“A música pode ser tudo e tudo pode estar na música”, serve como mote maior na vida da saxofonista — também, mas não só — Zoh Amba. A sua “aparição” entre o altar de talha dourada e a plateia na Igreja do Rosário — casa da padroeira espiritual das gentes crentes em divindades do Barreiro — enche-se de múltiplos significados no segundo dia do OUT.FEST.
Amba que se fez artista por acreditar que “a música era um escape ao mundo” e que a foi apreendendo mais como uma “porta de entrada num universo de beleza”. Num modo confesso vai dizendo “que vai contando os seus segredos no quarto escuro”, perante todos, e isso é uma partilha. Como o é a música que traz, e o modo como a faz acontecer. Para muitos — praticamente, toda a gente presente —, até ali chegada, Zoh vinha para tocar a solo o seu saxofone tenor. Isso era motivação e de sobejo interesse. Tem tocado em trios e quartetos com gente de renome da cena mais free de Nova Iorque. Tem no recente capítulo da sua discografia The Flower School (Palilalia Records, 2023) com Bill Orcutt (guitarra) e Chris Corsano (bateria), uma expressão maior da sua música. Deu a conhecer-se de pronto quando surgiu com O, Sun — registo devoto ao espaço espiritual vindo das montanhas e florestas onde se fez saxofonista, por terras appalachianas, lá para os lados do Tennessee. Mas logo nesse primeiro disco chancelado pela Tzadik, contou com o timoneiro Zorn (no alto), Thomas Morgan (baixo), Micah Thomas (piano) e Joey Baron (bateria). Uma porta — e logo das grandes — que se abria em 2022 para o mundo de encantos ao encontro do deixado por um Albert Ayler. Amba que tem nos dois volumes, por separado — Vol. 1 e 2, de O Life, O Light pela brooklyniana 577 Records, junto a William Parker e Francisco Mela, uma (lendária) dupla instalação de suporte para o ímpeto da sua voz no tenor.
Amba surge na Igreja do Rosário a acompanhar o fim da luz, do dia terceiro de Outubro. Vem para tocar com “o coração e usar o saxofone tenor e a guitarra”. Está enormemente grata por o fazer neste local, depois de ter caminhado até perto da água, junto do amplo estuário do Tejo — modos certeiros na antecâmara de um concerto a solo. A guitarra, no estrado, estava a denunciar algo mais que o saxofone que se esperava como de som único na igreja. Mas a abertura faz-se ritualisticamente no tenor. A luz natural a esvair-se e o som em modo vibrato de longas notas a crescer. Há uma redenção emocional em curso e confessamos o impacto no olhar turvo, humedecido como causa daquele efeito. Há essa ornamentação melódica, que Alabaster dePlume tem como primor, e julgávamos que única — revemos de imediato essa exclusividade no campo emocional. Sucede então, a essa elevação do tenor de Amba, uma entrada no campo gutural-animal. São os ímpetos gritantes que lhe reconhecemos como identitários. Soa a expressão de faunas do mundo que visualiza e partilha. Há nisto zurros gritantes e expressivos, tornados reivindicações em pedidos urgentes. Uma vez convocadas essas vozes animais, Zoh parte para fraseados melódicos como que em transmissão oral, num conto de maravilhamentos. Foi para isto que imaginámos ter vindo.
Surpreendente foi dar conta que era só um prólogo. Dali por diante é a guitarra que toma o lugar do seu colo ventral. “Walk To” serve de caminho para conhecer de perto Zoh Amba cantautora. Guitarra dedilhada e cantada num modo honesto — até a pequena demora no afinar é assumido. Há uma autora em campo, que se atreve numa aprendizagem de um instrumento no decurso de ser escutada por todos. Há nisso uma destemida honestidade, que antes da musicalidade traz ao de cimo candura. Há uma sonoridade folk enraizada nas paisagens fontes de inspiração e respiro na cordilheira dos Apalaches.
Conhecida a voz de Amba vinda do tenor, revela-se de canção em canção a sua voz própria, que surpreende no timbre melódico. Essa redefinição da sua música pode ser retomada em “Sea of Love”, tema não tocado neste concerto intimista, mas que partilhou há uns meses em e que nos atrevemos a dar como contraponto ao resumo quando propusemos 11 concertos a não perder neste OUT.FEST’24. A canção que diz e ilustra a procura quando refere “look inside there is a sea of love / it’ll hold you, it’ll show you […] the song is tender, they’ll all see / hold yourself , in the garden”. Ali estávamos numa igreja, mas que se podia ver como esse jardim. A dúvida era quantas mais canções trazia Amba a este concerto. Ia revelando que tinham muito pouco tempo de existência, como “Emahoy”. Esta canção em que refere o fascínio sentido ao saber da vida e música da pianista e freira Emahoy Tsegué-Maryam Guèbrou, que viveu reclusa na vida monástica e em muito dedicada à composição que agora se vai revelando a todos, também para Zoh Amba. E as canções levavam o embalo como quem tem um mundo novo a revelar, feito de amor, como tocado com “Pure Love”. Confessa que foi composto pensando na amizade, escrita no seu apartamento em Nova Iorque, no seu nicho da grande cidade que escolheu. Houve tempo para dois temas mais à guitarra, com e sem a sua voz, até nos servir o epílogo desta nova narrativa.
Fecha com o retomar do tenor — até então deixado, repousando em duas metades ao seu lado. Feito corpo inteiro e de novo recebendo-lhe o regaço, volta para encher de reverberação a acústica da Igreja do Rosário. Esta antiga ermida que também ela passou por várias fases, foi casa de diferentes irmandades — de S. Pedro protector dos marinheiros e pescadores até à actual do Rosário. Também Zoh Amba está nesse processo de identidade — musical, é certo, mas sem que isso desvie a função da sua arte — espiritual, seguramente. Entendamos antes que há um modo de afinação em curso, uma procura do como fazer. Afinal, e como assumiu por inteiro: “Até a afinar estamos nisto juntos”.