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Fotografia: olhonaorelha
Publicado a: 10/05/2021

A amargura da continuidade.

Criatura: “Há uma intenção profunda de trabalhar a raiz popular a partir de uma matriz universal”

Fotografia: olhonaorelha
Publicado a: 10/05/2021

O encontro estava a ser combinado há algumas semanas porque a Criatura queria ser fiel à sua própria identidade. Era preciso encontrar um momento em que pudéssemos falar com tempo, em que o diálogo pudesse fluir sem demasiadas pressas, envolvendo mais do que um membro da banda. Fomos encontrá-los em Alcântara, mais precisamente no Restaurante Resina. Chegavam de um ensaio onde tinham estado a preparar a apresentação de Bem Bonda, o segundo álbum da banda, marcada para os próximos dias 24 e 25 de Maio no Teatro da Trindade, em Lisboa.

O almoço foi partilhado com músicos e técnicos da banda, que se foram juntando enquanto discutíamos o papel da crítica e do jornalismo cultural, que gostariam de ver mais pujante e implicado. Conversa puxa conversa, e quando começamos a falar da banda e do novo álbum, toda a mesa se entusiasma quando vem à baila o nome de António Pinheiro da Silva, que misturou e masterizou o disco. Ricardo Coelho, o gaiteiro da Criatura, explica-nos ao pormenor, imitando até com os seus próprios gestos, o processo de trabalho deste engenheiro de som, cuja arte e mestria transformou a música da Criatura, repleta de instrumentos e vozes, num objecto sonoro equilibrado e poderoso, com um sentido coletivo que não oculta os diversos sabores que fazem de Bem Bonda um dos grandes álbuns do ano da música portuguesa.

A música da Criatura revela-se esteticamente como um diálogo constante entre a tradição e a modernidade, a oralidade e a palavra escrita, as sonoridades populares e o ecletismo musical, o passado e o futuro. É uma música sem dicotomias insuperáveis que procura as raízes profundas de que tanto falam nesta entrevista. Serenos e inquietos, os membros da Criatura não escondem que há um lado quase espiritual na música que fazem e não têm receio de falar de um discurso politizado que a sua música assume, mesmo salientando que esse discurso é tanto para o mundo e para os outros, como para si próprios como pessoas e como grupo. Lançaram a sua própria plataforma de comunicação com quem os segue, e não deixam a entrevista acabar sem lembrar todos os músicos que passaram dificuldades nesta pandemia e que “são uns bravos”, subindo a palco com dignidade e orgulho. Pedem que se lembre a importância da União Audiovisual, que safou a vida de muita gente à sua volta. Eis a Criatura em discurso directo, num resumo das duas horas de entrevista que partilharam com o Rimas e Batidas.



“Falar de um disco destes é quase falar a um nível humano e pessoal, de organização de grupo e da tua interioridade. É uma conversa até meio mística, mas muito real.”


A primeira coisa que queria perceber é como é que o vosso encontro se dá? Vocês juntam-se em 2014 numa residência artística no Musibéria, em Serpa, ou a vossa ligação já vinha de percursos artísticos ou pessoais anteriores?

[Edgar Valente] Vários de nós já nos tínhamos encontrado antes. Já estávamos juntos n’Os Compotas [banda de tributo aos grandes nomes do funk, criada em 2012]. Entretanto eu ganho a residência artística, vou para Serpa e começo a fazer um projeto para reinventar a identidade da música portuguesa, juntando o tradicional e o electrónico. Mas quando começo na fase de criação, comecei a sentir a sentir a necessidade de ter mais gente a cantar, de ter vários instrumentos. A ideia começou a tornar-se um projeto com muita gente diferente, com cada um a trazer o seu arquétipo musical. Na altura fiz muitas viagens por Portugal, à procura de construtores de instrumentos. Depois começou o resgate musical [que deu origem à Criatura]. Sentia a necessidade de ter uma base sólida, humana, que já existisse…

Eu já tinha visto Os Compotas ao vivo e foi surpreendente ver como essa banda se juntou para o tipo de trabalho de Criatura…

[Gil Dionísio] Eu conheci o Edgar em 2012, quando estava a vir para a Lisboa. Eu já tinha bandas e ficámos próximos. Vi Os Compotas chegar e uma das conclusões a que temos chegado é que uma das bases para a música de Criatura ser tão diversa é que a base que nos faz tocar, além da música, é o facto de sermos brothers, de sermos amigos. O Edgar trouxe um pouco este ímpeto inicial: somos todos bué amigos e temos de estar a tocar juntos.

[Edgar Valente] Eu sinto que desde que começou Criatura houve um processo de desconstrução individual. Apesar de sermos banda em Os Compotas, o que cada um de nós deu à Criatura foi muito distinto. Na realidade tudo começou com o Paulinho [Paulo Lourenço, baixista de Criatura]. Lembro-me de estar com ele em estúdio e ele dizer: “Mano, eu quero estar contigo nisso!”. Depois por consequência, vieram os outros, veio a estrutura que é uma estrutura de amizade.

[Gil Dionísio] E transforma-se noutra banda… O facto de nós gostarmos de dizer que Criatura é um grupo de partilha em que há uma tentativa de toda a gente ter uma envolvência e uma existência nisto… eu acho que vem do facto de cada um vir de um sítio do país, tudo muito distinto e distante. Como Os Compotas já existiam, foi muito fácil este grupo tornar-se um grupo.

Na vossa música vocês fazem muita referência à ideia de múltiplo, de colectivo, de encontros que foram surgindo e que deram origem a determinado tipo de sons e de histórias. Mas também há um lado na vossa música em que se nota bastante a vossa individualidade enquanto seres, enquanto criadores, enquanto pessoas políticas também. Como é que se conjugam essas dimensões individuais e colectivas num projecto com 10 músicos e vários comensais à volta?

[Gil Dionísio] Com muita tentativa/erro e muita consciência. Há que considerar que nós tivemos a sorte de começar uma banda de forma muito ingénua, de a banda ir crescendo e tu ires crescendo com a banda. Tem muito a ver com isso, com crescimento pessoal…

[Ricardo Coelho] É giro estares a falar nisso assim. No meu caso, que sou mais velho, eu estava um pouco escaldado… Eu sempre fui de ir, de “fazer e acontecer” e depois fico assim: “Ahhh…” Quando recebi o convite do Edgar, eu estava de pé atrás: “Quero experimentar, mas o que é estes gajos querem fazer? Quero experimentar primeiro, e depois decido”. A gente marcou um encontro na Covilhã em 2013. Cheguei lá e a cena foi tão natural e tão forte que passado meia hora de estarmos juntos, eu fiquei: “Não estou a acreditar, eu tenho mesmo de tocar aqui”.

Vocês são 10 pessoas, com passados diferentes, bandas diferentes e têm de trabalhar juntos neste novo projecto, nesta nova sonoridade que estão a construir. Como é que isto se organiza?

[Gil Dionísio] É um grupo grande e já a nível individual as pessoas são resolvidas a nível de estilo [mas no que tocam] há uma distinção. Com o tempo foi-se subvertendo isso, dando outras voltas. Eu acho que o trabalho desta banda é um trabalho muito humano. É trabalho de crescimento pessoal. É impossível falar dos ensaios, da construção das músicas sem essa construção pessoal. Esse lado individual que estás a comentar existe porque nós trabalhamos com uma consciência de grupo, há uma procura grande do grupo porque existe esse discurso, mas há uma construção pessoal, uma tentativa de cada um de nós ter uma carreira pessoal, de não ser só aquele músico que está à espera do concerto. Cada um de nós tem mais bandas, um universo enorme, e depois houve uma aprendizagem sobre como é que se conjugam estas linhas todas. Falar de um disco destes é quase falar a um nível humano e pessoal, de organização de grupo e da tua interioridade. É uma conversa até meio mística, mas muito real.

[Edgar Valente] É mesmo isso. Não há um descurar dos processos humanos, é isso que faz a música ser tão verdadeira e tão genuína para nós. Na Criatura há uma coisa muito especial, de chegar a toda a gente, tocar a toda a gente, para continuar a existir e levar essa malha para a frente.


“Se fizéssemos música como a indústria quer, se calhar metade da banda já cá não estava.”


Vocês encontraram-se em Serpa e fazem um primeiro disco, Aurora (2016), em torno das raízes do Alentejo e Algarve. Neste segundo álbum vão para as Beiras. Qual a razão desta escolha? E porque é que nesse contexto escolheram o Coro dos Anjos, de Lisboa, como convidados para o álbum?

[Edgar Valente] Há aqui uma lógica que é a lei natural dos encontros. Foi assim que foi acontecendo. Aconteceu em Serpa porque houve um encontro natural. Neste caso queríamos que fosse um dico só de banda. Só que em 2018 eu fundei o Coro dos Anjos e muitas pessoas que estavam lá curtiam bué a Criatura. Chega a uma altura em que começa a ser necessário este reforço de vozes, e o entusiasmo do pessoal do Coro começou a agarrar-nos. Então dissemos: “Bora lá meter a malta”. Não foi nada conceptual, foi algo que foi acontecendo.

[Gil Dionísio] Fomos para a Covilhã trabalhar e quando damos por nós fomos influenciados pelas montanhas, claro. Então o disco tem essa influência. O Coro dos Anjos acaba por surgir da mesma forma que o coro alentejano surge no primeiro disco. Surge da mesma forma, mas vem da urbe, da cidade. É curioso isto do nosso disco ter influência do país (e até de fora) mas até certo ponto ter também a cidade representada, nem que seja pelo Coro dos Anjos que é local, do bairro dos Anjos, em Lisboa. O romantismo com o rural surgiu nas últimas décadas por causa desta coisa de ser algo que estava do lado de fora, era a relva do vizinho, mas a urbe já começa a ser essa relva também, porque começa a ser cada vez mais difícil viver em Lisboa, estar em Lisboa. A grande cidade é um sítio não desejado. O nosso disco também tem a cidade. Não sei até que ponto a razão de cantar com uma influência da montanha não vem até certo ponto apertada de todas as coisas da cidade. Cantar as músicas que aprendemos no meio da montanha, no meio da cidade.

O título do disco, Bem Bonda, vem uma história familiar. Como é que esta expressão se tornou um conceito para o álbum?

[Edgar Valente] Foi um dia muito especial. Eu estava na Covilhã e estava à conversa com os meus tios, quando a minha tia me fala do “bem bonda”.  Houve ali uma epifania… Estás a ver quando há um símbolo que te aparece e te abre várias portas? Aquilo ficou-me ali a bater. Eu fui ter com o Acácio Barbosa [guitarra portuguesa, na Criatura] e começa a vir a melodia.

[Ricardo Coelho] Estávamos num ensaio e o Edgar: “Olha lá esta malha”. E eu: “Qual é a tonalidade?”; “É dó menor”; “Dó menor? Fogo, tenho aqui um instrumento típico das Beiras, que até está extinto, tenho uma réplica, chama-se palheta”. É tipo o pai não do oboé, mas do fagote português, que, entretanto, morreu — a pessoa que tocava morreu. A coincidência foi brutal. Eu disse logo: “Adorava usar este instrumento”. Depois fizemos a residência para o concerto e trabalhámos o tema.

[Gil Dionísio] O tema aparece bem antes de suspeitarmos que havia um segundo disco. Começámos a tocar ao vivo porque sentíamos que a banda estava a caminhar para outra coisa. Um terço do disco foi aparecendo na estrada, em residência, encontros…

 Bem Bonda é uma espécie de álbum em movimento…

[Gil Dionísio] Sim, claramente. Depois no fim torna-se numa coisa mais “normal”, de fechar composição.  Isso representa muito banda. Há aqui uma tentativa-erro. Não é esse o objectivo, mas no processo há uma descoberta, o processo acaba por ser exploratório, por ser tão vivo e levar tempo. São anos sabes? A música fica ali a amadurecer. Isto não é uma receita, não quer dizer que haja um terceiro disco assim, é uma coisa que não se controla. É muito uma tentativa de honestidade. O mundo é difícil, o mundo pesa-te, tens rendas para pagar, tens ritmos, há trabalho, há pessoas diferentes, mas há uma tentativa de honestidade contigo e com o grupo. Vamos percebendo com o tempo o quanta a individualidade cada um dá: uns dão em coro, outros em composição, outros em tocar em pauta, é mesmo um grupo, um trabalho de grupo.

[Edgar Valente] É claramente uma espécie de processo espiritual, de caminho espiritual, que nós não conseguimos ter controlo. É tão mais profunda a forma como queremos viver as coisas que temos de respeitar os tempos de cada um. Se fizéssemos música como a indústria quer, se calhar metade da banda já cá não estava.

[Gil Dionísio] Há qualquer coisa aqui de do it yourself. Espiritual pode ser a palavra certa se pudermos ter um parágrafo para falar do que é a espiritualidade, para não ser uma palavra meio vazia. […] Eu acho que isso é um dos nosso objectivos, e há um cuidado muito grande com as palavras, com aquilo que se sente, como é que isso sai para fora e como é que vem para dentro. As coisas têm muito valor, as palavras têm muito valor, muita responsabilidade, então esta coisa da espiritualidade é quase um, “como é que tu trazes a palavra campo, prédio, trabalho, espírito, mãe, e agora fazes uma música?”. Este é o nosso desafio.

Quando escrevi sobre o vosso disco destaquei três dimensões: a dimensão propriamente poética, da palavra; a dimensão propriamente musical, e o vosso ecletismo; e a dimensão quase ético-política, de posicionamento no mundo… Queria perceber o que surge primeiro no vosso processo. Se é a ideia do tema que querem tratar, se é o próprio poema que alguém escreveu, se é a sonoridade que aparece e depois é que se procura a história e a letra. Como é que tudo isso se conjuga?

[Gil Dionísio] Sendo isto uma dinâmica de grupo em que há espaço para o individual, as malhas são compostas numa forma inicial: uma composição, uma linha, um tema, uma letra, às vezes uma ideia…  Há malhas que aparecem numa forma outras noutra… Há uma malha que eu fiz, a “A Festa do Medo do Gaiteiro”, que é literalmente para ele [Ricardo Coelho]. Então aqui a cor é óbvia. A música inicial, “Anunciação”, que é o Edgar que traz, a ideia não é o grupo, nem o Edgar, nem ninguém, é a própria ideia de anunciação.

[Edgar Valente] As coisas que têm raiz muito facilmente têm mais espírito. O tema “ Anunciação” vem das freiras de Santa Clara, de uma Ora Pro Nobis que vem delas. Aquilo para mim, todas as recolhas que fomos bebendo para nos inspirarmos, aquilo tem uma força… Ora Pro Nobis significa “rezai por nós” e a letra vem a partir daí: “Rezai por nós porquê?” E a letra parte daí.

[Gil Dionísio] Ainda bem que foste aí porque há uma outra palavra difícil de falar que é a palavra “raiz”. Se calhar a raiz é mesmo isso: uma vontade grande de arquétipo, de ideia simbólica, de início muito simples. Voltando à ideia do tema “A Festa do Medo do Gaiteiro”, a ideia é simples: é um gajo, o gaiteiro, com as suas festas, a sua gaita, as suas tradições, que sobe uma montanha…

Tu na apresentação do tema noutra ocasião explicavas essa ideia do gaiteiro que sobe a montanha, desce a montanha, sobe e desce, tem os seus compromissos e as suas rotinas, e quando chega ao topo tem quase uma opção: ou salta para o imprevisível, para um lugar em que não sabe o que vai esperar, ou regressa um pouco à normalidade, à rotina, à vida… De onde vem essa história? E porque é que decidiste fazer esse desafio para o gaiteiro?

[Gil Dionísio] A ideia é simples. O gaiteiro [Ricardo Coelho] é uma pessoa de que nós gostamos muito, ainda por cima mais velho que nós, para mim há logo uma lógica de isto já poder dar origem a uma personagem, a um arquétipo, já é simbólico. Como ele existem outras pessoas que não conheço pessoalmente, mas conhece-o a ele, que me deu qualquer coisa e decidimos fazer esta malha para ele. A ideia é simbólica, é a raiz. É este gajo que sobe uma montanha, mas pode ser as escadas de um prédio, se fores uma velhota com as pernas cansadas. Aqui a ideia é subir, é esta personagem que está cheia de coisas e acontece qualquer coisa… Há aqui qualquer coisa de raiz, de simbólico, de simples. “Como é que vamos compor esta história? Já está, não é preciso mais nada”. Estas ideias já são suficientes. É a ideia de raiz. Eu gosto de ideias conceptuais, de símbolos. Gosto de contar histórias e esta história começou ao vivo. Quando chegou ao disco foi gravar. Qual é a coisa simbólica que tenho de dizer entre duas malhas? Eu em vez de me pôr aqui a falar, como estou aqui, reduzes, reduzes, reduzes e ficou a personagem.

Sobre essa ideia de símbolos, vocês no título desse tema juntam duas ideias, dois conceitos, que nem sempre surgem associados: a festa e o medo. Normalmente o medo não é muito propício à festa e à celebração e vice-versa. Como é que se juntam essas ideias?

[Gil Dionísio] Acho que o bonito aqui é cada vez mais termos esta consciência de que enquanto grupo somos pessoas diferentes. Aquilo que para mim é festa, para ele pode ser medo. Aquilo que para mim é medo, para ele pode ser festa. No nosso máximo de cuidado lírico e de composição gostamos muito desta coisa da “festa do medo”: pode ser uma festa onde há medo; pode ser uma festa porque há medo; ou pode ser uma festa de medos. Pode não fazer sentido nenhum, mas há coisas que não fazem sentido. Só leres o título, se existir esta processo na tua cabeça, mission accomplished

[Edgar Valente] Sobre os medos é nós sabermos transformá-los, é saber que o medo se pode transformar em festa para que esse medo se possa transformar. Porque é que em “A Festa do Medo do Gaiteiro” há um groove afro-peruano atrás? Porque a raiz já lá está, está na gaita, está no gaiteiro, então a gente pode construir totalmente a partir daí. Acho que é quase um processo alquímico e cultural. É preciso haver raiz, porque é isso que está na génese da Criatura. Qualquer planta que não esteja ligada à raiz pode durar um bocadinho, mas deixa de florescer.

E voltando à expressão “bem bonda”…

[Edgar Valente] A ideia da [expressão] “bem bonda”, o que mais me fascinou, foi o facto de aquilo significar “já chega” e a expressão não parecer isso. É uma expressão muito bonita, que não parece ter aquela carga negativa que muitas vezes tem o “não”. “Bem bonda” é uma cena que na beira não significa apenas “já chega”, é sempre empregue com uma noção de uma continuidade…

“Como se já não bastasse…”

[Edgar Valente] “Como se não bastasse…”. É como se tu não matares aquele mal ali, aquilo vai-se transformar noutra coisa. A própria palavra propõe discurso. Ainda agora a minha avó estes dias usou a expressão. Ela às vezes diz “bem bonda” solto, mas ainda é difícil explicar. Ela usa a expressão e deixa um espaço para que tu leias o resto. Ela diz: “bem bonda contas que já tinha para pagar”. Diz isto porque já tinha antes falado de um problema… Parece-me haver muitos espaços de diálogo e imaginários que isso cria.

Voltando às raízes, houve várias pessoas que identificaram na vossa música uma certa influência, uma certa ancoragem nos cantautores portugueses, em particular no Zeca Afonso. Mas vocês já disseram que isso era um “elogio quase amargo”. Porquê?

[Gil Dionísio] Não é tão amargo assim, mas é uma perspectiva. Do meu lado eu acho que pode ser amargo porque vivemos num país em que a ditadura, aquela nuvem política de uma coisa muito má que nos aconteceu, não foi assim há tanto tempo. A existência do Zeca, do Zé Mário, de um Fausto, de um Adriano, todos eles representam não só a música, representam um ponto de viragem de um país que me dá impressão que está mal resolvido. O país não vive assim tão bem. As pessoas que vivem mal, vivem mesmo mal. Há muita pobreza e se calhar a maioria dos meus amigos tem muita dificuldade em arranjar trabalho e quando arranjam há uma sensação meio apocalíptica de que isto nunca vai dar. Há alguma coisa que não está bem. E há uma dureza qualquer em saber que o Zé Mário ficou conhecido por um “FMI”, e não sei quantos anos depois ainda continua a bater o mesmo problema. Ou tu ouvires um Zeca com aquelas palavras arcaicas e aquelas músicas continuarem a fazer sentido para caraças. Sinto uma certa amargura quando nos comparam com esses cantautores porque às vezes é pela intenção, nesta crueza que nós sem querer conseguimos trazer. O Zeca avançava com um discurso politizado meio disfarçado, poético, e eu acho que nós também o fazemos. Não porque temos medo de uma censura, mas porque para ter um discurso político (não de maneira partidária…), para termos uma atitude política na nossa vida, sabemos que para chegar às pessoas é preciso meter lírica, meter corpo, emoções, toque, ser sensível… Continuamos a não poder falar de política nas canções de uma forma normal, tens de falar de uma forma meio disfarçada, meio humorística, tens de ter ali um truque porque ainda estamos mal resolvidos. Eu diria que é isso: isto não está resolvido. Então há aqui uma amargura.

É o que Zé Mário Branco também dizia: “Mudar de vida é uma questão que ainda não está resolvida”.

[Edgar Valente] Eu não sinto tanto que seja uma amargura. O que sinto é que é algo de tão grande responsabilidade… O Zeca conseguiu criar uma identidade popular… Há uma intenção profunda na Criatura de trabalhar essa raiz popular a partir de uma matriz universal. E o Zeca foi das primeiras pessoas a fazer músicas do mundo. A música dele e os arranjos… Aquilo tinha muitas influências de muitos sítios e ao mesmo tempo tinha uma raiz muito forte neste território. Nós temos a mesma vontade. Não sinto uma amargura, mas uma responsabilidade e percebo isto que o Gil diz: se a amargura vier não é do nosso sentir, mas do próprio sentir daquilo que existe como contexto social.

Temas como “Lobbysómem” ou “Da Praxe” são temas de crítica social e até política, com arquétipos de personagens que satirizam valores e formas de comportamento. Vocês acham que em certo sentido, nessa primeira parte, o álbum é uma forma de falar de política, mas de outra maneira — menos panfletária e mais simbólica?

[Gil Dionísio] Muito à Grécia Antiga, sabes? Cada vez mais nos vejo como gregos malucos. Tu quando pensas no início do teatro era super categórico: o coro representava a voz do povo; tinham máscaras para o triste e contente. O início do teatro e dessa crítica política do dia a dia, é algo que está ligado à raiz, a algo muito essencial. Esta teatralidade é parecida. Essa coisa do nosso disco ter assim uma espécie de um feeling dos anos 70 meio conceptual é porque estamos só a repetir processos que já muita gente os fez, mas que não é agora o processo com mais tendência a ser feito porque o mercado está numa de instantâneo e isto claramente não foi um processo de instantâneo.

[Edgar Valente] Essa primeira parte é uma busca por encontrar o equilíbrio, desta música ser transversal a vários níveis: etários, de estilos…  Há uma vontade de unificação muito forte desde o início. Por isso há uma necessidade de equilibrar. Neste disco eu sinto que a primeira parte é fogo, depois sinto que começa a virar…

Quando ouvi o disco achei que havia ali duas fases. Uma mais a falar para o mundo, para os outros, uma Criatura mais intervencionista e crítica; e depois dá-se uma segunda parte mais introspectiva, quase de saudade antecipada de um futuro onde há coisas que se perdem, de memórias que se esquecem… Isso foi consciente?

[Edgar Valente] Sim, sim… Para mim a primeira parte é tão importante como ver este outro lado mais introspectivo, mais do ponto de vista emocional, que se trabalha na segunda parte do disco. Para mim é uma intervenção tão ou mais importante.

[Gil Dionísio] Complementam-se… Eu adoro histórias e contos e o processo narrativo de uma história. O disco é também ele uma história e houve ali um momento em que os títulos tinham algumas diferenças… Já existia “A Noiva” e “O Encanto”. Se a gente meter esses títulos que parecem títulos de livros, ainda fica mais aberta esta possibilidade de cada uma poder ser uma história, quase um conto independente ou fazer parte de uma narrativa maior. Isso foi feito com essa consciência. Não se sabe como a malta vai ouvir, mas foi feito com a consciência de título, de história por partes.

Quando lançaram o Aurora, em 2016, houve uma sessão de escuta colectiva do álbum na Casa dos Amigos do Minho, em Lisboa. Numa das músicas desse disco, a “Pastor sem Cajado”, falam dessa ideia de haver “tanta gente sem casa e tanta casa sem gente”. Passaram-se seis ou sete anos e a Casa dos Amigos do Minho foi despejada… Como lidam com esse lado das transformações da própria cidade e como é que isso se relaciona com vocês e com a música que fazem?

[Edgar Valente] Essa referência está lá nos temas “O Padeiro – Parte 1” e “O Padeiro – Parte 2”. A ideia veio de uma conversa com a minha avó, que o Gil agarrou, e que abriu o imaginário do padeiro já não vir no Natal. E depois ficou ali uma vontade de uma música que eu já andava a cantarolar e no fundo encaixou com os acordes. Na realidade aqueles acordes iniciais vêm exatamente do dia em que fui à Casa dos Amigos do Minho e eles estavam a ser despejados. Fui para a Fábrica Braço de Prata, sentei-me ali ao piano e comecei a tocar: “É uma casa portuguesa com certeza”, em cima daqueles três acordes que são menores. Começou a virar a harmonia da malha e depois disso comecei a escrever em cima dessa música, mas já com a ideia do padeiro que já não vem no Natal. O tema “Padeiro – Parte 2”, demorei um ano e tal a fechar a letra. Veio dessa necessidade de transportar a história. Porque é que a ideia do padeiro já não vir no Natal, que a minha avó nos contou, está relacionada com a Casa dos Amigos do Minho? Porque de alguma forma foi onde encontrei motivo para me inspirar, para conseguir dar mais força aquilo. Pelo facto de os pandeiros passarem sobretudo nas casas que as pessoas habitam, onde há famílias, onde há uma rotina.

[Gil Dionísio] Se calhar também deixam nos hostels, mas não é aquela relação do espírito dos sítios. Esse tema, apesar de não ser tão explicito como o “Lobbysómem”, é essencialmente sobre essa lógica da cidade. Há uma melancolia. Aliás, não é tão explicito porque ainda é too soon. É uma coisa que estamos a viver, nem sequer temos distância. Nós estamos a viver isso agora, então o padeiro já não vir Natal tem essa melancolia e essa dureza, porque se calhar até é das que mais fala sobre a nossa vida pessoal.


“Nós percebemos que queríamos estar mais próximos das pessoas que nos acompanham e decidimos criar a nossa própria plataforma e ficar em diálogo.”


Vocês editaram os dois discos como edição de autor e independente, certo?

[Edgar Valente] O primeiro foi edição independente, mas tivemos distribuição da Tradisom e tivemos o apoio à residência artística da Musibéria.

Agora associaram-se à Omnichord Records.

[Edgar Valente] Desta vez tivemos o apoio da GDA também da Câmara Municipal do Fundão para fazer a pedra-pão [objecto físico oferecido a quem compra o álbum digital na página oficial da banda] e depois conseguimos a edição do formato físico, que vai ser editado pela Omnichord Records.

[Gil Dionísio] O mercado está em transformação profunda. Até a questão do próprio selo das editoras já é muito diferente. Nós somos literalmente independentes, mas temos apoio ou parcerias.

[Edgar Valente] Exacto. A edição do vinil tem o selo da Omnichord Records, mas a edição oficial de lançamento é nossa, com a pedra-pão.

Hoje em dia a maioria das pessoas ouve música nas plataformas digitais. Há um grande acesso a muitas coisas diferentes e temos aquelas playlists pré-feitas: “Se queres música para sorrir é esta”, “Se queres música para acordar é esta”, etc. Como é que vocês como artistas com um conceito muito próprio, pensam a relação com o vosso público e de que forma procuram construir essa relação?

[Edgar Valente] Começámos a pensar que a nível de playlists é difícil. Lembro-me de me perguntar: “Onde é que a gente se encaixa?”. Quando lanças um disco para o Spotify é considerado um lançamento. Se for um disco é um disco. Só podes escolher um single para playlist. Não há grande hipótese de tentarmos submeter a “Bem Bonda” para a playlist de intervenção, “A Festa do Medo do Gaiteiro” para a “joy and party”… Mas também não foi o tipo de coisas em que mais pensámos. Nós preferimos moldar de outra forma… Acreditamos mais que este trabalho feito a partir da raiz tem efeito quando chegas às pessoas certas, mesmo que não seja uma quantidade grande. Se calhar ao longo de muitos anos isto vai-se expandir.

Então falem-me um pouco da ideia do site…

[Edgar Valente] Nós percebemos que queríamos estar mais próximos das pessoas que nos acompanham e decidimos criar a nossa própria plataforma e ficar em diálogo, com o contacto directo. Tu podes tentar gerar muitos followers no Facebook, mas cada vez mais o algoritmo bloqueia a divulgação e tens de pagar para chegares ao teu público. Não faz sentido. Nós pensámos que se tivermos a nossa plataforma, vamos investir um pouco, mas vamos ficar em contacto directo com o pessoal e quando há coisas importantes podemos informar, como agora fizemos com o concerto de lançamento…

[Gil Dionísio] A ideia do Bando é tu comprares o disco, descarregas para ti e tens o acesso ao pão que simboliza o disco. Nós não estamos a tentar que seja um business. Funciona para nós, mas é mais esta coisa: “Venham para aqui”. Ao longo do tempo, com canais directos, vamos tentar criar uma lógica de diálogo, de comunicação. Está tudo a cair nisso, mais vale criares o teu site, a tua plataforma, mas nós enquanto banda estamos a tentar que seja uma coisa para divulgar o material e promover os concertos, mas numa lógica diferente do Facebook ou do Instagram, em que tens pessoas que vão lá gostar e comentar. Aqui tens gente que é mais próxima.

Também trabalharam muito a questão do artwork do álbum, numa colaboração com Catherina Cardoso, João Catarino e Diogo Vaz Cavaleiro…

[Gil Dionísio] Tem o mesmo poder que a palavra, a mesma importância. Cada vez mais um artista tem de ser um artista completo. Imagina termos a palavra cuidada, o som cuidado e depois a imagem era ao lado… Tem que existir esse cuidado. O trabalho deles é muito a partir de fotos, com analógico. Claro que há Photoshop, mas eles esforçam-se que exista uma coisa analógica, que é mesmo com água…

É um trabalho quase paralelo ao trabalho musical, que conjuga tradição e modernidade, novas técnicas e linguagens tradicionais…

[Edgar Valente] Misturar linguagens…

Vocês lançaram o vosso álbum completo, e não por singles e sem videoclipes. É quase uma antítese do que é mais comum no mercado hoje…

[Edgar Valente] Não é que a gente queira ser contra a forma como se faz, mas tem a ver com a lei natural dos encontros. Um videoclipe, por exemplo, precisa de identidade, imagem, dinheiro, estrutura… Talvez ainda não tenha chegado o momento.

[Gil Dionísio] O disco saiu assim porque queremos ser fiéis a uma narrativa que estamos a tentar construir há muito tempo. Claro que houve momentos em que queríamos lançar de outras formas, e houve uma altura que percebemos: não é por aqui. São escolhas difíceis, mas é tentarmos ser coerentes, estar pelo essencial e mais vale garantir o que conseguimos garantir: as letras, a imagem, o som, o Tó Pinheiro.

[Ricardo Coelho] E é fixe dar espaço para a imaginação das pessoas. Esse suporte visual que se calhar a malta precisa hoje em dia, por isso é que tudo lança com vídeo, é por falta de disponibilidade da malta em poder imaginar e perder-se na cena auditiva. A própria cena do vídeo pode ser limitativo.

[Gil Dionísio] E o nosso disco convida a isso, são malhas longas.

[Edgar Valente] Olha o casaco daquele gajo resume bem o que estamos a falar: “Tough choices made good stories” [risos].

“Isto pode estar tudo lixado, mas somos artistas independentes e estamos aqui. Se calhar um gajo anda aqui a contar trocos, mas um gajo está aqui para fazer. É isto que a gente veio cá fazer. Os artistas que estão todos com boa cara são todos uns bravos”

Queria acabar com duas questões sobre o confinamento e a pandemia. Como é que vocês enquanto músicos viveram a situação da pandemia?  E ainda relacionado com isso, os vossos concertos vivem muito do corpo, da presença, do abraço, dos saltos, e agora vão fazer o concerto de lançamento com toda a gente sentada, separada. Como estão a lidar com isso e o que é que o público pode esperar?

[Gil Dionísio] Tem de se mostrar que é possível fazer. Tem de ser possível fazer. Não é só respeitar as regras. Temos de nos respeitar uns aos outros. Isso implica entrar num modo de compromisso. E nós estamos habituados a fazer isso. Há aqui uma tentativa de fazer pelo grupo, que pode ser a humanidade, ou a cidade de Lisboa, ou as pessoas que estão no raio que a gente poderia infetar…  Há um compromisso em respeitar isso, mas também o compromisso de ir para cima de palco e mostrar que é possível. Isto pode estar tudo lixado, mas somos artistas independentes e estamos aqui. Se calhar um gajo anda aqui a contar trocos, mas um gajo está aqui para fazer. É isto que a gente veio cá fazer. Tem que haver alguma atitude. Temos de ir para a frente. Tem que ser. Tem de ser possível.

[Edgar Valente] A gente está ali e o efeito da música pode fazer com que as pessoas saiam dali e vão bater o pé às coisas que têm de bater o pé na sua vida. É tentar criar essa liberdade no espaço que nos é dado. Neste momento o espaço que nos é dado é aquele palco. […] Sobre como é que a gente passou a pandemia, uma das coisas mais bonitas que trouxe foi escolhermos as pessoas com quem queremos estar, escolher os circuitos, tomar essas opções. Isso separou-nos de uma coisa mais social, e fez-nos focar no essencial. Se calhar sem a pandemia o disco ainda não estava cá fora. Fez-nos focar e pensar: este trabalho é mesmo necessário agora. Por isso é que fizemos um grande esforço. E foi também importante perceber quem é que está para nós. Nenhum de nós acabou a passar fome.

[Gil Dionísio] Acho que é importante o pessoal saber isto. Muito artista, muito músico, está a passar mal, a passar fome, a perder a casa. Se não fosse as lógicas de grupo e de comunidade… Há casos pesados no nosso círculo, muita gente a receber apoios da União Audiovisual. Se isto puder ficar escrito, se for possível passar esta mensagem: a União Audiovisual safou muita gente. Bastava ligar para lá, “sou a pessoa tal”, e no dia a seguir estavam e estão lá a deixar comida. Até estou a ficar emocionado… Até levavam produtos desmaquilhantes porque sabem que a malta é artista e continua a trabalhar. Não foi caridade. O que eles levavam era o essencial, mas com uma consciência profunda e sem fazer perguntas. Eles iam lá no dia quando as pessoas diziam que não tinham nada. Conheço casos de malta que ficou sem casa. Não foi nada fácil e a malta esteve a passar mal a nível mental, emocional. Foi duro. Os artistas que estão todos com boa cara são todos uns bravos porque estão a não mostrar que isto foi duro. Para 99,9% dos casos foi tough. É importante existir esta consciência. Lá porque a malta não anda para aí a chorar, porque não há essa vontade, não quer dizer que não haja quem não tenha comida. Há mais de um ano que muita malta não trabalha.


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