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Fotografia: Nuno Batista
Publicado a: 26/07/2023

Relatos da traineira do Sado, que prossegue viagem.

A garota não: “Num concerto percebemos que somos muitos a cantar, a querer um país diferente”

Fotografia: Nuno Batista
Publicado a: 26/07/2023

Tem sido um dos grandes acontecimentos da música portuguesa nos últimos anos. Concretizou-se sobretudo com o seu segundo disco, 2 de abril, editado no ano passado. A garota não, que é como quem diz Cátia Oliveira, afirmou-se como uma cantautora da maior importância na música nacional, usando a sua arte para, como tão bem explica, a usar como ferramenta de transformação social e objecto político.

Setubalense de gema, herdeira da canção de protesto portuguesa, A garota não tem estado em tour de norte a sul, atracando a sua traineira do Sado um pouco por todo o lado. Esta quarta-feira, 26 de Julho, actua no Festival Músicas do Mundo de Sines, pelas 18 horas, no castelo, com entrada livre. Foi o pretexto para o Rimas e Batidas colocar, por escrito, algumas questões sobre esta vida de estrada e jornada entusiasmante.



A traineira do Sado tem estado a viajar pelo país. Como tem sido encontrar as suas gentes, certamente diferentes umas das outras, um pouco por todo o lado? Esperavas que o 2 de abril tivesse uma ressonância tão nacional?

Esperava sobretudo sentir-me bem, sentir-me útil neste caminho, trazer à fala assuntos que me interessam e que acredito que devem ser trabalhados na multiplicidade de espaços em que nos movemos: quer seja no espaço mais privado, como a nossa casa, quer seja no nosso bairro ou na nossa cidade. Interessa-me que a música seja mais do que um elemento leve de esplanada. Que seja uma caixa de ferramentas através das quais nos desafiamos uns aos outros no nosso potencial artístico, transformador, político. Político no sentido de uma viagem colectiva onde cada um de nós tenha oportunidades verdadeiras para levar uma vida digna.

Não querendo rotular a música desta forma simplista, tens sentido, por parte do público, uma ânsia por canções de protesto? 

Estamos a atravessar um período de profundo descontentamento… a nossa democracia é jovem mas eu acho que se tivéssemos tido governos mais envolvidos com o genuíno bem estar do país, sérios, consequentes, afoitos e mais descolados de jugos europeus, poderíamos estar a viver uma realidade mais satisfatória. Mas temos um sistema de justiça manco, um quadro na educação e na saúde em profunda convulsão, episódios repetidos de representantes políticos envolvidos em esquemas de benefícios próprios ou próximos, uma crise violentíssima na habitação… problemas que resultam de fragilidades sistémicas e que as acentuam, num ciclo vicioso que não estamos a saber quebrar. E vai daí cantar sobre o que nos desconcerta, entristece e sobre o que nos dá raiva talvez torne os dias mais claros, talvez traga uma certa dose de esperança. Porque, de repente, num concerto percebemos que somos muitos a cantar, que somos muitos a querer um país diferente.

A vida de estrada inspira-te a criar canções novas, tem-te dado novas perspectivas que faz sentido explorar na música? Ou a agitação dos espetáculos e viagens não contribui necessariamente para a criatividade?

Mais do que a vida na estrada é a vida em si mesma que me inspira. É conhecer pessoas por quem o peito acelera a marcha, lugares onde o tempo é mais lento, ou o céu é mais fechado, ou os muros são mais altos. O que me inspira é a observação do mundo e dos comportamentos. Os nossos e o dos animais. Gosto muito de estar sozinha a sentir a vida. Um livro inspira-me, uma entrevista inspira-me, um concerto diferente inspira-me muitíssimo. Gosto da vida, mesmo quando os dias são mais amargos.

Qual é a terra onde ainda não tocaste, mas desejas muito ir? E porquê?

Nunca pensei nisto, por isso não deve ser propriamente um desejo. O Saramago dizia na Viagem do Elefante que “sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”. E acho que gosto mais dessa ideia: de ir levando a traineira aos sítios aonde haja alguém que nos queira receber.

Tocar no FMM de Sines, tendo em conta a natureza do festival, é particularmente entusiasmante?

Tem acontecido isto: voltar a lugares onde estive como espectadora, a receber na plateia tudo o que quem estava em palco tinha para me entregar. Já vi concertos lindos no FMM de Sines, que me tocaram e enriqueceram pelo mundo que tinham dentro. Por isso, sim, fazer este ano parte do cartaz é um momento feliz, em que espero poder dar um bocadinho do tanto que já lá recebi.

“Obrigada vida, que me tens dado tanto”, escreveste a 8 de Março. O que sentes que te falta, no plano artístico/profissional? Quais são as maiores ambições que tens para a tua vida de música?

Essa frase é uma tradução simples de um verso da Violeta Parra, da sua canção “Gracias a la Vida”, em que ela agradece tudo o que a vida lhe tinha dado: olhos para distinguir o preto do branco e as estrelas no céu da noite, ouvidos para “gravar” todos os sons dos pássaros, martelos, aguaceiros, turbinas e vozes das suas pessoas queridas, o abecedário com que pensava sons e palavras e ideias e nisso desenvolvia o seu pensamento… é um poema tão belo quanto inspirador e quando fiz essa publicação estava no rescaldo de um mês muito denso e inesperado em que conheci e partilhei palco com o Sérgio Godinho no projecto Conta-me uma Canção, cantei com o Jorge Palma em LIsboa e no Porto e participei num concerto colectivo de mulheres cantautoras que, pela mão da Marta Hugon, se juntaram em torno do mito de Calíope. Além disso, tinha estado muito envolvida na criação de um manifesto que fiz de propósito para o Festival Política, onde abordo temas sociais que me são caros, e que vou apresentando através de uma narração muito íntima, e portanto foi um mês em que estive sempre muito fora de pé. Isso é violento por um lado, mas profundamente fortalecedor e gratificante por outro. E é isso que quero continuar a fazer. Não tenho a ambição e o sonho de tocar na sala X ou Y só porque isso é sinónimo de prestígio. Ou de ir a galas e ganhar prémios. Quero é continuar a sentir a angústia e o amor que paradoxalmente sinto quando escrevo uma canção. Não é um exercício sereno, é um testemunho das entranhas.


13 espectáculos em destaque na edição deste ano do FMM Sines

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