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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 16/12/2023

Mike El Nite e ProfJam reflectem sobre o single que, há uma década, mudaria as suas vidas (e as de tantos outros).

10 anos de “Mambo Nº1”: velhos são os traps

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 16/12/2023

Em 10 anos, muita coisa mudou no hip hop em Portugal. As normas e os padrões estéticos alteraram-se, as temáticas das letras idem, a discussão que opunha o underground ao comercial dissipou-se com a ascensão do rap ao mainstream e os cruzamentos cada vez maiores com a pop. Aliás, o rap cada vez mais é a nova pop também por cá. Mas o status quo não se modificou por acaso nem acidente. Houve uma série de experiências feitas por artistas emergentes que foram fundamentais para a mudança de paradigma que hoje presenciamos. Uma das mais importantes celebra uma década precisamente este sábado, 16 de Dezembro: parabéns ao “Mambo Nº1” de Mike El Nite com ProfJam.

Mário Cotrim, rapper cerebral de Telheiras, tinha dado nas vistas nesse mesmo ano de 2013 com as suas batalhas na Liga Knock Out. O artista era uma das peças-chave na editora independente/colectivo lisboeta ASTROrecords, que apostava em rappers de índole mais alternativa e experimental dentro do movimento projecto esse que também motivou este ano uma grande entrevista no Rimas e Batidas com o manager Nelson Monteiro. No ano em que se dera a conhecer realmente ao movimento hip hop, ProfJam foi partilhando faixas mais boom bap que começaram a ganhar tracção no YouTube, mas nada como o impacto que “Mambo Nº1” teria.

Miguel Caixeiro conhecia Mário Cotrim há vários anos, tinham crescido de alguma forma juntos em Telheiras. Rapidamente se associou à ASTROrecords, procurando explorar uma veia distinta no hip hop depois de se deixar influenciar por uma nova vaga do rap norte-americano, na qual brilhavam os Odd Future de Tyler, The Creator, A$AP Rocky ou Clams Casino. Utilizavam instrumentais mais electrónicos, de padrões rítmicos distintos, com efeitos que distorciam a voz. Muitas das vezes rimavam sobre outros assuntos. Fora o tipo de rap que levara Miguel Caixeiro a interessar-se novamente pelo hip hop, após alguns anos de distanciamento, mais imerso no mundo da electrónica.

“O Mambo Nº1 vem daquela malta do cloud rap dos Estados Unidos, já com alguns beats de trap”, explica Mike El Nite ao Rimas e Batidas, 10 anos depois de ter construído o tema, ele que também começou por partilhar as suas faixas no SoundCloud. “É dessa era, de quando o rap estava na Pitchfork, dessa cena mais indie e hipster, e também mais nerd rap.”

Pegando numa sample evidente de “Kanimambo, canção popularizada por João Maria Tudela, Mike El Nite que logo aí explorava elementos da portugalidade na sua arte faria um beat que resultaria numa faixa estrondosa. “Fiz o instrumental em casa, mostrei ao Prof, ele gostou, começámos a escrever e fomos gravar à ASTROrecords. Foi uma coisa muito simples, divertida, para mostrar skill. Estávamos nessa fase de flexar as barras. 10 anos depois, não o escreveria da mesma forma, mas quando o oiço continuo a dizer que é dope, que está bem executado. E normalmente as músicas que correm melhor são essas que saem facilmente. Têm ali um ímpeto e uma espontaneidade”, defende Mike El Nite. “É uma sample icónica, que assinala a minha entrada com uma certa ironia, mas também com o mostrar do skill e a afirmação de marcar uma presença, de dizer que nós também temos um lugar no universo do hip hop tuga.”



ProfJam acrescenta em declarações ao Rimas e Batidas: “Na altura foi uma cena diferente, barras em catadupa num beat fora do normal, com os efeitos sonoros de low-pitch. Eram técnicas que já estavam a ser usadas nos States e, como também tínhamos essas influências, decidimos experimentar e curtimos. Soava a fresco e isso para um artista up and coming era fixe. Deu para inovar em português. A nossa cena era acrescentar algo, e sabíamos que iria ser entusiasmante, porque, se para nós era, iria ser para mais alguém”.

Com um videoclipe dirigido por Filipe Penajoia e Pedro Covas, que foi lançado no popular canal de YouTube da HipHopSouEu, não demorou a atingir um grande público ligado ao movimento. Hoje soma 965 mil visualizações, mas falamos de uma era pré-explosão do rap português e numa altura em que grande parte do consumo de música ainda era feito offline. Mike El Nite era praticamente um anónimo, ProfJam tornara-se conhecido recentemente através da Liga Knock Out. Para muitos, “Mambo Nº1” foi uma forte lufada de ar fresco no rap nacional, uma autêntica pedrada no charco. Para outros, o single foi recebido com desconfiança, numa altura em que existia uma certa resistência em relação àquilo que era inovador e disruptivo, e que aqui tinha rompido com esses dogmas mais conservadores. Aquela que terá sido uma das primeiras malhas portuguesas que mais se aproximavam do trap provocou ondas de choque.

“Quando nós acabámos a faixa e ouvimos aquilo, pensámos: isto está dope e vai mexer”, recorda Mike El Nite. “Mas, sinceramente, fiquei surpreendido com a parte negativa das reacções. Porque nós ainda não tínhamos muito a ideia de que havia este conservadorismo na cultura rap na altura, e que iria haver esta resistência toda. Achámos que iria ser muito mais consensual. Por isso, inicialmente, foi um bocado frustrante.”

ProfJam relembra como, naquele momento, estava num processo de “descoberta da caneta”. “Sabíamos que aquilo iria contrastar com o tipo de sonoridade da altura, mas isso também pode ser uma boa motivação. É como o Sam [The Kid] diz: O pudim já está na mesa, tragam arroz doce, falta arroz doce.”

O single acabou por integrar o EP Rusga para Concerto em G Menor (2013), de Mike El Nite; e a mixtape The Big Banger Theory, o trabalho de estreia de ProfJam, que seria lançado no ano seguinte.

Para Mike El Nite, o impacto de “Mambo Nº1” mudou literalmente o rumo da sua vida. “Na altura estava na faculdade e abandonei o curso para investir 100% em música por causa do sucesso desta faixa. Foi mesmo um virar de página na minha vida, de me decidir começar a fazer música a full-time. Foi mesmo o kick-off do meu projecto enquanto Mike El Nite, pelo menos da exposição desse projecto ao público.”

No caso de ProfJam, a experiência de construir um tema por cima de um instrumental mais ligado ao trap levou-o a querer explorar essas sonoridades em The Big Banger Theory, a mixtape que o faria chegar a um novo patamar em 2014 e que definiria o seu caminho. “Foi muito esse som e o Mike que me influenciaram a ir por sonoridades mais trap na altura, foi essa a faísca que me fez querer fazer o TBBT, de eu descobrir que conseguia fluir e até fazer coisas diferentes quando me debruçava sobre estes beats. No fundo, já os consumia mas não tinha a inspiração para pegar neles. Mas a partir daí quis marcar essa amplitude, do boom bap ao trap. Para mim são beats.”



Um single divisivo que abriu portas e trouxe liberdade

“A sensação que tive é que, na altura, foi uma coisa muito controversa, o que normalmente é o caso com as coisas progressivas, e ainda bem: criou muita discussão, recebeu muito amor, recebeu muito ódio”, recorda Mike El Nite. “Mas gosto de pensar, embora não queira aqui armar-me em precursor de nada, que abri uma porta que estava por abrir e que permitiu a muitos artistas emergentes ou que estavam a começar a sentirem-se mais confortáveis com um tipo de coisa que não estava a ser muito feita e que até era vista com algum escárnio aqui no nosso país.”

L-ALI atesta esta visão de Mike El Nite, ele que apareceu no ano seguinte com o EP Surrealismo XPTO, produzido por VULTO., com um registo experimental, industrial e alternativo no rap português. “Quando saiu o ‘Mambo Nº1, lembro-me de ter achado uma lufada de ar fresco para o que se fazia em Portugal”, conta o rapper lisboeta ao Rimas e Batidas. “Senti que havia mais pessoas a tentar arriscar e a testar coisas que, até à data, eu não via aqui.”

Outro rapper que aponta nesse sentido é Claustro, do Entroncamento. “Aquele som foi importante para conhecer o trabalho do Mike El Nite, não o conhecia de todo até à data. E sinto que aquele single foi um bocado game changer na estética do que se estava a fazer aqui. Eu já conhecia aquela sonoridade mais ou menos em 2010 ou 2011, quando fui para a faculdade, e comecei a ouvir, com o meu grupo de amigos, Odd Future e coisas assim. Mas acho que eles foram os primeiros em Portugal, pelo menos a uma escala visível, que trouxeram essa sonoridade. Para mim e para o meu grupo de amigos não era exactamente novo, mas claro que ouvi-lo em português foi brutal.”

Além disso, a letra repleta de anglicismos inclui referências geeks como Skyrim, “matar o boss no primeiro nível” ou cheats, o que também não era propriamente habitual no hip hop nacional embora fossem terrenos já explorados de alguma forma no universo da Monster Jinx, por exemplo. 

“A parte da linguagem também foi muito importante, sobretudo do Mike El Nite, mas também do ProfJam. Aquela coisa mais nerdy, acho que isso também foi muito relevante, das referências de animes ou que não eram vistas até à altura nos sons. Isso até foi das cenas que fez com que eu e a malta como eu se identificasse mais”, acrescenta Claustro. L-ALI também destaca os “jogos de palavras engraçados e irónicos da parte do Nite”, além dos “flows frescos do ProfJam”. “Era uma abordagem nova que certamente inspirou quem pensava fazer rap em Portugal. O Nite foi um dos nomes que me fez sentir ‘em casa’… afinal havia mais um desta tribo dos ‘esquesitóides’.”

“Na altura houve gente que me disse isso, literalmente”, responde Miguel Caixeiro. “Que na altura tinha dúvidas sobre lançar um projecto X ou Y com certa estética e que, pelo facto de o estarmos a fazer, permitiu que tivesse mais vontade e coragem para o fazer”, recorda. ProfJam acrescenta: “Não éramos os únicos sincronizados naquilo, se não o som também não teria expressão. Era sinal que havia público em Portugal para aquelas sonoridades”.

Mike El Nite admite que “Mambo Nº1” possa não ter inspirado de forma directa com a sua estética, até porque reconhece que não inventaram a roda. “Pegámos numa fórmula de que gostávamos e recriámo-la.” Mas o gesto de ousadia artística teve ressonância. “Se calhar foi mais a cena de mostrar uma certa coragem de não seguir as convenções e pensar: porque não tentar virar a página, sem desrespeitar as páginas que estão atrás? Mantendo o skill, as barras, o ênfase no rap. E se calhar criou a abertura noutras pessoas de dizerem: porque não também tentar? Gosto de pensar que é um marco e que existe um antes e um depois, mas muita gente pode achar que não teve assim tanta influência na cultura. Eu gosto de pensar que influenciei pelo menos as pessoas que pensam como nós, que sentiram esse aumento da sua liberdade.”

ProfJam salienta que foi precisamente o contraste que permitiu a projecção para que depois se tornasse aquilo que descreve como um “culture hit”. “É sempre um orgulho fazê-lo e eu gosto muito de fazer sons que batem na culture. No fundo é um som de barras, egotrip clássico, com dois putos que na altura queriam era cuspir, com beats pesados e a cena era curtir, experimentar a caneta de forma desenfreada. Foi também um bocado a onda do TBBT. Na altura já estávamos a consumir muito o Kendrick Lamar, o drill de Chicago…”

“Mambo Nº1” pode muito bem ter sido a semente que em Portugal fez brotar toda uma nova vaga de artistas, até porque ProfJam que aqui, de forma profética, se apresenta como o “prof dos putos da nova gen viria a criar a sua editora Think Music (da qual Mike El Nite também fez parte), onde lançaria artistas mais jovens cujas referências já eram os grandes ícones do trap, de uma geração posterior àquela que tinha inspirado este single.

“Acho que o pessoal como o Lon3r Johny, o Sippinpurpp, o Yuzi, que já apanharam outras referências, acabam por ser um pouco sobrinhos dessa estética. E é engraçado que todos eles começaram no SoundCloud e eu próprio também. Teve um papel importantíssimo nessa difusão”, destaca Mike El Nite. “No início pode ter sido frustrante, mas também esperançoso porque recebemos apoio. Com o passar do tempo e com o maturar da música e de todo o processo que a Think Music desenvolveu que foi sempre um bocado neste registo , percebemos que é assim mesmo, que se as coisas querem andar para a frente têm de criar divisão, debate, e isso é um muito bom sinal de que estamos a ir para a frente.”

10 anos depois, Mike El Nite e ProfJam continuam a trabalhar juntos, uma vez que o primeiro se mantém como “DJ on the fuckin mic” do segundo. Os Zona T Finest prosseguem a sua jornada, mesmo que com outra maturidade e visão artística, mas já com diversas conquistas no currículo das quais se podem orgulhar. Ao estilo “canto directo”, Mike El Nite remata: “Esteticamente, estamos a abordar a cena de maneira completamente diferente, mas com a mesma chama, de ‘bora fazer o que nos apetece e ‘bora pelo caminho que quisermos, porque isso é que faz com que este emprego seja diferente dos outros.”


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