Será possível escapar ao destino? Se formos pela mitologia grega, não. Segundo lendas da Grécia Antiga, o nosso fado é controlado pelas Moiras, três irmãs que tecem e controlam o destino. Cloto tece o fio da vida, Láquesis determina o seu comprimento e a implacável Átropos corta o pio cortando o fio. O seu papel era garantir que todos os seres — mortais ou divinos — cumpriam o destino que lhes tinha sido atribuído pelas leis do Universo. Para Samuel Bashir Virji, o seu destino parece ter sido decidido à nascença. Filho de Fayyaz Virji — cujo trombone ouvimos em alguns temas do seminal The Miseducation of Lauryn Hill — o DJ e produtor britânico tinha tudo alinhado para que o seu fio cósmico se desenrolasse da mesma forma. Mas ainda que o engenho musical do pai tenha sido passado ao filho, o artista mais conhecido como Sammy Virji trilhou um caminho só seu.
Virji trocou os sopros do seu antecessor pela música electrónica, mas não sem antes passar pela guitarra e pelo piano. Depois de dar os primeiros passos no GarageBand, foi no Logic Pro que a sua viagem musical realmente começou. Ainda passou pela Universidade de Newcastle para estudar Biologia, mas durante o terceiro ano do curso percebeu que o queria mesmo da vida era fazer música, e trocou os manuais pelos pratos, para bem de milhares de ouvintes pelo mundo fora. O seu primeiro estrondo surgiu em 2017 com “Never Let You Go”. Construído à volta de um sample de “Never Gonna Let You Go (Kelly G Bump-N-Go Vocal Mix)” de Tina Moore — que podemos também ouvir em “Wanna” do recente e fenomenal In Waves de Jamie xx — o tema é cortado por um baixo tremeluzente e uma batida fugaz, honrando o género musical bassline que serve de inspiração a muitas das suas músicas. Apesar de construir por cima daquilo que o antecedeu, nota-se a atenção de Virji em criar algo seu. Os seus instrumentais são melódicos, auxiliados por samples vocais caleidoscópicos e erguidos sob percussões atarefadas, criando músicas pesadas mas acessíveis, que agradam a gregos e troianos fãs de música electrónica.
Um ano depois, explode com “Find My Way Home”, provando que a sua versão de UK garage e bassline tem muito que se lhe diga. Em 2020 surge o seu primeiro álbum, Spice Up My Life. Ouvimo-lo a experimentar com outras sonoridades como na tropical “Elephant” ou através dos sopros sedutores de “Somebody Else”, e até há espaço para um sample de “My Name Is” de Eminem em “Basic”, tema que faz jus ao nome entretendo de forma singela. O projecto é composto por músicas longas, experimentação de alguém que se está a descobrir no meio de loops como “Time Travel” demonstra com as suas teclas intermitentes que formam a base de uma exploração no espaço e no tempo. É um álbum de alta intensidade que demonstra a jovialidade do seu autor, um produtor a dar os seus primeiros passos oficiais.
Seguiram-se dois EPs e colaborações com uma multitude de artistas — incluindo Flava D, um dos ídolos de Virji e uma das vozes mais activas na música electrónica inglesa — com tema atrás de tema que arrancam as mais sinceras bassfaces aos seus ouvintes. Em 2023, o seu set nos escritórios da revista DJ Mag tornou-se viral nas redes sociais e foi tão ardente que os alarmes de incêndio dispararam. Não é por acaso que nomes incontornáveis da música electrónica como Caribou ou Four Tet utilizam as músicas de Virji nos seus sets. As suas canções coloridas são uma metáfora para o sorriso com que actua ao vivo, o de alguém genuinamente agradecido por poder entreter públicos dançantes com a sua música espevitada.
No presente ano e já nas bocas do mundo, Sammy Virji lançou o seu segundo álbum, Same Day Cleaning. É um trabalho em constante movimento, com músicas que podem ser cirurgicamente acrescentadas a sets pelo mundo fora. Vemos alguns convidados de peso no meio da lista de músicas: “One for the Books” tem um instrumental que espelha a glória do nome da música e conta com um calmo e sóbrio Giggs que contrasta com o ritmo acelerado do beat, e “Cops & Robbers” parece uma estilosa perseguição a alta velocidade, auxiliada por versos de Skepta em grande forma. Em “Burn The River” nota-se o carinho de Virji por clássicos de eras passadas, aqui misturados com a electrónica moderna e dançável. Mas apesar de esse tema abrandar o ritmo, o frenesim que caracteriza a discografia do produtor continua bem vivo através de músicas como “Doctor”, em que samples são atirados uns contra os outros de forma linearmente caótica, ou “925,” que alia pratos suados a sintetizadores quentes. Na recta final, “Leroy St” — uma das músicas mais longas do álbum — aponta para uma nova direcção na sonoridade do seu autor. É discreta mas com várias camadas para desvendar, munida de um piano que lhe dá um toque mais introspectivo e recatado. Ainda assim, a dança nunca está longe das músicas de Virji. Só que neste caso, pés e cérebro estão unidos num baile sincronizado.
Same Day Cleaning é um nome para um projecto que não tem tempo a perder. É um álbum extenuante, mas pelos melhores motivos. O optimismo das músicas é palpável, um projecto para escutar ao sol mas que definitivamente traz o astro quando está escondido em dias cinzentos. Sammy Virji nunca teve hipótese perante a inevitabilidade das Moiras. Mas há males que vêm por bem, e estamos definitivamente perante um desses casos. Dos sopros de um trombone surgiu um DJ que não se cansa de fazer abanar o capacete. Resta-nos rezar a Átropos para que não corte o fio deste engenhoso DJ antes de ele fechar a pista de dança.