Na génese do hip hop, está a intervenção. Os rappers são cronistas dos infortúnios de uma classe renegada e esquecida, discursam sobre as adversidades da vida, sobre os tumultos com que se deparam nas ruas e sobre duras realidades. E isso continua a ser verdade até aos dias de hoje. Mas nas últimas décadas, este género tem ganho um contorno cada vez mais honesto e introspectivo. Kendrick Lamar, um dos artistas mais aclamados e mais consensuais dos tempos modernos, tanto discursa sobre o seu papel enquanto líder da sua comunidade em To Pimp A Butterfly, como nos abre as portas à sua psique em Mr. Morale & The Big Steppers. Por terras lusas, Slow J tem mostrado que os beats são divãs para as suas confissões, terapia sonora para autor e ouvintes. Gonçalo Santos é a mais recente prova de que, para muitos dos seus intervenientes, o rap é terapia.
Apesar de actualmente assinar como Santos, Só, o artista era anteriormente conhecido só por Santos. O início do percurso artístico deste jovem de 23 anos natural de Sacavém remonta ao ano de 2020, mas a sua paixão pelo hip hop surge quase 10 anos antes, ao descobrir Eminem. Incitado por um dos grandes no que toca a cadências, rimas e flows, Santos começa também ele a dar à manivela (leia-se caneta). Além de Marshall Mathers, as suas influências do outro lado do oceano são nomes como Kendrick Lamar, J. Cole, Joyner Lucas ou Witt Lowry. Mas MCs como Valete, Sam The Kid ou X-Tense também influenciaram o seu percurso.
No seu primeiro tema “Ponto de Interrogação”, transparece a sua jovialidade através de algumas rimas atropeladas, compensadas por um ouvido para hooks. Surge com ímpeto e muita fome e posiciona-se “entre K.Dot e Antero Quental”, pronto a disparar em todas as direcções e dispersando as dúvidas em relação à sua paixão musical. Em 2021 apresenta a incansável e muscular “Não Dormi”, onde se insurge contra a opulência e a ganância que transparece cada vez mais no hip hop actual, saudando os aliados e crucificando os inimigos. Um ano depois, ouvimo-lo declamar em “Figuras” sobre a caminhada que o moldou. Sob uma batida à conquistador, celebra o percurso que o engrandeceu. Em todos os temas, é clara uma conversa de Gonçalo Santos consigo mesmo.
É também em 2022 que começa o seu processo de renascimento, potenciado por duas confissões musicais. A primeira surge das palavras com que brinda o instrumental “Mata a Saudade” do álbum Caixa De Ritmos 2 de Sam The Kid, a primeira vez em público que a sua voz ganha outros contornos e que se expande para além das barras. A segunda aparece já em 2023, com barras aguçadas e auto-conscientes num instrumental com cortesia de Slow J — o tema “AGoodLife” do álbum sLo-Fi. São dois pequenos desabafos no ombro de gigantes, mas Santos não acusa a pressão e dá-lhe gás, mostra-se à altura de dois dos seus professores, provando que este aluno não esquece as lições daqueles que o antecederam.
Em 2024, já a assinar como Santos, Só, lança o seu primeiro single desde a metamorfose nominal, e fá-lo com um estrondo ao alcance de poucos. “osciLAR” é um tema muito mais maduro do que o que veio antes, desde o flow relaxado, como se fosse um veterano da arte das rimas, à complexidade do instrumental, com direito a uma mudança de beat que enaltece uma terceira estrofe com muita potência. A corda bamba é o seu lar e luta para fazer melhor que o seu maior adversário — ele mesmo. Em “Comida“, Slow J diz-nos “Eu sou o meu pior inimigo”. Em “osciLAR”, essas seis palavras são transfiguradas ao longo de quatro minutos e aplicadas à vivência de Santos, auxiliadas por um hook tranquilamente profundo.
O tema gerou um justo burburinho e colocou-o no sonar de muitos mais ouvintes. É fácil perceber porquê: a batida é suave, calorosa e discreta, dá espaço para as rimas do escriba ecoarem, aliando mass appeal a uma voz singular que insiste calmamente em fazer-se ouvir. Poucos meses depois, “Árvore Pt.1” aposta numa fórmula parecida, mas a instabilidade de outrora dá lugar ao crescimento pessoal. É um tema francamente mais esperançoso, com um beat aquoso como um glorioso mergulho em água cristalina no mais quente dia do Verão. O hook é auspicioso, Santos, Só abraça definitivamente a sua alma de cantor, intrincando a sua cadência e diversificando o seu arsenal vocal.
“Nada a Apontar” é o seu mais recente single e embora não tenha o mesmo brilho dos seus temas anteriores — muito por culpa da sua curta duração e dos seus tópicos de coração sofredor —, não deixa de ser uma digna adição à discografia deste jovem rapper lisboeta. O instrumental de percussão sincopada com criteriosos e delicados pormenores melódicos é cortesia de L-ALI e molda-se à voz do artista, de timbre choroso e mais recatado, com uivos vocais de alguém magoado por um amor não correspondido. Em pouco mais de um ano, Santos, Só mostrou que consegue transformar eficazmente as suas batalhas mentais em palavras especiais. Nesta competição contra si próprio, o limite da sua subida é tão grande quanto ele quiser. Alter-ego e criador trocam palavras e desconstroem a sua mente em comum, e seja qual for o nome que escolha para se apresentar ao mundo, Santos, Só apresenta-se sempre a si mesmo.