazer, uma comunidade de pessoas que ouvem e dançam, e que aquilo faça sentido quando tocamos ao vivo. A nossa música só é música quando estão pessoas a dançar lá à frente, mas há aqui um empenho nosso que neste disco acentuou-se, em criar música para as pessoas se sentirem juntas. Essa ideia do baile, por mais que seja uma palavra com muitas conotações, e conotações antigas, às vezes negativas ou caricatas, não deixa de ser, na sua simplicidade, uma situação e uma ferramenta para nós hoje em dia efetivamente estarmos juntos. Tudo nos está a isolar. Esta cultura do indivíduo põe-nos muito longe uns dos outros, e às vezes sentimos que há falta de um certo sentimento de classe. Ok, eu quero ser feliz, eu quero melhorar. Isso é tudo bué importante. Mas eu não consigo fazer nada disso sem a sinergia com a pessoa que está ao meu lado. Eu não vou ser livre sozinho, eu não vou ser saudável sozinho, eu não vou ser feliz sozinho. E é nesse sentido de ser necessário à gente voltar a dar uma importância a este espírito coletivo e comunitário que a nossa música está mais empenhada. Para as pessoas chegarem lá sozinhas, e saírem de lá em comunidade. Temos muitos planos para criar situações para isso, mas para já o disco é a primeira ferramenta para isso.

A vossa premissa da Batedeira parte muito desta afirmação de uma Lisboa multicultural, que é fruto de linguagens musicais que têm origens diversas, mas que também se cruzam e se misturam. Em tempos em que há um crescimento grande da extrema-direita e de discursos que rejeitam o outro, qual é o papel que a música e este statement mais identitário pode ter?

[R] A resposta anterior cola com esta, no sentido de aperceberes-te que estás em comunidade quando estás numa pista de dança, num concerto de Bateu Matou, ou num outro concerto qualquer. Perceberes que não estás sozinho e teres a consciência de que estás ali. A tua família é de Castelo Branco, mas estás a curtir bué de um funaná misturado com drill do UK, com vozes de um rapper tuga. Quando te apercebes que isso faz sentido e que isso é a realidade, olhas para trás e és uma pessoa mais feliz e tranquila, e se calhar com menos ódio e menos medo daquilo que é diferente. Sinto que o ódio e todo este empurrar de culturas diferentes que já estão cá há centenas de anos é fruto do medo e do desconhecido. Se tu te abrires, tentares conhecer e perceber que as pessoas são todas diferentes, vais ser um bocadinho mais feliz e menos burro. Obviamente que faz parte do nosso papel fazermos o nosso trabalho, que é tocar para tudo e para todos, com as influências todas que nós temos. Tens aqui uma banda com família moçambicana, goesa, portuguesa, brasileira. Não fazia para nós sentido não incorporar essas influências que estão na nossa vida desde que nascemos. O meu Natal sempre teve bacalhau espiritual e sarapatel desde pequenino. Não estamos a falar de uma coisa de há 10 anos nem de há 5 anos. Estamos a falar de muitos anos.

[QA] Ya, esse discurso tem muito a ganhar com essa ideia de inimigos. Nessa divisão é muito mais fácil controlar uma data de coisas. Se eu estiver preocupado com o meu emprego e achar que é uma comunidade do Bangladesh que me está a tirar o emprego… Mas eu jamais na vida ia apanhar morangos, porque eu não estudei para apanhar morangos. E se o meu pânico é esse, obviamente que passam uma data de outros problemas que interessam. Num momento em que se calhar é bueda  importante para nós, em Portugal, percebermos que a nossa identidade, na sua realidade e ancestralidade é misturada, se de repente houver momentos e músicas que celebram isso e dizem “repara como tu és feito de bueda coisas”, de uma forma bué natural e sem grandes ideologias, isto é uma afronta e é um argumento completamente em contrário desse discurso separatista, de medo e xenófobo da extrema-direita. Se é uma coisa que fazemos com consciência? Não é uma cartilha que temos, mas é-nos super natural e faz todo o sentido para o tipo de música que a gente faz. A nossa música não é sobre isso, mas é disso. É uma celebração dessa mistura, e há bué em ganhar, há bué discurso e música nova e excitante que seja agregadora a fazer essa justaposição. A Batedeira tem esse statement cultural, social e político, mas é um disco bueda excitado com o facto de… Repara: drill e funaná casam. Brutal! Ou house e um semba — estas duas claves fazem sentido. Ou a chula e o batuku é a mesma coisa. Como é que a gente junta isto? São três bateristas excitados com as respostas que a música dá, mas que são reflexo da comunidade toda de onde a gente vem.

[R] O próprio “Cada x + Perto”, a forma como surgiu foi mega natural. O pessoal cresceu a ouvir Rão Kyao, lembrámo-nos de Bombaim. Aliás, não se chama Bombaim, chama-se “Bombaião. O próprio “Bombaião” tem esse trocadilho no nome, por isso é que me enganei, tem a haver com a Índia e com o Brasil. É um tema já misturado. Tem baião do Brasil com Bombaim.

[QA] E o baião é um ritmo que vem de Portugal para o Brasil. Eu acho que eu pensei nisso quando me lembrei: “Opá, ‘bora fazer uma cena por cima.” Ninguém pensou nisso. Está ali só presente. Já está presente há muitos anos. E para nós é muito natural, é assim que começámos a brincar. “Pá, isto ficava bueda bem aqui com um drill por cima. Mete aí um beat drill por cima. Agora é preciso alguém que cante em concani. Vai buscar a Rubi Machado. Opá, se calhar vamos mesmo falar com o próprio Rão Kyao para ele vir cá regravar isto tudo. Será que ele vai aceitar?” É mesmo só música a acontecer. E o Rão Kyao está neste país a fazer música há para aí 50 anos. É apenas a natureza de ser português, eu acho. 

É também muito interessante porque no seio da vossa banda vocês fizeram parte de movimentos artísticos — mais especificamente o RIOT com os Buraka Som Sistema, e o Ivo que tocou com a Sara Tavares — que também fizeram parte desse processo de afirmação de uma forma um pouco mais descomplexada e natural desta mistura, e que ela passasse a mais pessoas, porque a verdade é que sempre esteve lá. Hoje vemos cada vez mais estas linguagens a chegar ao mainstream. Por exemplo, o último álbum da Ana Moura que juntou o fado com a kizomba e linguagens eletrónicas, o Afro Fado do Slow J. Gostava de perguntar qual é o balanço que fazem olhando para isto ter acontecido ao longo dos anos, e se acham que de alguma forma existe uma reconciliação de Lisboa e de Portugal consigo mesmos naquilo que é a sua noção de identidade?

[QA] Ya, eu acho que sim. O que é fixe. Portugal ser um ponto de convergência cultural de uma data de coisas e discursos é uma coisa que não é nada nova. O fado em si, na sua origem, é um produto disso. Os anos 60 e 70 da música popular portuguesa são um auge disso: o Zeca, o José Mário Branco, o Fausto, o próprio Rão Kyao, o Júlio Pereira, a Banda do Casaco, Amélia Muge. Isso era malta que foi à tradição, foi a África, ouviu o psicadelismo. É uma coisa que é natural ao português integrar muita coisa. O que nós tivemos foi que, na reação do 25 de abril, os anos 80 foram tipo: “Não, eu não quero nada disto. Eu sou europeu. Eu sou americano. Sou mais americano do que sou da Beira.” E naqueles anos 80, 90, houve uma aversão cultural. Houve coisas boas a sair daqui, mas uma aversão bueda grande a construir com o que é da terra. A partir dos 2000, com o hip hop, a Internet, a democratização da produção, e com a América e o UK a mostrarem-te: “Repara como é que eu pego em tradição e transformo em discurso novo.” Jungle, drum and bass, garage, grime. Esse discurso todo é tipo caraíbas, é tudo reggae. Depois vem Espanha e mostra-te: “Olha aqui o que eu posso fazer com flamengo e discurso novo”. De repente, essa coisa do recontextualizar a tradição para criar futuro é uma coisa que é moderna. Mas é moderno há bueda tempo. O que é moderno e bueda e excitante, é não ser um discurso de orgulho. Não ser tipo: “Não, eu sou orgulhosamente português” ou “eu sou orgulhosamente PALOP”. Isto é como eu canto porque é como eu falo todos os dias. Isto é como eu danço ou como eu faço música, porque eu danço naturalmente dancehall, funaná. De repente, o meu dia-a-dia, a minha cultura, é esta. 

[R] As pessoas ressoam com isso. Tu podes fazer um projeto de dancehall aqui em Lisboa, mas eu acredito piamente que vais ter mais sucesso se pegares num funaná e adaptares para dancehall. Usas a gaita, o ferro, e fazes um beat de dancehall por cima disso. Vai ressoar melhor com o público tuga, mesmo sem querer. Podes ter muito sucesso a fazer uma cena só com os sons básicos do dancehall. Mas é muito mais fixe tu pegares numa coisa e torná-la tua. Agora, aquilo que é nosso, é bueda válido e vasto, e isso é que as pessoas têm que começar a perceber. O que estavas a falar de aquilo que a Sara Tavares fez… A Sara foi, para mim, o princípio disto tudo. Foi uma pessoa que foi cantar Whitney Houston à Chuva de Estrelas, e obviamente que ela mostrou a goela que tinha e aquilo que ela conseguia cantar. A seguir a isso era muito fácil ter-se encostado ali à Universal, à Sony, ou à editora que estava por trás daquilo na altura, e fazer um R&B durante dez anos, e tinha um sucesso mediano porque era a menina da Chuva de Estrelas. E ela não fez nada disso. Ela sentiu necessidade de mostrar as suas raízes na música que fazia em português. Tu vais ouvir as músicas todas da Sara Tavares e vês roots desde o início. Vês uma evolução. Aquilo não é funaná, não é semba, não é morna, não é kizomba.

[QA] Não é gospel, nem R&B.

[R] Aquilo é Sara Tavares, com todos os bocadinhos da Sara Tavares. Buraka veio a seguir. Musicalmente não foi, obviamente, influenciado pela Sara Tavares, foi mais influenciado pela atitude punk do kuduro. Porque eu e o João [Branko] vivíamos na Amadora. Tínhamos cabo-verdianos que ouviam Morbid Angel, e tinhas loiras que dançavam melhor funaná do que eu alguma vez vou conseguir. O kuduro estava sempre por ali nos carros, nas ruas, e um gajo ouvia aquilo, e pensava: “Esta cena é mesmo punk, meu. É mesmo punkalhada. Isto é afro-punk”. Nós dizíamos imensas vezes no palco que Buraka sentia-se afro-punk. Não tínhamos legitimidade para nos chamar de kuduro, nem kuduro progressivo. Isso foram os media que nos chamaram. Havia os reis do kuduro, e os grandes criadores do kuduro que estão vivos ainda hoje e são nossos colegas. Mas tínhamos esta questão do misturar isto com aquilo que é ser tuga. “Ya, isto é bué fixe, este beat é bueda bom. Agora mete um baixo de drum and bass por baixo disso.” Porquê? Porque eu sou tuga e eu consumo música da Europa, mas também consumo música dos PALOPSs. Ainda hoje estava a ver um vídeo na Internet que me dizia como, legalmente, em termos de placas tectónicas, Portugal está em três continentes. Só há dois países assim. O Faial e o Corvo apanham a placa tectónica americana, o resto apanha a Europa, e a Madeira apanha África. Acho que é isso. O que aconteceu com Buraka foi exatamente isso: “‘Bora lá juntar aqui as nossas influências europeias.” O Andro [Conductor] estava bué ligado a artistas angolanos na altura. “Epá, pergunta lá quem é que está a bater agora.” Ele mandou-nos os CDs, misturámos os beats de house e de tecnho com um kuduro. By the way, kuduro já foi reinterpretação afro do techno e do house americano. Não foi inventado a tocar congas. Foram já putos em Angola a fazer beats no computador da irmã mais velha no Fruity Loops desde o dia um. Só que com a clave de um Angolano a fazer kuduro, a fazer house, a fazer batida — como montes de gente lá chama, não chamam kuduro nem afro-house, chamam batida. Um africano a fazer batida vai sempre por a clave dele. E é assim que são criados os estilos novos, na Escandinávia e em África. “Olha eu a tocar este tema de funk aqui na Jamaica.” Só que eu não sei tocar de outra maneira. A palheta vai toda para cima, o bombo vai ao contrário. De repente nasceu o reggae. Acho que o que está a acontecer em Lisboa e em Portugal é nos apercebermo-nos de que isto é assim. A música é assim, é uma evolução. E o fado, como o Quim falou do início, vem de uma mistura gigante entre celtas e mouros. É música árabe desde o dia um. Portugal tem muita legitimidade e devia ter orgulho de todas estas influências.



Uma pergunta se calhar um pouco provocadora. Porque Quim, até dizias numa entrevista que há muita gente que até dança kizomba, só que depois vota no Chega. E eu gostava também de perguntar…

[QA] Yes.

[R] Há pessoas que não pensam muito bem na sua vida [risos].

É uma coisa que também me questiono. Mesmo o Afro Fado do Slow J, que chegou a muita gente, com esta mensagem de afirmação de um Portugal que é misturado. Mas até que ponto é que isso pode materializar-se na prática? Às vezes parece que é um pouco paradoxal e que há um certo gap, porque tem havido toda esta afirmação e movimentos artísticos que têm surgido, só que depois, politicamente, estamos numa fase completamente oposta e em que esse ódio ganha mais força. Enquanto musicalmente até chegamos, se calhar, a uma maior reconciliação e que pode estar a acontecer, ao mesmo tempo ela não está a existir. Gostava de perguntar como é que acham que esses processos podem estar a acontecer.

[QA] O facto de haver arte e música a refletir esse lado plural português tem de vir de algum lado. Não se está a inventar uma situação que não existe. O facto de haver música e arte que explora e que expressa isto, é porque isso é real cá. Porque é que isso não se reflete em tendências democráticas?  Acho porque não há em assento no parlamento alguém que tome essa pauta como uma agenda. Portugal é um país misturado. Se calhar há um medo de tocar nesse discurso para fazer bandeira politicamente. Inclusive políticas culturais que reconheçam isso. Só agora é que começam a ser vistas algumas, e sempre em governos mais à esquerda. Acho que tem a haver com o facto de a prática da política em Portugal não ter a ver com pessoas. É só um jogo de administração. Porque se assim fosse, havia uma política completamente diferente de habitação, de integração das diferenças e dos privilégios e como isso estratifica a vida das pessoas. Não há um interesse em reconhecer que Portugal é um país misturado, porque um Portugal separado tem muitas vantagens para manter determinadas situações. Se houvesse um reconhecimento de que isto é um país absolutamente multicultural e que deve ser tratado como tal, se calhar a gestão da polícia não era feita assim; a gestão do Orçamento da Cultura não era feita assim. A quem nós estamos habituados a deixar que vá para o poder, há muito interesse capitalista, mas em manter a sociedade estratificada desta forma. A forma como quem está no poder vê o país, não é como ele é. E nesse sentido, o papel da arte e da música é dizer: “Está aqui um espelho. Vejam-nos assim. Oiçam-nos assim. E a ouvirem-nos olhem para vocês próprios e próprias e percebam que não vivem numa bolha de cromossomas brancos.”

[R] Não conseguem. E é exatamente por não conseguirem que não faz sentido nenhum, e votam no Chega e dançam kizomba. A kizomba está em todo o lado, desde o David Carreira até à Bárbara Bandeira. O meu pai, enquanto sociólogo, sempre me disse que os países estão sempre erradamente divididos entre a sociedade e a política. Há uma divisão sociopolítica que é feita, como o Quim diz, muitas vezes para controlar. É mais fácil controlar povos divididos do que todos juntos contra aqueles gajos todos da Assembleia. Dá bué trabalho. O que eu acho que acontece é que há bué pessoas que votam no Chega e dançam kizomba porque não pensam muito nas coisas. A maior parte das pessoas que tu vês que diz que vota no Chega, ou que tu apanhas em comentários na net, nem são por questões racistas. Estão lá, são muitos. Mas as questões que eles dizem nem são as racistas, são sempre: “Porque este gajo vai limpar o país. Vai-me dar dinheiro. Vai aumentar os polícias. Eu tenho que defender a minha classe”. Eu vi uma vez um polícia na net a dizer: “Eu tenho que defender a minha classe, eu preciso de guita, é para mim. Ele diz que me vai dar guita, portanto eu vou votar nele.” E o resto da conversa é: “Ele vai dar-te dinheiro, mas ele é racista e xenófobo, misógino.” Como assim? És casado? Tens filhas? “Opá, sim, mas essa parte do racismo, isso é palhaçadas dele. É para ganhar votos.” Quando não te toca a ti em termos de cor, quando estás muito enganado a pensar que és completamente cromossomas brancos, como diz o Quim, e não te apercebes que de hoje para amanhã a tua filha pode casar com um preto ou um indiano, que o teu filho pode casar com uma preta ou uma indiana, que podes ter uma família muito mais eclética e misturada daqui a 5 ou 10 anos. Quando não percebes que podes ganhar em estar junto com essas pessoas e estás num país tão aflito e tão apertado em termos económicos como nós estamos, o desespero é grande. O que aconteceu com o Hitler foi a mesma coisa. O Hitler ganhou as eleições porque as pessoas não tinham pão. Se tens alguém a mentir ao microfone na televisão a dizer assim: “Eu vou mesmo mudar isto”. Vai ganhar votos e uma projeção que não tinha. Estamos a falar do Chega, que foi uma coisa que cresceu exponencialmente. Não ganhou nada, mas ganhou tudo. Ganhou 50 deputados, que é muito, é ridículo. 50 deputados de um partido não democrático na Assembleia da República. Até me dá vontade de rir esta porcaria, mas isto tem a ver com o facto de as pessoas estarem desesperadas, pobres e tristes. E faz parte. Nós aqui, na cultura, não sei se somos gatekeepers, mas acho que os artistas — desde o pintor, ao escultor, ao músico, ao ator — têm esse púlpito. Nós conseguimos ainda falar para o público, estar em cima do palco, e faz parte de nós mostrar às pessoas o que é que Portugal é, o que é que nós somos.

Indo outra vez à Sara Tavares. Ela faleceu em Novembro, e quando isso aconteceu houve um enchente que se viu nas redes sociais de toda a força e esperança que deixou, tanto com quem trabalhou e conviveu mais de perto e quem a ouviu. No caso, o Ivo trabalhou com ela. Gostava de perguntar o que é que levam convosco no vosso trabalho que aprenderam com a Sara, e sobre isto, Quim, também escreveste um post nas redes sociais. De que forma acham que o legado dela deve ser honrado a nível institucional? 

[QA] Absolutamente. A Sara tem que ser nome de rua, tem que ser nome de muitas coisas. A Sara nos últimos anos, não produzindo muito, já era legado vivo. Ela continuava a produzir porque simplesmente tinha que produzir, mas não havia a capacidade de criar intencionalmente trabalho que pudesse continuar a visão do que ela tinha que fazer. A forma como ela mostrou, já há duas gerações a produzir, que há pontes para fazer. E nós aqui na tuga, na convergência disso tudo, somos essas próprias pontes. Isso é voz, é perspetiva, é chão para trabalhar e fazer coisas novas, porque estando nessa fronteira entre uma data de coisas, há uma perspetiva que é só nossa. E ela era simplesmente assim e sentia que tinha que fazer essa música. E fê-lo de maneiras muito bonitas. Não seria possível uma Mayra [Andrade] sem a Sara, não seria possível um Dino [D’Santiago] sem a Sara. Não seria possível da mesma forma uns Buraka Som Sistema. Eles seriam possíveis, mas a facilidade com essa mistura e uma convivência de uma data de discursos sem medo de ser africano e europeu ao mesmo tempo, é uma coisa que a Sara mostrou com graça e simplicidade, e foi exemplo. Até podíamos tirar os discos. Só por essa coisa de: “Olha, assim funciona”. Só por isso já merecia uma rua com o nome dela. O que é fixe é que o trabalho dela deixou legado e frutos, tanto que tu dizias com naturalidade que agora é mais fixe, e tá-se a ver isso a chegar ao mainstream, e era uma coisa que ela fez nos fins dos 90’s, há 30 anos atrás. Os músicos que estão agora… Como um Slow J, que é um guardião da bandeira dela, ele não estava vivo quando ela começou a fazer isso. Por isso só, por esse lado pioneiro de fundação, de clarificação e de mapeamento de uma data de caminhos que são possíveis nesse sentido, ela merece esse cuidado institucional. Agora, a cultura portuguesa e a instituição portuguesa, no reconhecimento do que é a cultura viva, tem muito a aprender com o movimento pay it forward nos Estados Unidos, em que a comunidade do hip hop está a garantir reformas e garantir bem-estar económico a fundadores do hip hop.

[R] Aos Cool Kids né? 

[QA] Seria muito fixe. Obviamente que a SPA faz algumas coisas, mas tem uma agenda estética bueda específica, e não sei se política. O próprio Ministério da Cultura, que é um Ministério que luta para existir, tinha essa responsabilidade, de em vida… Mas é uma coisa que é triste e complicada. É muito mais fácil acontecer em símbolos e em criadores que são mais alinhados com uma ideia de um Portugal branco. Mais facilmente um Carlos do Carmo recebe esse cuidado, do que uma Sara Tavares. Eu não acho que haja diferença nos contributos à cultura entre estas duas pessoas.

[R] Mas isso vai buscar à base do princípio da nossa conversa, que é admitir que a Sara Tavares é tuga, para além de outras coisas mais.

[QA] Admitir que somos mistura. É isso mesmo. A Sara Tavares tem todas as condições para ser um símbolo da cultura nacional, e não é porque é entendida como um bastião dos PALOP, e se calhar esse sintoma e essa visão é o que está de errado nesta história.

Isso até me faz lembrar, porque estava a ler uma entrevista vossa a preparar-me e logo a seguir li um artigo no Público, de uma controvérsia que houve em França, porque uma artista que tem origens no Mali ia cantar Édith Piaf na abertura dos Jogos Olímpicos, e aquilo foi toda uma controvérsia porque a extrema-direita tinha esta narrativa de: “Não, mas isto é uma ofensa à cultura francesa e àquilo que é a identidade francesa”.

[QA] Tem a ver com o momento político em que a Europa está, tem a ver com as Le Pen’s da vida.

[R] E França tem uma história de apoio enorme à música africana.

[QA] França foi o primeiro país europeu a meter no panteão a Josephine Baker, por exemplo. No panteão, nos anos 70. Está aqui no panteão da cultura francesa esta senhora que era francesa, americana, tinha mais outra ascendência, convertida ao judaísmo. Era uma coisa assim brutal. A própria Édith Piaf não é descendente do Astérix, aquilo tem bué de Norte de África ali, só pode. Não sei dizer, mas de certeza que há Argélia ali à mistura. Portanto, são bandeiras e são plataformas de discórdia e de populismo.

[R] Mas terem convidado para ir lá e ir ter ido lá é bueda bom.

[QA] Tá certo, tá certo!

[R] Não interessa o que eles vão dizer, porque alguém com poder conseguiu pô-la lá. E isso também tá fixe.

[QA] Porque se tu virares a câmara do estádio e a puseres fora do estádio, ou se virares mesmo para a seleção toda…

[R] Se olhares para a seleção só. Olha só para esse francês aí sauvignon.

[QA] Porra meu. Gauleses estes todos? Não são de certeza. E em Portugal é igual. E às vezes ao Portugal real falta um bocadinho esta noção do mundo, porque se fosse bem contada a experiência do emigrante português que foi e voltou, percebias que para cima de Madrid és Árabe.

[R] Completamente. Turco.

[QA] Turco. Este discurso do branco, e esse discurso do europeu…

Nós fisicamente somos mais parecidos com os Marroquinos do que com os noruegueses…

[QA] Tu tiras a fotografia ao parlamento e podia a ser a Argélia ou a Turquia…

Para onde é que vocês desejam levar a vossa Batedeira e o que podemos esperar dos vossos concertos?

[QA] Nós queremos tocar muito. Este é um disco que faz só sentido em palco, no baile. É fixe ouvir, mas ele é pensado, desenhado e imaginado para ser partilhado. A gente quer tocar muito, e vai tanto cá como fora, e vamos já daqui a pouco tempo comunicar as datas que temos marcadas para este ano. Tudo a começar dia 26 de abril na Casa da Música, que é onde vamos estrear mesmo o espetáculo, mesmo pensado para promover o Batedeira. Até agora testámos já algumas coisas ao vivo. Mas a tour Batedeira começa dia 26 de abril no Porto. Um dia depois dos 50 anos do 25 de abril.


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