[Uma introdução com cheiro a rua e a cerveja]
Em Setúbal, 29 de Outubro de 1983, o Tejo sussurrou segredos à lua. Dizia-lhe que, naquela noite, o sal das marés moldava mais do que apenas areia; moldava um espírito inquieto, uma voz que não se calaria. A garota não, nome de guerra de Cátia Mazari Oliveira, nasceu com a brisa do Atlântico a embalar-lhe o choro, e talvez ali, nas primeiras notas do seu respirar, já se ouvisse um eco de fado, mas não um fado qualquer — um fado contestatário, com cheiro a rua e a cerveja.
Cátia não foi apenas uma filha da sua cidade; foi o reflexo do bairro que a viu crescer, um lugar onde a música invadia as paredes, subia as escadas e se enredava nas histórias de quem viera de longe. De Gipsy Kings a batidas electrónicas, do rés-do-chão ao último andar, cada janela aberta era uma canção em potência, uma melodia que cruzava fronteiras, fundindo culturas num bailado de sons e de vidas.
No seu prédio, as paredes não abafavam o som; amplificavam-no, como se os ritmos africanos, as vozes femininas a entoar melodias enquanto lavavam roupa, e as canções de liberdade do seu pai fossem a alma viva daquela arquitectura de cimento e sonhos. Ali, a música era mais do que arte — era resistência, era identidade.
No bairro 2 de Abril, onde o tempo se mede em compassos e cada andar é uma nota numa sinfonia, viveu Cátia. Uma menina com ouvidos abertos ao mundo, com pés descalços no chão, e olhos que viam para além das janelas. A música sempre esteve lá, como o ar, como o respirar, nas paredes, nos patamares, no tic-tac dos dias que se repetem, mas que nunca são os mesmos. Cátia absorvia, absorvia e transformava. A menina tornou-se mulher, e a música sua confidente. Tão próxima como a voz da mãe cantando para o forno ou o pai ressoando com Zeca, com a luta, com a liberdade. Era um crescendo de notas e de vida, uma melodia que se formava nos passos do quotidiano, nos ecos de uma infância vivida entre o riso e o silêncio.
A guitarra veio depois do piano, como uma amiga que chega na hora certa, quando as palavras já não querem apenas dançar no papel, mas querem também ecoar, ressoar. Cada acorde era um passo em direção a um destino ainda não traçado, mas desejado. Cátia, que sempre ouvira os outros cantarem, encontrou na guitarra a sua própria voz, uma voz que se fazia ouvir por entre o silêncio imposto e as regras não ditas. Com a guitarra nas mãos, as palavras, que antes eram apenas ideias soltas, tornaram-se histórias, tornaram-se canções. Canções que falavam de um mundo maior, de um mundo por descobrir, de um mundo por mudar.
E foi assim, de pés descalços e vontade firme, que Cátia fez do mundo o seu palco. Cada nota que tocava, cada palavra que cantava, era um passo mais próximo da liberdade. Liberdade essa que não era apenas para si, mas para todos os que a ouvissem. Porque a música dela não era apenas para entreter, mas para fazer pensar, para fazer agir.
Em 2019, com Rua das marimbas, nº7, Cátia lançou-se ao mundo, e o mundo ouviu. Ouviu a voz de uma mulher que se recusa a ser silenciada, que se recusa a aceitar o que lhe é imposto. Uma mulher que, com a guitarra em mãos, transforma as suas fragilidades em força e as suas dúvidas em certezas.
Em 2023, o Globo de Ouro de Melhor Intérprete foi-lhe entregue. Já este ano, recebeu da Sociedade Portuguesa de Autores um outro importante galardão. Não foi um prémio qualquer; foi um reconhecimento da sua luta, da sua voz. A voz que se ergue em protesto, que se ergue em nome de todas as mulheres que vieram antes dela e de todas as que virão depois. O prémio José da Ponte, um selo de autenticidade, uma afirmação de que o que Cátia faz não é apenas música — é intervenção, é resistência, é o grito de quem não aceita calar-se. De quem, como Cátia, sabe que a música tem o poder de mudar o mundo, de virar a maré.
Cátia não é apenas uma cantora; é uma contadora de histórias, uma criadora de mundos. E o seu mundo começa nas ruas de Setúbal, mas não termina aí. Começa nos becos onde brincava em criança, mas estende-se pelos caminhos da vida que percorreu, pelos palcos onde cantou, pelos ouvidos que a escutaram. As suas canções são raízes que se espalham, que se entranham no chão, mas que também se elevam, que alcançam os céus. São histórias de resistência, de luta, de amor e de dor, mas acima de tudo, de esperança. Porque Cátia sabe, como todos os grandes artistas sabem, que a música pode não mudar o mundo num instante, mas pode, aos poucos, plantar as sementes da mudança.
E agora, com os pés firmes na terra e os olhos no futuro, A garota não continua a cantar. Canta para os que ainda não encontraram a sua voz, canta para os que já a perderam, canta para todos os que precisam de ouvir. Canta com a certeza de que, por mais que o tempo passe, por mais que as modas mudem, a sua música permanecerá. Porque a sua música não é apenas som; é vida, é sangue, é luta. É o eco do Tejo, é a brisa do Atlântico, é o grito de todas as mulheres que, como ela, se recusam a ser caladas. E assim, A garota não continuará a fazer-se ouvir, porque a sua voz é necessária, a sua voz é vital, a sua voz é a voz de uma nova geração que não aceita o silêncio como resposta.
[Página #01: “422” — O Sonho da Distância]
“Quatrocentos e vinte e dois, a conta certa para o futuro.”
A garota não começa com um número, um cálculo de esperança e desespero, quatrocentos e vinte e dois passos em direção ao que pode ser ou não ser. A letra, como um mantra urbano, caminha entre a matemática do quotidiano e a poesia da resistência: “422 milhões, do planeta fome eu sou / Que país tão bom p’ra tubarões”. Cada palavra é uma contagem regressiva para um lugar que talvez não exista, ou que exista apenas na utopia de um sonho coletivo. A guitarra, de acordes minimalistas e repetitivos, evocam a monotonia das esperas longas, das viagens sem fim. A capa do single, um still a preto-e-branco com o número “422”, representa a estrada que nunca termina, porque o destino está sempre além do horizonte.
[Página #02: “Dilúvio” — Afogamento e Renascimento]
“Ninguém te avisa do dilúvio que não se vê, quando os teus olhos se enchem do mar que tu és.”
Nesta canção, a água é o elemento primordial. A garota não canta sobre o afogamento, não no sentido físico, mas emocional, onde cada gota é uma lágrima retida, uma dor não expressa. O dilúvio é o caos interno, o transbordar de sentimentos que se acumulam até que a única solução é a destruição para a renovação. A poesia faz uma genuflexão social: “Já nascemos de joelhos / Já dobrados pelo meio / Ensinados a querer”. A instrumentação é orquestral, como ondas que batem furiosamente contra as rochas, numa colisão de ritmos, suspiros vocais e melodias. O videoclipe, com suas imagens submersas e sobreposições surreais, traduz visualmente essa inundação de emoções, um mar de pensamentos que devora a mente e o corpo.
[Página #03: “Prédio mais alto” — A Vertigem da Modernidade]
“No prédio mais alto, lá onde o ar rareia, os sonhos crescem como raízes no betão.”
A garota não ergue-se, desta vez, sobre os alicerces da cidade, cantando das alturas de um edifício que toca o céu, mas cujas fundações estão no submundo. Esta canção é um hino à modernidade que desafia a gravidade, mas que se esquece do chão que a sustenta. As suas palavras dançam numa corda bamba entre a ascensão e a queda, entre a ambição e a alienação: “Já caminho descalço para ninguém me ouvir / Para ninguém me sentir lá no rés-do-chão / Moro no último andar do prédio mais alto / Da nossa rua”. A música acompanha este equilíbrio precário, com uma linha de guitarra pulsante cósmica, em que um bater de palmas é como que o batimento cardíaco de uma cidade sempre em movimento. E no vídeo, a canção torna-se uma piscina numa selva de vidro e aço, onde a humanidade é uma pequena figura a tentar não cair.
[Página #04: “No dia do teu casamento” — A Ironia do Amor]
“No dia do teu casamento, eu brindei com veneno, o amor morreu na festa.”
Aqui, A garota não desfia uma ironia cruel, um sarcasmo que corta como uma lâmina afiada: “Dilacerou-me dentro o peito / Só não morri por não ter jeito”. A celebração do amor, o casamento, torna-se um funeral velado para sentimentos genuínos, enquanto a sociedade continua a brindar à fachada da felicidade. A melodia é melancólica, quase a parodiar a bossa nova, mas com consonâncias que fazem lamber o ouvido, como quem desconfia da sinceridade do sorriso que vê. Belo e teatral, o videoclipe joga com sombras e luzes de variegadas mulheres, num contraste que realça a feminidade no que deveria ser o dia mais feliz.
[Página #05: “Diga 33” — O Sufoco de Viver]
“Diga 33, e sente o ar a escapar.”
Nesta faixa, a saúde, ou a falta dela, é a metáfora para uma sociedade doente. O “33” é a medida da respiração, a prova de vida num mundo que sufoca. A garota não transforma um exame médico em um grito de socorro, uma medida de sobrevivência. A instrumentação minimalista da guitarra eléctrica com efeitos subtilmente processados acompanha a angústia, com sons que lembram certa etnografia exótica, batimentos irregulares que oscilam entre a calma, um acelerando que caminha até a um clímax, e o respirar entrecortado. A imagem da capa do single mostra A garota não tocando guitarra num barco flutuando sobre a poesia da Liberdade.
[Página #06: “Que mulher é essa?” — Identidade e Resistência]
“Que mulher é essa, que não se dobra nem parte, mas que se esconde na sombra do seu próprio medo?”
Esta é uma canção de resistência, uma afirmação da identidade feminina em um mundo que constantemente tenta moldá-la e reprimi-la: “Que mulher é essa / Que eu vejo na telenovela / As mulheres à minha volta / Não se parecem nada com ela”. A garota não questiona, desafiando a noção tradicional de feminilidade, recusando a fragilidade imposta. A música é sincopada, com ritmos que evocam um casamento minimalista entre uma guitarra e a percussão, enquanto a sua voz mantém-se suave, quase em contraste, como a calma antes da tempestade. O vídeo que acompanha a música no YouTube — que é um registo de uma interpretação ao vivo desta canção — reforça esta dualidade, mostra A garota não que é tanto guerreira quanto sombra, uma figura que se recusa a ser definida por uma única imagem.
[Página #07: “Magnetização” — Atração e Repulsa]
“Somos polos opostos que se atraem e repelem, dançamos no fio de um campo magnético.”
A física das emoções é o tema desta canção, onde A garota não explora a tensão entre atração e repulsa, entre o desejo e a distância. A letra é uma dança de forças invisíveis: “Amor maluco que habita / Esta magnetização / E é uma estereofonia / Dentro da minha cabeça”. A música acompanha com uma eletricidade ambiental, guitarras que zumbem como correntes de alta tensão. O videoclipe visualiza essa magnetização com imagens do quotidiano, corpos que se aproximam e afastam, como se fossem partículas subatómicas presas numa dança inevitável neo-realista, mas nunca estática.
[Página #08: “Mediterrâneo” — O Azul da Morte]
“Mediterrâneo, berço de vida, cova de sonhos, as águas que te cantam também te sepultam.”
Esta é uma elegia ao mar que tanto dá quanto tira. O Mediterrâneo, que outrora foi símbolo de cultura e conexão, é agora visto como um cemitério de esperanças, onde vidas se perdem na busca de um refúgio: “Rebentam-me as águas / Mas posso esperar / Rebentam-me as balas / Nem pude chorar”. A garota não canta com uma dor que se espalha como o sal na água, uma tristeza profunda que ecoa nos acordes lentos e nas notas tristes da guitarra. A peça visual que acompanha a música é uma obra-prima visual de surrealismo e realidade, onde o preto e branco se mistura com imagens de corpos rastejantes e rumorejantes, num ballet infinito de vida e morte.
[Página #09: “Monstro” — O Reflexo do Eu]
“Monstro, és tu ou sou eu, que me espreitas no espelho e ris de volta?”
O encerramento é com uma reflexão profunda sobre a dualidade do ser, o monstro interno que todos tentamos esconder. A garota não enfrenta esse lado escuro, com uma honestidade brutal que é rara na música contemporânea: “Dói a solidão mais do que o dente que ferra / Que ferra grosso e imundo”. A melodia é lírica, quase folclórica, refletindo o peso dessa introspecção. O videoclipe, com colagens da natureza e corpos femininos, confronta o espectador com a própria imagem, obrigando-o a encarar as sombras que muitas vezes preferimos ignorar.
[Últimos Acordes: Um Legado de Voz e Silêncio]
A garota não ergue-se como um farol no nevoeiro denso da canção de protesto em Portugal, uma voz singular que ressoa nas esquinas da alma e nos becos sem saída do pensamento conformista. Ela é mais do que uma cantora; é uma tecedora de versos que navegam entre o antigo e o novo, uma artesã de sons que molda o passado e o presente num fio contínuo de resistência. As suas letras são gritos calados, escritos com a tinta da inquietação e da angústia, uma poesia que brota das fissuras de uma juventude que se recusa a aceitar as migalhas do status quo.
As suas canções, como lâminas delicadas, cortam o tecido da indiferença com uma precisão quase cirúrgica. Em cada verso, a sua voz, suave como o murmúrio do vento entre as folhas, é ao mesmo tempo uma carícia e um golpe, criando um contraste entre a serenidade do som e a dureza da mensagem. Há um propósito em cada nota, uma intenção em cada pausa, como se o silêncio entre as palavras fosse tão eloquente quanto as próprias palavras, e talvez mais perigoso.
A sua música é um ponto de encontro entre a tradição e a modernidade, onde o fado se cruza com o folk, e onde o som da guitarra ecoa com a força de uma voz ancestral que se recusa a desaparecer. Cada arranjo é uma tapeçaria meticulosa, tecida com a paciência de quem sabe que a arte é uma forma de resistência. Cada timbre é escolhido como uma arma num arsenal de emoções, pronto a ferir as consciências adormecidas e a despertar os corações adormecidos.
O legado de A garota não não se limita ao som; estende-se para além da melodia, para as profundezas da reflexão, onde cada canção é uma interrogação, um desafio lançado à face de uma sociedade que insiste em tapar os ouvidos às vozes dissonantes. A experiência de ouvir A garota não é um mergulho no abismo das contradições humanas, uma viagem por entre as ruínas das promessas não cumpridas e os sonhos que se recusam a morrer. Ela canta para os que não têm voz, e o seu silêncio, entre as notas, é um grito de liberdade.
Assim, A garota não transforma o palco num campo de batalha, onde cada canção é uma trincheira e cada palavra uma bala de revolução. Ela é a guardiã de uma tradição que se renova a cada acorde, uma voz que ecoa nas ruas e nas mentes, desafiando o ouvinte a não apenas escutar, mas a sentir, a pensar, a agir. O seu legado é feito de voz e silêncio, de som e fúria, de poesia e intervenção — um legado que continuará a ressoar muito depois de o último acorde ter sido tocado.
A garota não: “Num concerto percebemos que somos muitos a cantar, a querer um país diferente”