pub

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 26/11/2024

A certidão de nascimento de L-ALI e VULTO..

10 anos de SURREALISMO XPTO: impossível de ignorar

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 26/11/2024

Para o rap tuga, 2014 foi um ano em cheio. Ainda nos tempos áureos da Liga Knockout, dois dos nomes mais familiares que graduaram das famosas batalhas lançaram projetos que lhes abriram as portas, uns anos mais tarde, para o estrelato: Profjam, com a mixtape The Big Banger Theory, e Papillon, inserido nos GROGNation, com o EP Sem Censura. Dois discos que ainda guardo no meu coração, mas aos quais junto um outro desse ano que passou um pouco mais despercebido, de dois novatos que demonstravam muito potencial. Falo de SURREALISMP XPTO, com rimas de L-ALI e produção de VULTO., um EP tão inortodoxo como as carreiras dos dois artistas. 

O público atual de L-ALI, na sua generalidade, nunca conheceu a versão do artista que vimos no início da sua carreira, e por óbvia razão: passar de “Solo” para “JEDI VU (não sei se viste)”, ou até para o cult classic “Banghello! (O Gesto)” é uma experiência estonteante. Antes de Raramente Satisfeito, L-ALI tinha a mesma característica de uma boa peça dadaísta: shock value. Mas seria injusto defini-lo apenas por esses moldes, e não notar a alta capacidade lírica e adaptativa do artista. Basta olhar para “UAIA”, o seu primeiro de apenas dois singles com o carimbo Think Music, onde compete com mestria, bar for bar, contra um Profjam que já se afirmava como um dos rappers mais talentosos do nosso país em 2017, ou ainda a sua estreia na Superbad, “SIRI”, onde surpreendeu ao rimar em cima de produção que nunca tinha sido tão próxima do trap, em colaboração com o magnânimo Here’s Johnny, encaixando como uma luva no beat, como se já o fizesse há anos. Ainda assim, o único sinal nas plataformas de streaming de um L-ALI diferente do atual (exceto colaborações pontuais) é, precisamente, SURREALISMO XPTO. O caso de VULTO., que não mudou tão drasticamente as bases da sua música, já é diferente.

Isto não significa que o produtor não tenha tido uma década cheia de trabalhos notórios a lembrar — ou a descobrir, para os mais distraídos. Seja através de colaborações com alguns dos rappers mais interessantes do país ou nos seus projetos em nome próprio, os quais também com convidados de luxo, VULTO. merece reclamar o título de melhor produtor do rap underground português. Na primeira categoria cabem parcerias com o incontornável NERVE, nomeadamente “’98” e “Subtítulo” em ‘Trabalho e Conhaque’ ou ‘A Vida Não Presta & Ninguém Merece a Tua Confiança’ (através do seu alter-ego Pedro, O Mau, na segunda faixa), ou no coletivo COLÓNIA CALÚNIA, com faixas como “AMOR ROMANO” com a participação de Tilt, ou “MOSA ROTA”, também com a presença de L-ALI. Na segunda categoria, podemos falar da série AS IRMÃS REÚNEM, com dois volumes, dos quais destaco “TODO PODEROSO”, com Revo-T, e “LIMAS”, com Raul Muta, do primeiro e do segundo, respetivamente. O flair industrial tem sido a imagem de marca do produtor, que serve especialmente bem liristas que desafiam as normas restritas do rap convencional, e que estão especialmente confortáveis a entregar barras impressionantes a nível técnico, com temáticas mais ou menos perturbadoras. Porém, e da mesma forma que L-ALI, não se pode dizer que VULTO. nunca demonstrou versatilidade, e na lista que reunimos há exemplos disso, em especial “Limas”, onde vemos elementos de percussão que se podem colocar algures entre o jazz, o breakbeat e o trap. Mas o caso fica ainda mais notório quando escutamos a sua musicalidade a borbulhar em pleno no trabalho que mais recentemente desempenhou em ALMA ATA, levando a sua revolução sonora até aos campos da cena indie nacional.

Em 2014 não se sabia nada disso: eram poucos os que já tinham familiaridade com qualquer um dos nomes, mas em retrospetiva é possível ver quão perfeita esta simbiose é — e não foi por acaso que esta foi uma parceria que ainda perdurou no tempo. Um L-ALI a cimentar os primeiros passos no rap após experiências enquanto HRA, mas já com a qualidade lírica que seria descoberta pela comunidade do hip hop tuga nos anos que se seguiriam, e uma vontade de envergar por caminhos mais sombrios do que os que vemos atualmente, a rimar por cima de beats sem qualquer vergonha de se afirmarem irreverentes, com um design sonoro que não pode ser caracterizado por outra palavra que não “único”. Curiosamente, um trabalho tão “distorcido” como este é igualmente orquestral, com instrumentos clássicos a abrir algumas músicas, como “BOOM BAP ROYALE”, “PINTOPALAVRA” ou “JEDI VU (não sei se viste)”. Essa ideia existe, de qualquer forma, como todas as outras no disco: viradas de cabeça para baixo. O resultado é um EP que soa a futuro, roubando filosofias a géneros como o noise ou o IDM, mas não perdendo o fio do boom bap no meio de tantas influências. 

Use-se, a título de exemplo, “INTRO VERTE”, a terceira faixa do curta-duração. A música começa com um break extremamente abrasivo, num BPM relativamente lento, não nos dando tempo sequer para o digerir, ao ser substituído poucos segundos depois por uma melodia MIDI inofensiva, mas crua, esta também rapidamente intersetada pela voz harmonizada de L-ALI, que rima sobre contradições, começando por comparar a sua ambição com a sua “outra personalidade” preguiçosa. Na terceira barra do único verso da faixa, volta a substituição, desta vez em sentido contrário, mas com o break em reverse, criando este efeito quase alienígena, mas não tão irreconhecível que não se perca a dimensão rítmica do elemento. Quando voltamos ao break inicial, ele é agora enfeitado por uma sirene inortodoxa, seguido por nova mudança, desta vez um novo break que contém um crash que desperta a curiosidade, do qual só resta a reverberação, e onde mais um elemento sintético ecoa e nos rodeia, através de novo uso do reverse. É aqui que entra o 808, a rebentar o subwoofer. A partir daqui o beat torna-se num puzzle: sai elemento, entra elemento, jogando com as nossas expetativas e deixando-nos a pedir mais. Estes primeiros 45 segundos de apenas uma faixa são reflexo de uma lógica de produção que não se vê regularmente no rap, que pede regularidade, que pede loop, mas que aqui vive sem ele. Só um rapper exímio como L-ALI é capaz de fluir perfeitamente por instrumentais em que qualquer outro teria dificuldade de o fazer. Não só consegue domá-los, como faz um dueto com eles, percebendo quando deve dar destaque à produção e quando é a vez de tomar as rédeas da coisa.

Esta característica da performance de L-ALI é também uma das que o artista foi melhorando ao longo da sua carreira, e o seu trabalho com Lunn, que é agora o produtor com quem mais frequentemente o vemos a colaborar, é prova disso. O próprio louva essa capacidade de L-ALI, como pudemos ler numa entrevista ao Rimas e Batidas em 2023: “Eu acho que o Hélder [L-ALI] sempre foi muito de deixar o beat falar e de comunicar diretamente com ele”. Ouça-se o EP Balanço, resultado desta colaboração, e, por exemplo, uma música como “Brio”, onde a delivery de L-ALI mostra o que separa o rapper de muitos outros. Ver essa sensibilidade no seu trabalho desde tão cedo é extremamente interessante, da mesma forma que na produção de VULTO. já se notavam sinais da sua versatilidade, apesar de se manter a linha sempre sombria nos seus beats. “PINTOPALAVRA”, por exemplo, quase pertence mais a um disco de boom bap onde ouviríamos rappers como Mura a rimar. No entanto, está aqui, e são também essas lufadas de ar fresco que vamos recebendo ao longo do projeto que fazem com que valha tanto a pena ouvi-lo ainda hoje.

Porém, ainda falta mencionar a magnum opus deste trabalho. “(MIRADOUROS)” tem, sem dúvida, um dos melhores instrumentais que já ouvi no rap tuga, no geral. A percussão metálica que saltita de ouvido a ouvido, em conjugação com uma bassline hipnotizante e a rima sem misericórdia de L-ALI, com momentos de alta sincopação como “Muita pica nas trações, multa o pica nas estações / Múltipla a dica a prestações, sem distrações” nos primeiros 40 segundos da curta faixa, com apenas 1 minuto e 23 segundos. Mas como se isto não bastasse, ainda temos direito a um beat switch, os vocais distorcidos ao ponto da quase irreconhecibilidade e elementos percussivos agora mais reminiscentes de música tribal africana, que fazem lembrar, por exemplo, o produtor experimental Afrorack. Pode não ser a primeira música em que se pensa ao falar deste EP para muitos, mas foi aquela que me fez apaixonar pela produção de VULTO., e apesar de também não ser aquela que mais serve de alicerce para o trabalho seguinte de cada um dos artistas, demonstra a tal versatilidade de que temos vindo a falar e que consideramos ser a principal valência do disco e da carreira de L-ALI e VULTO..

Se há uma característica que liga maior parte dos álbuns que mais me fascinam, seja de que género forem, é a sua qualidade apesar do pouco reconhecimento que têm. Com cada vez mais música a ser lançada todos os dias, é apenas natural que a quantidade de álbuns excelentes que escapam por entre as mãos até dos mais ávidos ouvintes seja também maior. Acredito que este seja um deles, até por já ter assistido a concertos de L-ALI com pouco mais de 50 pessoas na plateia, antes dos hits para a comunidade do hip hop português que o músico tem vindo a lançar depois da pandemia. Igualmente, produtores como VULTO., apesar do reconhecimento que recebem de projetos como o Rimas e Batidas, passam ainda despercebidos para um público relativamente alargado, num paradigma musical nacional que, estando cada vez mais a par do rap, não vê toda uma fatia do talento que o nosso país contém. Felizmente, L-ALI escapou a esse destino, mas por mais interessante que seja celebrar discos como The Big Banger Theory, ainda é mais importante reconhecer aqueles que, no seu tempo, possam não ter captado muitos olhares, mas que ainda reverberam na cultura hip hop portuguesa. SURREALISMO XPTO pode ser difícil, para uma parte do público, de descobrir. Mas é impossível de ignorar, tal como as grandes peças de arte moderna da história. É escusado dizer que o seu título não podia ser mais adequado.


pub

Últimos da categoria: Ensaios

RBTV

Últimos artigos