No final da noite inaugural da 33ª edição do festival Guimarães Jazz, no Café Concerto do Centro Cultural Vila Flor, Ambrose Akinmusire conversava descontraidamente com Alexandra Ridout, trompetista de serviço no quinteto de Tommaso Perazzo, o pianista encarregado da missão de animar as jam sessions que rematam cada uma das jornadas deste evento. Do que falavam, não sabemos, mas ali estava alguém que tinha acabado de apresentar uma ambiciosa peça musical, ovacionada de pé algumas dezenas de minutos antes, em distraída conversa de bar como se aquele fosse um dia como qualquer outro. Só que não.
Honey From a Winter’s Stone é uma ambiciosa criação para ensemble de geometria invulgar — o trompetista norte-americano faz-se ladear pelo poeta-MC Kokayi, pela teclista-vocalista Chiquita Magic, pelo baterista Justin Brown, pelo pianista Sam Harris e ainda pelo Mivos String Quartet das violinistas Olivia De Prato e Maya Bernardo, do violista Victor Lowrie Tafoya e do viololoncelista Nathan Watts — em que o jazz é o “esperanto” que permite conversar simultaneamente com a música clássica e com o hip hop, como se ocupasse uma espécie de “meio caminho” entre esses distantes universos, como se África fosse, afinal de contas, a ponte entre o velho e o novo mundo, a Europa e a América, entre o passado e o futuro (ou, vá lá, o presente).
Em conversa com Andrew Gilbert (para o Mission Local) a propósito da estreia deste projecto (ainda não declinado em edição discográfica), Ambrose justificava suceder a projectos de solo absoluto — Beauty Is Enough — e em trio (relativamente convencional) com o guitarrista Bill Frisell e o baterista Herlin Riley — Owl Song — com uma mais expansiva equipa: “Não tenho meios-termos. Vê-se isso com Owl Song, questionando realmente o papel do meio. Sou uma pessoa de extremos, tudo ou nada, e vejo a beleza de ambos”. Nós também.
Essa capacidade de ver beleza em polos opostos num espectro de referências bastante amplo manifesta-se quando aponta alguns dos seus discos favoritos e nomeia trabalhos tão distintos como Crescent de John Coltrane, Kind of Blue de Miles Davis, Concert By the Sea de Errol Garner, Vespertine de Björk ou “qualquer coisa que Glenn Gould toque”. Mais do que a técnica, vai o trompetista sublinhando, interessa-lhe o mood, o “ânimo” de cada um dos registos nomeados. Honey From a Winter’s Stone é acerca da exploração dessa ideia, acerca da emoção e do espírito, bem mais do que da técnica ou do discurso. O que não significa que a performance que assinou no Auditório do Centro Cultural Vila Flor não tenha sido fértil em momentos de arrebatamento. Porque, na realidade, foi mesmo.
O primeiro elemento do ensemble a ser alvo de efusivos aplausos foi o MC/spoken word artist Kokayi, nativo de Washington DC que escutou com plena atenção o passado dos Last Poets e Gil Scott-Heron e o presente de Kendrick Lamar, artista, aliás, com quem Akinmusire tem tangencial ligação (o seu trompete escuta-se em “Mortal Man”, tema que encerra o alinhamento do aclamado To Pimp a Butterfly). Com tonalidade levemente anasalada, Kokayi alterna — segundo o próprio Ambrose — entre peças escritas e improvisos, encaixando-se, portanto, na norma que guia este Honey From a Winter’s Stone, longa suite que se percebe ter estrutura cuidadosamente gizada, mas também momentos de ampla liberdade. A dado momento, por exemplo, o flow de Kokayi e o trompete de Ambrose Akinmusire entrelaçam-se em sinuosa dança de esplendoroso efeito. O que levou a que várias das intervenções do MC fossem aplaudidas como acontece com qualquer solo num destes contextos.
O Mivos Quartet é outra fonte de maravilhamento. Estas são as mesmas cordas que Mary Halvorson escolheu para a acompanharem no díptico Amaryllis/Belladonna de 2022, mas a que o próprio Ambrose Akinmusire já tinha recorrido para o aclamado Origami Harvest de 2018. Entre um registo mais minimal e repetitivo e outro mais lírico, romântico e até algo cinemático, o Mivos tem aqui um papel de contraponto, mas também de sublinhado, nomeadamente quando se liga às deambulações trompetísticas do líder. A seda acústica com que envolve as peças é sempre justificada e nunca acessória: o quarteto está ali nitidamente a cumprir uma visão e a acrescentar matéria e não a servir apenas de adorno.
Outro pilar deste projecto é o fantástico Justin Brown, músico de recursos tão fundos que se torna difícil classificá-lo: o solo que assinou em aceleração máxima, explorando a totalidade do seu kit não foi demonstração oca de técnica, antes manifestação do que sucede quando o tempo rítmico é processado com uma evoluída sensibilidade matemática.
Ao ensemble adicionam-se ainda os mais discretos, mas sólidos, préstimos do pianista Sam Harris e da teclista e vocalista Chiquita Magic: o primeiro é solista sério e acompanhante dotado, a segunda assegura graves na ausência de um baixo convencional com a sabedoria de quem ouviu muito o “boom” ao lado do “bap”. Curiosamente, esse lado mais hip hop deste ensemble sai também reforçado pelos momentos em que Ambrose pousa o seu trompete e se queda sobre um pequeno synth de que extrai loops com vocação rítmica, frases repetidas que acrescentam densidade textural ao todo.
Por cima de tudo isto brilhou o trompete de Akinmusire, sobretudo em modo aditivado por efeitos, com a sonoridade final a posicionar-se algures entre os universos de Jon Hassell e os do Miles Davis mais electrificado. Esse “tom” serve na perfeição as peças de duração muito dilatada e progressão lenta, outra marca da música clássica reclamada por Akinmusire. O último segmento do concerto deve ter-se aproximado bastante da meia hora de duração, o que aproximou a apresentação das duas horas de duração, tempo que se parece ter diluído como mel doce em chá quente. E a verdade é que face aos acontecimentos inesperados deste duro presente, parece ter funcionado como necessária cura.