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Bandua

Bandua

Frente Bolivarista / 2022

Texto de João Mineiro

Publicado a: 24/02/2022

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Já o dissemos noutra ocasião e reafirmamo-lo agora: When Berlin meets Beira Baixa podia ser uma boa expressão para tentar qualificar o encontro de tempos e de espaços que o músico e produtor Tempura, isto é, Bernardo D’Addario, tentou construir em parceria com o cantor e compositor Edgar Valente, que conhecemos de projetos como Criatura, Os Compotas, ou They Must be Crazy. Ao duo chamaram Bandua, propondo que consigo partilhássemos uma nova e estimulante aventura até aos lugares onde a eletrónica global se pode encontrar com as raízes poéticas e populares da música portuguesa, e em particular da Beira Baixa. 

Primeiro veio “Macelada“, ainda em 2021, reinterpretação singular de um clássico do cancioneiro português, também cantado no Brasil. Sete minutos vagarosos e ritmados que antecipavam que os dois músicos laboravam em algo realmente intrigante. Houve um lastro de curiosidade, que se adensou em Janeiro deste ano, quando lançaram “Cinco Sentidos“, acompanhado de um belíssimo vídeo realizado por Cláudia Batalhão. O terreno estava lavrado para a colheita do disco homónimo, entretanto lançado, e que não defraudou nenhuma das expectativas que criaram. 

Bandua é um daqueles disco que escutamos com doses generosas de estranheza e familiaridade, sendo essa a primeira das razões que nos faz voltar uma e outra vez a cada uma das canções. Damos por nós a ouvir algo realmente novo, distinto e intrigante, mas que ao mesmo tempo nos soa familiar, natural e instintivo. Sabemos que estamos num terreno por desbravar, e nunca deixamos de nos sentir confortáveis nessa descoberta do imprevisível. Talvez essa familiaridade nasça do diálogo com uma eletrónica ritmada, de cadência melancólica e em tons psicadélicos, combinada com a poesia popular, os acordes acústicos e os sons dos adufes com que muitas e muitos de nós, que crescemos naquelas paragens, fomos culturalmente educados. Mas por entre esses ritmos familiares somos introduzidos a qualquer coisa nova, estranha e inquieta. Em Bandua há profundidade e leveza, tal como um certo instinto pela conexão da música a algo maior, quase espectral, em busca de um sentido de pertença, de beleza e transcendência. Esse é o primeiro grande alcance do disco. 

O segundo é a forma como a música trabalha a contenção e a expansão, a clareza e o mistério, a materialidade e a espiritualidade. O que está em causa já não é apenas esse velho programa de colocar em diálogo a “tradição” e a “modernidade”. É antes um trabalho estético que, ancorado em diferentes conceções de espaço e de tempo, tradições e reinvenções, nos propõe uma música profundamente contemporânea, quer dizer, um objeto poético-sonoro ligado a este tempo que é o nosso, e do qual podemos ser protagonistas. Em Bandua há uma forma contemporânea de falar do passado e de projetar o futuro, que se sustenta em ideias muito claras de espaço e de tempo, mesmo não se deixando aprisionar pelas fronteiras que esses conceitos podem assumir. 

Espacialmente esta é uma música que vive da Beira Baixa, da sua gente e das suas memórias, do granito, das vozes que cantaram as subidas às serras e a imensidão das planícies, o amor e o trabalho, a melancolia, o ritual e a contemplação. Se tivesse uma cor, Bandua seria um quarto elemento nascido do verde da planície, do cinza do granito e do azul do céu que se expande no horizonte. Mas para além do espaço, está também em causa uma ideia de tempo que estrutura toda a experiência. De um tempo presente, seguramente. Mas também de uma forma de o compreender a partir das histórias de que somos feitos, das tradições ocultas, de outras heranças possíveis, mais pagãs que católicas, mais populares que eruditas, mais das margens plebeias que das centralidades da cultura oficial. 

Em “Encadeia” são atmosféricos e espectrais, em “Borboleta dourada” acústicos e poéticos. Em “Cinco Sentidos” são íntimos e delicados, em “Ceifa” hipnóticos e percussivos. E em todos estes momentos se fazem acompanhar de uma coerência estética que unifica todas as abordagens poéticas e sonoras que percorrem o disco. O que não é fácil, devemos dizê-lo, num projeto onde podemos reconhecer legados tão distintos como Nicolas Jaar ou João Aguardela, Acid Pauli ou José Afonso, Fourt Tet ou Catarina Chitas. É por entre tantas e tão diversas referências que emerge um som realmente distinto e que só pode ser daqui e de agora, deste espaço e deste tempo. 

No final da jornada, o discurso poético e sonoro deste trabalho em nenhum momento se deixa aprisionar com a procura da pureza de um tempo perdido ou com uma qualquer ideia de “regresso ao passado”. Trata-se, antes de mais, e acima de tudo, de uma ânsia por imaginar e construir uma ideia de futuro a partir da história destes lugares. Uma urgência que vive no conteúdo, tanto quanto na forma. Por isso mesmo, a eletrónica desacelerada e melancólica que ergueram pode servir a quem percorra a beleza das paisagens beirãs, da mesma forma que pode dialogar com quem nos clubes de Berlim ou de Londres dança em busca de um mesmo sentimento de introspeção, pertença ou transcendência.

Parece simples, mas só o é na aparência: o que há de comum entre quem vive ou viveu numa aldeia da Serra da Estrela, cantando o quotidiano, e quem está num clube de música eletrónica, de uma grande metrópole, dançando num espaço urbano e coletivo? Na própria forma da música que construíram, Tempura e Edgar Valente mostram-nos que, se nos concentrarmos no essencial, pode haver tudo em comum entre esses dois mundos. Nesse sentido, este é um álbum que quebra as fronteiras, largamente artificiais, entre o “cosmopolitismo” e o “tradicionalismo”, o “campo” e a “cidade”, o “rural” e o “urbano”, o “passado” e o “futuro”, o “local” e o “global”, o “particular” e o “universal”. É nesse gesto que a música ganha toda a sua profundidade e relevância. Com este programa no horizonte, a música de Bandua nunca poderá ser banda sonora para o exílio. Pelo contrário, o que nos propõe é um reencontro com tudo aquilo que nos torna parte do mundo e que une a experiência humana, por mais diversa que esta deva ser. Ao fazê-lo com tamanha inventividade, projetam um gesto que, arriscamos dizê-lo, deixará lastro e ampliará novos campo de possibilidades. Cá estaremos para as ver nascer.  


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