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Fotografia: José Caldeira e Vera Marmelo
Publicado a: 23/08/2019

Fantasia, loucura controlada e as novas vozes da música portuguesa.

ZigurFest’19 – 21 e 22 de Agosto: “maluquices” que importam

Fotografia: José Caldeira e Vera Marmelo
Publicado a: 23/08/2019

O calor não demove, a sede não atrapalha e a curiosidade não acaba. Chegados à nona edição do festival lamecense, parece que o tempo não passou desde que há um ano nos estreámos por aqui: as Festas em Honra de Nossa Senhora dos Remédios (enquanto escrevemos estão os Anjos a entrar-nos — sem autorização, garantimos — pela janela) acontecem e fazem contraste com a programação alternativa e apontada à novidade do ZigurFest, deixando uma cidade em alvoroço com uma oferta cultural que, dizem-nos, não encontra paralelo no resto do ano.

No primeiro dia, e porque não existe hora para se começar a mexer com algumas cabeças, Violeta Azevedo, que em 2018 actuou enquanto parte das Savage Ohms, assumiu a linha da frente no que toca a actuações, apresentando-se sozinha com recurso a uma flauta transversal que vai sendo processada pelo exército de pedais que são manejados pelos seus pés descalços.

A Casa do Artista recebeu-a num dos seus cantos exteriores e, apesar de ter acontecido numa quarta-feira, às 17h30, dezenas de pessoas (de todas as idades) marcaram presença para um daqueles embalos ambient que induziu todos numa hipnose em que, esperemos, tenham conseguido criar o seu próprio mundo de fantasia. Se fechássemos os olhos, podíamos viajar para qualquer lado.

Mais tarde, a artista iria juntar-se a Menino da Mãe, nome emergente da cena lisboeta que ficou responsável pelo primeiro concerto no Museu de Lamego, local que virou rapidamente o seu recreio: a certa altura, rastejou até ao meio do público e por lá ficou durante uns segundos com o microfone dentro da boca. Interpretem isto como quiserem, mas não houve vivalma que arredasse pé, provando que ali existe um magnetismo que prende mais do que afasta. E isso, nos dias que correm e em que tudo é tão rápido, é algo a reter.

De seu verdadeiro nome Bernardo Bertrand, o autor de Felácios. Falésias. Falácias, trabalho lançado em Março, tenta carregar o peso de uma cidade que, segundo o próprio, deu cabo dele, personificando o termo “urbano-depressivo” e encaixando-se, mesmo que de uma forma menos polida e mais crua, na linha daquilo que os Ermo têm feito, por exemplo. Uma boa surpresa que não sairá certamente do nosso radar daqui para a frente.

Com o EP Bazar Esotérico na bagagem, Raul Mendiratta e Francisco Lima, dupla que assina como Conferência Inferno, tiveram a missão de encerrar as aventuras nocturnas no museu, e não defraudaram quem esperou para dançar ao som de darkwave, concentrando à frente do palco uma série de fiéis que vibraram com cada pedaço musical que era disparado dos seus teclados e pintado vocalmente através de “retratos nocturnos de uma cidade imberbe na arte de ser urgente”.

Tentando localizá-los no que se faz (e fez) em Portugal, arriscamos dizer que estão para os Heróis do Mar como Stranger Things está para as suas influências de filmes e séries dos anos 80: são recontextualizações de uma expressão específica de uma era com pacotes mais bonitos e valor próprio sem que pareça apenas um remake. Ainda vão dar que cantar.

Se o primeiro dia se focou, principalmente à noite, em projectos de índole urbana que se preocupavam com reacções mais imediatistas, a mudança para o Horto do Castelo trouxe-nos uma lufada de ar fresco com Afta 3000, banda liderada pelo baixista André Santos que nos confeccionou (com uma paisagem de cortar a respiração por trás) um prato com ingredientes tão variados quanto o jazz, a electrónica, o funk e o hip hop, tudo servido com o tempero da experimentação de quem sabe o que faz e não se importa de se desafiar.

O saxofonista Zé Zambujo e o baterista Pedro Nobre acompanharam o líder nesta demanda pelo groove cósmico e ácido (pontuado pelo que pareciam falas de filmes e sons pré-gravados que complementavam a música) alicerçado no baixo mutante que não pediu licença para se impor. Ficou a faltar DJ X-Acto, que aparecia anunciado no guia do festival mas que, infelizmente, não fez parte da formação que se mostrou em grande forma perante os curiosos que subiram até ao castelo para a ouvir.

Se ficaram interessados em saber mais, XYYZ, o último lançamento da ZABRA Records, é a mostra de estúdio do que escrevemos anteriormente. À procura de uma descrição que resuma o que se passou, nada melhor do que recorrer às palavras de André Santos, que usou a palavra “maluquice”. E é mesmo, mas da boa.

No mesmo sítio, Rui Sousa, mais conhecido como Dada Garbeck, entregou-se (na companhia de Ricardo Martins e de um coro) a uma missão: colocar-nos num estado meditativo através de um Hammond XK-1 e outros sintetizadores, uma bateria em constantes ritmos circulares e vozes que são impossíveis de ignorar (e claramente inspiradas no seu assumido interesse pela tradição oral). Em grande parte, a tarefa foi bem-sucedida, com excepção para o divertidíssimo momento (abraçado pelo multi-instrumentista) em que uma criança decidiu começar a brincar com a parafernália musical. O ZigurFest é para a família e não vale a pena contrariar isso.

Mais tarde, Luís Vicente & João Valinho, duo que se apresentou ontem pela primeira vez ao vivo no Teatro Ribeiro Conceição, expôs a sua versão do jazz: menos linear, mais caótico e a chatear muitos daqueles que pensavam ir encontrar conforto; o quão enganados estavam — e o quão rápido saíram nos intervalos de cada música.

A bateria e o trompete iam-se encontrando no vazio enquanto eram explorados pelos seus executantes de todas as formas possíveis e imaginárias. Por momentos, julgámos estar num qualquer porto de pesca a ouvir os seus ruídos característicos, quando na verdade estávamos bem sentados em Lamego; foi este tipo de magia que se fez com dois instrumentos e pouca luz.

Para os menos aventureiros que dispensaram a ida ao MAU MAU Social Club, a performance de Stasya (que se mudou do inicialmente previsto Palco TRC para o Museu de Lamego) foi o final merecido: Aspas, EP editado em Março pela Alp, serviu de base para uma catarse sónica que procura a beleza no meio dos destroços. No final, é óbvio que a encontra, mesmo que venha embebida em mil e um retalhos de sons (ouvimos pedaços de house, techno, funk brasileiro, espadas, vozes e outros pormenores indecifráveis mas que nunca deixaram de fazer sentido).

Enquanto a artista se manteve algum tempo sentada em cima da mesa como se estivesse a fazê-lo na cama, a plateia foi, lentamente, encontrando o seu próprio ritmo e adaptando-se às mudanças de direcção. Perante um registo tão pessoal em que a autora se vê frente-a-frente com o desespero e a esperança, imaginamos que encontrar um público receptivo no interior do país seja sinal que a segunda opção tenha levado a melhor na noite passada.

Hoje e amanhã, nomes como Minus & MRDolly, Odete, Carincur, Mynda’Guevara e Zentex, entre outros, invadem as ruas de Lamego para trazer algumas das ofertas mais fascinantes da nova música portuguesa.


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