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Fotografia: Rui Caria
Publicado a: 08/10/2023

A mesma matéria em diferentes formas.

AngraJazz’23 — Dia 2: geometrias do som

Fotografia: Rui Caria
Publicado a: 08/10/2023

O segundo dia do festival AngraJazz teve um preâmbulo (ou talvez tenha sido o primeiro dia a ter um posfácio?) com a apresentação dupla, no dia feriado de 5 de Outubro, de um quarteto extraído do colectivo Coreto: o quadrado Formoso/Raro/Barbosa/Marrucho fez-se ouvir no âmbito da programação paralela e aberta do festival, o Jazz na Rua, na Loja Expert da Rua Direita, primeiro, e, noite dentro, na Casa do Sal, numa jam session aberta que empolgou a plateia que esgotava por completo o espaço.

Estes momentos mais, digamos, “informais” são uma tradição saudável, já que são oportunidades agarradas por jovens músicos para troca de ideias e experiências com outros músicos mais “rodados”. O que não significa que não seja natural motivo de espanto quando uma pausa do “grupo de serviço” serve para a subida ao palco de um muito jovem baterista de apenas 5 anos. O pequeno Artur, de seu nome, mostrou-se entusiasmado com a possibilidade de exibir os seus dotes num kit desmedido para si, mas ainda assim, como montanha que se ergue perante alpinista motivado, não intransponível. E o que os seus 5 anos de idade não lhe permitem ter ainda, o seu contagiante entusiasmo compensa largamente. A um primeiro momento em solo absoluto com alguns pormenores realmente deliciosos, sublinhe-se, sucedeu a recompensa: José Pedro Coelho, saxofonista do Coreto também presente, juntou-se à “festa” do pequeno Artur, sem exibir uma molécula de condescendência — classe! — e, pouco depois, o contrabaixista José Carlos Barbosa fez exactamente o mesmo, com o trio a encaixar-se num groove fantasista conjurado pelo pequeno baterista que nem sequer chegava com os pés aos pedais do bombo ou dos pratos de choque, mas que demonstrou possuir suficiente energia e destemor nos braços para arrancar aplausos da plateia. A mãe revelou-nos depois que o “Artur adora jazz, música que começou a ouvir quando tinha apenas uma hora de idade”. Como é que se diz? É desde pequenino que se refina o talento, certo?

O programa de sexta-feira, segunda jornada de três da edição de 2023 do festival AngraJazz, reservava para a noite apresentações do americano Ben Allison Trio e do portuense Coreto no belíssimo espaço do Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo, mas o dia que tinha começado chuvoso acabou por abrir e convidar a um passeio pelo centro histórico — sempre experiência retemperadora do olhar — que culminou com um concerto de fim de tarde do Wave Jazz Ensemble numa pequena praça servida por um daqueles icónicos quiosques que esta cidade soube preservar.

Com Nuno Pinheiro na bateria, Antonella Barletta no piano (versão electrónica já que as condições não justificavam um acústico, claro), Paulo Borges no trompete, Rui Melo no saxofone tenor — todos eles membros da Orquestra AngraJazz — e ainda Antero Ávila no baixo eléctrico, o veterano de serviço, o combo mostrou elegância e desenvoltura na leitura de um repertório consensual de standards e que por isso mesmo encaixa na perfeição nestes contextos, deixando um sorriso largo nos rostos dos presentes espalhados pelas mesas da esplanada ou nas escadas da igreja do lugar que ainda eram banhadas por alguns bem-vindos raios de sol. Com o clássico “So What” a abrir e um original de Paulo Borges (fixado já no álbum Perspectivas que este ensemble lançou em 2022) logo de seguida, percebeu-se imediatamente a “onda” deste grupo: a de aproveitar a história sem descurar a criação presente. Estratégia ganhadora, claro.



O momento alto deste segundo dia de AngraJazz, no entanto, teve lugar no Centro Cultural e de Congressos, espaço uma vez mais completamente lotado. O trio de Ben Allison é realmente qualquer coisa e coube-lhe, como sublinhado na apresentação a cargo de José Ribeiro Pinto, a 150ª apresentação no já muito considerável historial que este festival ergueu em 24 anos. Líder contrabaixista à direita, saxofonista Ted Nash ao centro e guitarrista Steve Cardenas à esquerda. Uma frente próxima e unida, sem hierarquia — todos, por exemplo, tiveram oportunidade de se dirigirem ao público — que o trio usou para se espraiar por um incrível repertório de Carla Bley e Herbie Nichols ou até de Leonard Bernstein. Mas o início da viagem em que o trio nos levou foi também declaração de filiação e identidade: “The Train and the River” é peça escrita pelo clarinetista e saxofonista Jimmy Giuffre para o álbum de estreia do seu trio, lançado em 1957 e o molde assumido do equilátero desenhado por Ben Allison.

Allison, Nash e Cardenas já fizeram juntos muita estrada e devem somar incontáveis milhas aéreas, já pisaram muitos palcos, mas essa experiência toda não é nunca imposta ou exibida gratuitamente, com os músicos a assumirem antes uma genuína postura de humildade, sempre de sorriso amplo — é notória a satisfação que cada um retira de tocar neste trio — sempre em entrega absoluta à matéria musical que conjuram colectivamente. Ben Allison sola com vivacidade contagiante, desenhando frases ultra-expressivas, carregadas de nuance, mas ao mesmo tempo sem nunca colocar a técnica à frente da emoção, que é funda como o oceano que nos rodeia. Cardenas, por seu lado, é um poço sem fim de classe, uma vez mais levando para o palco um som límpido e puro, pouco processado, por onde vão despontando ecos de blues do Mississippi ao Mali, dos balanços mais tropicais da Bossa ou da canção cubana e amplos apontamentos retirados do grande lago da “americana” onde convivem os modos folk, os cancioneiros da Broadway, do jazz e do gospel e de tantas outras tradições, apetitosa amálgama que faz com que cada frase que avança pareça intrincada filigrana feita de electricidade. E depois há a alma transparente de Nash, um músico que só sabe soprar verdades universais, sempre em sintonia pura com os seus companheiros, sempre com um sentido melódico de refinado bom gosto.

Ben Allison parece contar histórias quando toca e fazer música quando fala, o que é curioso. Contou-nos uma história de uma viagem do trio a Cuba, da escolha de um tema para a apresentação e da decisão de fazer uma homenagem a Leonard Bernstein de quem se celebrava na época o centenário. Forma perfeita de apresentar “Something’s Coming”, peça de West Side Story que integra o álbum de releituras desse clássico musical que o trio lançou em 2019, Somewhere Else: West Side Story Songs. Steve Cardenas, por sua vez, arriscou mesmo falar em tímido português, avisou-nos que vem aí um sucessor para os três álbuns que o trio já leva na sua conta e atirou-se a mais uma peça de Carla Bley — “esta”, disse, provavelmente sendo irónico (já que os números reais são distantes dessa marca), “já soma um milhão de plays no Spotify”. Não soma, infelizmente, mas iso não lhe retira um átomo de brilhantismo.

Allison referiu — enganando-se ligeiramente — que esteve, juntamente com Nash, em 2005 no AngraJazz com o Herbie Nichols Project (foi em 2004, na verdade, como confirmado por um dos colegas veteranos nestas andanças) ao lado do já desaparecido pianista Frank Kimbrough. E isto antes de apresentar um dos inéditos recuperados dos arquivos do grande pianista Nichols, que deixou obra escrita e nunca antes gravada. Um privilégio, portanto, poder escutar “She Insists”, composição de 1957 que nas mãos do trio se torna matéria de eternidade.

Esta missão assumida por Allison e restantes companheiros de continuar a tocar a música de Nichols é de nobreza absoluta e de importância desmedida, deixando claro que a música pode sempre desprender-se de um tempo e chegar ao futuro. Foi bem bonito.

A segunda actuação da noite coube ao Coreto, o dodecágono da portuense Porta-Jazz que tem no saxofonista alto e flautista João Pedro Brandão o seu timoneiro. Com José Pedro Coelho e Hugo Ciríaco em saxofones tenores, Rui Teixeira em barítono, Ricardo Formoso e João Pedro Dias nos trompetes, Daniel Dias e Andreia Santos nos trombones, AP na guitarra, Hugo Raro no piano, José Carlos Barbosa no contrabaixo e José Marrucho na bateria, este Coreto é múltiplo e uno em simultâneo, uma entidade que domina a ebulição e a contenção em igual medida e que ao vivo vibra numa frequência muito particular.

A Tribo, trabalho exímio que a Carimbo Porta-Jazz editou em 2021, foi a peça apresentada. A composição de Brandão explora de forma muito inteligente a tensão entre a organização e a liberdade, entre o que se define previamente e o que se pode inventar no momento, mas o Coreto já domina de tal forma a gestão dessa tensão que é difícil entender onde acabam as instruções claras impressas na pauta e onde começa a personalidade de cada um dos belíssimos músicos ali reunidos a criar em cima das molduras definidas. Em 2022, este Heart Ensemble of Invicta, como então nos referimos ao Coreto aquando da sua apresentação no âmbito do festival organizado anualmente pela Associação Porta-Jazz, inspirou estas linhas: “O Coreto é uma entidade especial, maleável, tão capaz de swingar de forma coesa como de se espraiar em mais abstractas orquestrações, de soar romântico ou cinematicamente tenso, de ir de Hollywood à Cinecittà enquanto o diabo esfrega um olho. Essa elasticidade, muito assente nos imaginativos arranjos que fazem uso de toda a amplitude cromática do grupo e das muito pronunciadas capacidades técnicas e interpretativas de todos os seus elementos, transforma cada concerto do Coreto em manifestação celebratória do prazer de fruir o acto criativo, da amizade, da simples possibilidade de vibrar colectivamente”. Palavras que continuam, claramente, a fazer pleno sentido. 

Música de rigor e de imaginção ampla, est’A Tribo ressoou, uma vez mais, com magnífica energia nesta ilha atlântica aberta ao mundo, à história, ao presente e até ao futuro. Porque de cada vez que um músico improvisa ele inventa um novo futuro.


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