Em Braga, há uma cidade dentro da cidade. Há a esfera clássica, do comércio local, mundano, da Avenida Central, do jardim de Santa Bárbara, da circunspecta medievalidade da baixa — um todo de aura modesta que não nos convida, existe sem se pronunciar, disponível para ser calcorreada e nada dizer. Depois, abrem-se as portas do antigo edifício da Guarda Nacional Republicana. Lançamo-nos num novo mundo chamado gnration — uma fortaleza artística plantada no centro bracarense, que se revela num labirinto meticuloso, de instalações audiovisuais de Ryoichi Kurosawa ou Maotik, de pátios e agricultura vertical, arrumos e elevadores, projectos educativos e residências, corredores e incubadoras de start-ups. O trabalho da dinâmica equipa é particularmente notável na música e, assegura o director de programação, Luís Fernandes, estamos a falar de “um espaço não só de acolhimento de espectáculos, mas também de criação”.
Este é o dínamo do ciclo Trabalho da Casa, que a equipa tem dinamizado há vários anos, convidando bandas locais com vista à sua potenciação, por via de um “estímulo adicional” que é sempre customizado — podendo, por exemplo, recair na ajuda à gravação discográfica ou no “emparelhamento com outros artistas”. A estratégia mapeada para o mais recente convidado da iniciativa, Ângela Polícia — uma das entidades do prolífico Fernando Fernandes — foi diferente. A revelação do rap firmada com Pruridades, um dos melhores álbuns nacionais de 2017 para o ReB, aceitou a proposta do gnration com o objectivo de vitaminar as suas performances antes da edição do novo álbum, Apùtece-me!.
Isso implicou o abandono precoce da configuração esquelética que toma conta de muitos concertos de hip-hop: “O meu espectáculo era quase como um teatro, um stand-up: eu subia para cima do palco, a batida a dar e eu a debitar, mas era só eu. Duas pessoas num palco vazio, exige uma energia muito grande para preencher aquilo tudo”. Daqui procedeu o envolvimento do colectivo Openfield Creativelab, que coordenou a luminoplastia (o uso inteligente da contraluz) e o aparato cénico (tubos de luz formando as iniciais do artista) e também fora de palco (pequenas cápsulas de LEDs), no que se desenhou como uma “solução simples para ele levar para qualquer lado”, detalha Luís Fernandes, e que não subjugasse o “carisma” intrínseco de Ângela.
Antes de mais, foi prioritário enformar o seu segundo longa-duração — projecto que está a ser pensado desde a edição do antecessor, mas que se pôs em pausa por prudência. Foi preciso salvaguardar a promoção desse álbum editado pela Crate Records, que o levou a palcos como o Zigurfest ou — como recorda ainda embevecido — a fazer a primeira parte dos norte-americanos Shabazz Palaces. “Foi altamente. Há assim uma reverência estúpida, porque eles também são seres humanos como nós”, confidencia Ângela no sábado, horas antes de estrear o novo material perante uma blackbox que fará reverberar com cada gesto seu. Afável, expressivo e convicto do que quer, este também é um ser humano como nós — mas cuja verve, apetência e descompromisso com convenções sónicas ameaçam fazê-lo subir na taxonomia.
À noite, lembramo-nos do porquê. Quando Ângela faz a sua entrada com um capuz, uma lanterna que volta para o público e rimas incendiárias, sem alguma vez terminar o suspense, é o culminar de uma semana de ensaios e reuniões na plataforma bracarense — dentro de uma janela temporal que tem sido incaracteristicamente intensa.
A preparação do espectáculo é uma extensão do novo álbum, que agrega retalhos do último ano e meio, mas cuja soldagem — faltando apenas a masterização — se fez em duas vívidas semanas do passado mês de Fevereiro. Tudo sucedeu na casa do seu amigo e co-produtor Lucas Palmeira, que lhe fez um ultimato: “Se não apareces amanhã em minha casa, eu desisto disto!” É seguro dizer que não aconteceria; as palavras e os gestos com que Ângela antecipa Apùtece-me! — que sai no final de Março — mostram um artista ciente do seu apanágio, com vontade de mais, de lograr do calor do momento. Mas talvez ainda paire a lembrança de Pruridades: o programa sonoro do seu primeiro disco, caleidoscópio desorientador de dub e trap, não se deu a uma fermentação rápida: “Tinha muitas aptidões, mas não tinha um foco”, que o músico (versátil, dividindo o seu tempo entre os Bed Legs, O Amante Negro, Osso e Projéctil) demorou a encontrar.
Para este disco, houve força motriz abundante para Ângela compor e produzir como nome principal, o que fez no seu próprio estúdio; também colaborações (mais em breve…), como com a promessa brasileira Thiago Arit, que trouxeram “atalhos” e ensinam a “não estar sempre fechado ao mundo”. A postura anula o quase-solipsismo negativo de outrora, quando, diz, “fechei-me sobre mim e caguei um bocado no mundo”. Hoje, carrega as “flutuações psicológicas” de outrora com “mensagens de consciência”, de “reforçar laços”, mas ainda com um olho no submundo.
E, sonoramente, o que se passa com Ângela? John Coltrane, Charles Bradley, José James… — as referências do set que levou à coimbrense Rádio Baixa, em Novembro de 2018, estão francamente distantes, a não ser que pensemos no hemisfério analógico que ocupam. O álbum, que “vai ter mais banda”, é um esforço de amigos a “tentar criar uma mistura entre o analógico e o digital”. A promessa de que vamos “ouvir bateria, baixo, guitarras, e muita electrónica marada” rapidamente se concretiza ao vivo.
Faz pleno sentido que, em palco, Ângela abandone o registo simplista da voz e da máquina, porque cresceu para além dele. Emanuel Fernandes, Pepe, MOCA e Lucas Palmeira acompanham-no e conspiram numa toada assertiva, densa, menos psíquica, mais imediata, às vezes numa pulsão de rock, outras vezes num talhe electrónico de cortar a respiração. São temas sobre identidade e reflexão, em que a cidade aparece incrementalmente como antagonista — “tenta a tua sorte na cidade grande / sai de dentro para fora, de nunca para sempre”; “cai da colina verde para o chão cinzento”; “o ritmo da cidade não pára / a vida desta gente não anda”.
Em Pruridades, cujos temas ganharam nesta noite roupagem mais tangível, Ângela era o “puto das cidades, de espírito livre, [sem ser] de ninguém [ou] nenhuma tribo”, funcionando como “fio condutor” da exploração. Não há razão para descrer nisso neste que se avizinha: tudo o que ouvimos e vemos é execução perfeita, revolta tão ou mais sublime como da última vez, possível quando há poesia, possível quando há condições para tal. É unificador o poder deste produtor e animal de palco, que se alimenta da nossa energia (como quando dança de olhos fechados entre nós).
E não se pára aqui — há mais limites para fazer desintegrar, mais portas do submundo a abrir, o trabalho de um melhor amigo a homenagear — o desaparecido Razat, fundador da Crate Records, editora da qual Ângela enverga orgulhosamente a t-shirt, contribuiu com três batidas para Apùtece-me! e “foi a única pessoa que acreditou” na aventura musical a solo de um dos seus melhores amigos.
Com performance crescida e gravações majestosas, a par e passo, Braga pode orgulhar-se de Ângela Polícia e dificilmente deixará de ter razões para tal. “Sou um ser em expansão”, sentencia. “Não esperem outra coisa de mim senão expansão.”