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Fotografia: Malak El Sawi
Publicado a: 01/06/2022

Predisposto a ir para lugares criativos onde nunca esteve antes.

ZULI: “Eu sou o tipo de pessoa que precisa de saber como funciona tudo”

Fotografia: Malak El Sawi
Publicado a: 01/06/2022

No continente africano, a imensidão de géneros musicais é, indubitavelmente, proporcional à extensão geográfica do seu território — a tradição melódica e a ancestralidade rítmica traduzem-se num sem número de inspirações para novas práticas e novas sonoridades sonoras que coabitam na perfeição com tudo o que as precede. África pode ir do habibi funk ao tuareg blues, de leste a oeste, e do shaabi ao afro-house, de norte a sul, passando por encantamentos vodu, batimentos yoruba, cadências operárias e desembocando na electrónica de ponta que, de forma centrípeta, traz a disrupção de um planeta inteiro para as possibilidades incontáveis deste continente. ZULI, de seu verdadeiro nome Ahmed El Ghazoly, é reflexo de toda esta dinâmica, conseguindo de forma singular e exímia materializar algo que se pensava impossível fazer através de um único indivíduo.

Com concerto apontado para este sábado, dia 4 de Junho, na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, o produtor do Cairo propõe-se a mostrar as várias facetas de uma curiosidade que o leva a expressar-se como pioneiro da electrónica, numa sonoridade muito sua, mas que não deixa de beber no Egipto em que nasceu e cresceu, na miríade de possibilidades do continente em que o acaso o colocou, e em tudo o que o mundo lhe levou como inspiração.

Desde 2017, altura em que se estreou, com Bionic Ahmed, pela UIQ de Lee Gamble, ZULI tem-se afirmado como um dos mais prementes criadores de batidas, ambientes e texturas que se podem ouvir, independentemente de coordenadas: se nesse primeiro EP explorou cadência mais lentas e ambientes mais dados a espacialidade, o LP Terminal abriu caminhos pelo glitch, pela imprevisibilidade rítmica e, nesse mesmo ano, o EP Trigger Finger levou-o a brincar com a taquicardia do jungle e drum’n’bass numa imersão de ruído saturado e, sabe-se lá como, melódicos ao mesmo tempo.

Pelo caminho, El Ghazoly ainda se aventurou no field recording e no drone para uma cassete selada pela Boomkat, no trap por via de uma mixtape feita com o que sobrou de um projecto perdido num computador que fora roubado e numa ode a Madlib criada através da exploração e sampling da colecção de música da sua família. Em 2021, regressa à sua interpretação de club music e à sua relação com a UIQ através de “All Caps” (talvez mais uma declaração de amor, desta feita a MF DOOM?), em que tudo o que precedeu parece ser comprimido numa alucinante viagem de seis faixas ora de BPMs elevados, ora de interpretações muito próprias do que pode ser trap, ou drill, e de híbridos que, inusitadamente, se transformam num vaivém de sons shaabi e habibi e electrónica avançada. Não há ginástica que nos valha, quando se trata de acompanhar a elasticidade mental das produções de ZULI.

Em entrevista ao Rimas e Batidas, ZULI levanta o véu sobre as suas inspirações e sobre o que o define enquanto músico multifacetado, sobre a cena electrónica egípcia, e sobre o colectivo irsh, que fundou com Rama e que se prepara agora para ver lançado o segundo volume da série did you mean: irish, uma compilação de música de artistas prementes do Cairo que tornam o seu dia-a-dia enquanto produtor mais interessante e desafiante.



A primeira coisa que me vem à cabeça quando penso na tua música é o quão difícil é descrever tudo o que fazes. A tua música vai a muitos sítios diferentes. Faz sentido dizer que a tua exploração é uma forma de aumentares o teu vocabulário e arsenal técnico? Há outra razão que te leve a produzir tanta coisa diferente?

Eu acho que gosto apenas de muitos tipos diferentes de música. Ao mesmo tempo, eu sou o tipo de pessoa que precisa de saber como funciona tudo, por isso, se eu gosto de um tipo de música ou de um som, sempre fui curioso o suficiente para descobrir como fazê-lo. Essas mini aventuras são as melhores educadoras, que só ficam mais completas com todos os desvios e felizes equívocos que acontecem durante a jornada. Mesmo antigamente, quando tocava em bandas, um único instrumento não me bastava, então eu tentava aprender todos os que estávamos a usar. É a mesma razão que me levou a mergulhar no sound design, assim como no lado mais de engenharia da música, de misturar e masterizar.

Fizeste música para clubbing, hip hop, ambient… qual é a próxima direção que vais seguir? Estás a trabalhar em algo novo que é, também, uma novidade para ti?

Sim, neste momento estou a trabalhar numas fornadas de coisas diferentes, sendo que nenhuma delas soa a nada que eu tenha feito antes. Há uma que se foca mais em desenho de som, na qual estou a colaborar com o Omar El Sadek para um espectáculo audiovisual. Há uma série de faixas mais focadas em guitarra. Nestes dois casos, há muito da minha voz. Para além disso, há uma série de novas faixas de música para clubbing que são completamente diferentes dos meus trabalhos anteriores, e ainda outras faixas de tipos de música que eu não sei bem como descrever agora. Estou mesmo muito entusiasmado por derrubar fronteiras com a minha música.

O projecto Swag Lee is Dead era centrado numa série de colaborações que estavas a fazer com rappers egípcios. Interessa-te retomar essas colaborações e lançar música com MCs? Ou essa fase já acabou?

Eu já não me interesso tanto por trap como há quatro ou cinco anos. E também não gosto de nenhum do rap egípcio que tem saído desde então. Sentia que havia muito potencial na cena rap do Egipto, em 2017, mas acho que me enganei. Acho que o potencial desses rappers se manifestou mais em sucesso comercial do que em crescimento artístico.

Há uns anos, a cena musical do Cairo irrompeu por Portugal, em particular através do electro chaabi, e isso abriu portas para o que de novo se tem feito no país. Como é que descreverias a cena musical da cidade, nesta altura?

A cena de música electrónica do Egipto nunca foi tão entusiasmante como agora. Pela primeira vez na sua história, há vários sub-géneros muito diferentes que estão a prosperar (tal como o próprio shaabi de que falas através de artistas visionários como 3enba e Double Zouksh). Na área em que eu me mexo também há uma geração de artistas de 20-25 anos que estão a produzir, a fazer sets e a organizar as suas próprias festas que merecem atenção, como os MOSHTRQ. As cenas house e techno também parecem estar a dar-se muito bem, também. Há iniciativas muito entusiasmantes, como a Yellow Tape Records.

Numa entrevista que fizemos há uns tempos com o teu conterrâneo Dijit, ficámos com a impressão de que o Cairo ainda pode ser um pouco classista para os seus artistas, com os clubs a serem muito exclusivos das pessoas com maior capacidade económica. Partilhas desta opinião? Achas que está a mudar?

Os clubs do Cairo são uma porcaria por várias razões, essa é uma delas, mas não são os únicos a apontar o dedo por esse classismo. Toda a cultura à volta dos músicos de electrónica e DJs é a de que esta só funciona para pessoas que têm outras formas de ganhar a vida. Assim, naturalmente, apenas os ricos sobrevivem.

Pessoalmente, como é que te relacionas com a cena musical da cidade e como é que esta te influencia? Podemos dizer que o Habibi Loops é reflexo desta relação?

Claro que me influencia, eu vivo aqui. Não diria que o Habibi Loops em específico tem muito a ver com o Cairo, mas é antes o resultado de eu crescer no Egipto a ouvir estas bandas dos anos 70 e 80. Como já deves ter percebido, eu não teorizo muito sobre a minha situação, mas eu tenho a certeza de que a cena daqui tem sido uma influência constante para mim, sendo que eu faço parte dela.



Falando da compilação did you mean: irish: escrevem na vossa página de Bandcamp que “se não gostam de techno e house, ou de festa pela festa, o Cairo pode ser bastante aborrecido”. Ainda estás a tentar encontrar e criar a tua própria cena?

Desde 2013, quando criei a VENT, que é uma missão minha tentar ajudar a criar uma cena musical de que eu goste — uma missão muito egoísta — e eu tive a sorte de encontrar pessoas de diferentes gerações que por acaso estão na mesma missão que eu. Está a acontecer. Devagar, mas está definitivamente a acontecer. Por isso é que eu e a Rama começámos a irsh, em Fevereiro de 2020, para juntar artistas com mentalidades semelhantes e fazer livestream de DJ e live sets. Quando a pandemia começou e foram proibidos os ajuntamentos, acabámos por mudar para o formato das compilações, cuja segunda edição sai já em Julho. Anunciámo-la na semana passada e já se pode ouvir a faixa produzida por ABADIR com 3Phaz.

De que forma a irsh contribui para a proliferação da música mais experimental no Egipto? Achas que ao dar esta plataforma, estás a abrir portas para estes artistas no país, ou o propósito é mais de mostrar estes talentos ao mundo?

Nós não pensamos tanto numa lógica de Egipto vs Mundo. Acontece que conhecemos estas artistas incríveis e eles são simpáticos que chegue para partilhar a sua música connosco. É apenas isso, mesmo. A música está na net para qualquer pessoa que tenha uma ligação possa ouvir, seja no Egipto ou no Pólo Norte (o pessoal tem Internet no Pólo Norte?).

A primeira compilação saiu ainda durante a pandemia, em 2021. O que vos levou a fazer esta segunda?

Conhecemos artistas novos muito entusiasmantes e alguns amigos que faziam outras formas de arte começaram a fazer música também (com resultados incríveis). Sentimos que fazia sentido!

A primeira compilação acabou por ser dividida numa série de dubplates altamente limitados, com os lucros a irem para a associação MAP Charity. Estão a planear fazer algo semelhante para o segundo volume?

Ainda não, mas estamos receptivos a repetir. Trabalhar com a MAP [que apoia jovens com acesso a educação] tem sido incrível! Shout-out para o Dom, da Declared Sound, por basicamente ter tido a ideia de tratar de 99% da operação sozinho (desde a prensagem, corte, encomendas, tudo!).

Por curiosidade, e já que nem o próprio Google sabe o que quer dizer irsh [o título da compilação surge da mensagem que o motor de busca mostra quando se procurar por “irsh”], pode-nos explicar o que significa?

É apenas a palavra arábica para tubarão. Porquê tubarão? Eu nem me lembro. Eu e a Rama somos terríveis a dar nomes a coisas. Lembro-me de estarmos a entreter-nos com a ideia de crocodilos do Nilo, por alguma razão, e depois mudámos para tubarões.

O que podemos esperar do teu set na ZDB?

Eu gosto que os meus DJ sets sejam o mais divertidos possível, porque no final das contas as pessoas saem de casa para passar um bom bocado. Claro que isto pode ser manhoso, tendo em conta o meu gosto de música, mas adoro o desafio de tentar encontrar aquele sweet spot entre música divertida e música que eu considero interessante.


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